AGULHAS CONTRA A DEPRESSÃO
A técnica milenar, que age diretamente nos nervos, também alivia o estresse e, segundo estudos recentes, surte bons efeitos mesmo em casos mais graves, ajudando, por exemplo, a fortalecer o sistema imunológico e a controlar infecções.
Muita gente tem buscado alternativas para medicamentos alopáticos e encontrado na acupuntura uma opção promissora, cada vez mais embasada por estudos científicos. Um desses trabalhos sugere que a terapêutica tradicional chinesa oferece resultados tão eficazes no tratamento da depressão quanto compostos medicamentosos; outro indica que a técnica pode ajudar a amenizar efeitos colaterais de algumas drogas. Uma terceira pesquisa mostra que as picadas podem fortalecer o sistema imunológico e ser muito eficientes para pessoas com reações inflamatórias graves. Os resultados corroboram grande número de pesquisas que já apontam a eficácia da acupuntura no combate principalmente de ansiedade, náuseas e dor crônica.
Do latim acus, agulha, e punctura, picada, o método chegou a ser descrito por Marco Polo, no século 13, em seus relatos de viagem. Seu uso, porém, tem registros bem mais antigos, durante a dinastia Han, 206 a.C. Na prática da acupuntura, o profissional especializado insere agulhas na pele de um paciente em pontos do corpo que correspondem a órgãos específicos. Cientistas da Universidade Western afirmam que a técnica pode ativar analgésicos naturais do cérebro. Já a medicina tradicional chinesa defende a ideia de que o processo melhora o funcionamento orgânico de forma global, corrigindo desequilíbrios e bloqueios de energia.
Um estudo publicado no ano passado no Journal of Alternative and Complementary Medicine demonstrou que a eletroacupuntura (em que uma corrente elétrica suave é transmitida através de agulhas) tem o mesmo índice de eficiência da fluoxetina (nome genérico do Prozac) na redução dos sintomas da depressão. Durante seis semanas, pacientes voluntários foram divididos em dois grupos. Um deles foi submetido ao procedimento cinco vezes por semana e o outro recebeu uma dose diária padrão de fluoxetina. Os pesquisadores (a maioria com formação em medicina tradicional chinesa) avaliaram os sintomas dos participantes a cada duas semanas e acompanharam os níveis de uma linha de células da glia – fator neurotrófico derivado (GDNF), uma proteína neuroprotetora. Pesquisas anteriores já tinham demonstrado que pacientes com transtorno depressivo maior (que apresentam sintomas bastante acentuados) têm menos quantidades de GDNF no organismo, e outro estudo apontou que é possível aumentar a presença dessa substância no organismo com medicação antidepressiva.
Após seis semanas, integrantes de ambos os grupos apresentaram melhora semelhante. Os dois tipos de tratamento ajudou a restaurar a concentração regular de GDNF. A acupuntura, porém, agiu mais rapidamente, reduzindo os sintomas de forma contundente entre a segunda e a quarta semana, em comparação à droga. Além disso, uma percentagem mais elevada dos que receberam o tratamento alternativo demonstrou o que os pesquisadores classificaram como “grande recuperação”.
Outro estudo sugere que a acupuntura pode ajudar com um aspecto particularmente difícil no tratamento da depressão: os efeitos colaterais sexuais de alguns medicamentos. Doze semanas de aplicação das agulhas ajudou homens e mulheres em vários aspectos do funcionamento sexual, segundo estudo também publicado no Journal of Alternative and Complementary Medicine.
PARA CONTER A INFECÇÃO
O ponto de acupuntura A ST36 Zusanli está localizado logo abaixo da articulação do joelho. Em camundongos (e espera-se também em humanos), a área pode ser uma porta de entrada para o controle de reações inflamatórias que acompanham infecções sistêmicas e podem até mesmo causar a morte. A septicemia, doença frequentemente associada à morte em hospitais, particularmente dentro de unidades de terapia intensiva (UTls), causa a morte de 220 mil pacientes a cada ano no Brasil, segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde. O Brazilian epidemiologic sepsis study (Bases), estudo de referência nesse campo, demonstrou a incidência de infecção generalizada grave no país em aproximadamente 27% dos pacientes com mais de 24 horas de internação em UTI e mortalidade de 47% após 28 dias de internação. O Instituto Latino Americano de Sepse (Ilas) apurou que 48,7% dos pacientes com sepse grave e 65,5% dos que entram em choque séptico acabam morrendo em instituições brasileiras.
Os antibióticos podem controlar infecções relacionadas ao problema, mas, por enquanto, não há drogas aprovadas pela Administração de Drogas e Alimentos (FDA, na sigla em inglês) para neutralizar a resposta imune descontrolada. Pesquisadores da Universidade Rutgers e da Escola Médica de New Jersey publicaram na revista on-line Nature Medicine em fevereiro a informação de que a estimulação da área ST36 Zusanli com corrente elétrica por meio de uma agulha de acupuntura ativou duas vias nervosas em ratos que levaram a uma produção bioquímica que amenizou uma espécie de inflamação séptica induzida. A descoberta, que teve a colaboração de cientistas de instituições como o Centro Médico Nacional Século XXI, na Cidade do México, sugere que o conhecimento da medicina alternativa pode ajudar a descobrir novas vias nervosas para controlar diversos distúrbios do sistema imunológico, desde artrite reumatoide até a doença de Crohn. Se estudos futuros alcançarem resultados semelhantes, a acupuntura poderá ser integrada no campo emergente da medicina bioeletrônica, também chamado de eletrocêutico, uma área que tem chamado a atenção de acadêmicos e empresas farmacêuticas. O biólogo Luis Ulloa, que conduziu o estudo no Centro de Imunidade e Inflamação da Universidade Rutgers, pesquisou por mais de uma década como sinais neurais controlam a função imunológica. Inspirado pela sugestão de um colega mexicano, decidiu testar se a acupuntura poderia ajudar a encontrar alguns desses intrincados caminhos neuroimunes.
Ulloa e sua equipe usaram a eletroacupuntura para estimular o ponto Zusanli ST36 em 20 camundongos expostos a lipídios e carboidratos da membrana externa das bactérias, produzindo uma resposta inflamatória que imita a septicemia. Outros 20 roedores receberam um tratamento inócuo, sendo estimulados em áreas não relacionadas à acupuntura. Metade dos animais do primeiro grupo sobreviveu, enquanto todos os ratos tratados de forma simulada morreram. Um resultado semelhante foi observado em dois grupos de camundongos expostos a um coquetel de microrganismos que vivem no intestino.
Então, os pesquisadores decidiram analisar os nervos e os órgãos envolvidos. Eles traçaram um caminho a partir de um ramo do nervo ciático, próximo à área ST36 Zusanli, que transmitiu um sinal para a medula espinhal e, em seguida, para o cérebro. Depois de processado, foi envia do para o nervo vago, finalmente atingindo as glândulas suprarrenais, o que produziu o agente anti-inflamatório-chave, o neurotransmissor dopamina. Para confirmar esse esquema de ligação biológica, a equipe de Ulloa removeu seções de forma independente dos nervos principais, além de toda a glândula adrenal. A excisão de qualquer uma das ligações do recém descoberto circuito neuroimune anula os efeitos anti-inflamatórios da eletroacupuntura. Os pesquisadores também conseguiram conter a inflamação com uma droga chamada fenoldopam (Corlopam), que agiu como substituta da dopamina produzida pela glândula adrenal em ratos que tiveram esse órgão removido cirurgicamente. Contar com o medicamento pode ser essencial porque em muitos pacientes com septicemia as glândulas suprarrenais não funcionam como deveriam, o que os torna candidatos inadequados para esse tipo de terapia.
É inegável, porém, que o trabalho com acupuntura pode ser uma maneira praticamente não invasiva para garantir a estimulação neuroimune e pesquisar a interação entre os sistemas nervoso e imunológico. “Há centenas de circuitos não mapeados, e alguns podem traçar pontos de acupuntura”, diz o neurocirurgião e um dos pioneiros da medicina bioeletrônica Kevin Tracey, do Instituto Feinstein de Pesquisa Médica, em Long lsland.
Tracey, que já trabalhou com Ulloa, acrescenta que estudos como o da equipe da Rutgers poderia ajudar a estabelecer um mecanismo fisiológico para explicar a eficácia da acupuntura. Os estudos do neurocirurgião levaram à fundação de uma empresa chamada SetPoint Medical em Valencia, na Califórnia, que atualmente desenvolve um dispositivo implantável para ativar um caminho neuroimune isolado com o objetivo de tratar doenças inflamatórias.
TOQUES DE ELETRICIDADE
Apesar dos avanços das pesquisas, a acupuntura ainda enfrenta preconceito em alguns meios médicos, mas seus defensores consideram os resultados dos estudos uma oportunidade de a medicina ocidental finalmente validar técnicas aceitas como tratamento há milhares de anos. O presidente da Sociedade Cética Nova Inglaterra, Steven Novella, por exemplo, considera os estudos da septicemia como apenas uma demonstração de que um nervo responde à aplicação de uma corrente elétrica. “Na minha opinião, a própria eletroacupuntura não é uma entidade real; é apenas estimulação elétrica. Fazer isso com uma agulha de acupuntura não tem sentido e não passa de um objeto fino. Não há nada que prove sua eficácia. E não há nenhuma evidência de que os pontos de acupuntura de fato existem.”
No entanto, a intenção de Ulloa não era determinar se os fluxos de energia vital, ou qi, fizeram seu caminho através dos “meridianos” do corpo, com base na interpretação de como a acupuntura funciona na medicina tradicional chinesa. De fato, ela concorda com o argumento de Novella sobre a estimulação do nervo. No estudo, os investigadores não observaram nenhum efeito anti-inflamatório quando um palito foi utilizado para sondar a área ST 36 Zusanli, de uma maneira semelhante ao modo como as agulhas são inseridas há séculos, antes do surgimento da eletroacupuntura.
Como investigador de caminhos neuroimunes, Ulloa insiste que não perdeu o interesse em explorar os pontos de acupuntura. “Não é por acaso que todas as áreas descritas no humano, exceto uma (360 de 361), são próximas a um nervo importante”, argumenta. O estudo do ST36 Zusanli levou diretamente à descoberta de um dos circuitos neuroimunes mais intrincados encontrados até agora. “Em vez de testarmos milhões de áreas possíveis, concluímos que os pontos de acupuntura podem nos dar vantagens para estimular redes neurais de forma mais eficiente”, acredita.
Poucos dias após a publicação do artigo na Nature Medicine, um estudo veiculado pelo periódico Science Translational Medicine apontou que um componente da erva Salvia miltiorrhiza, antigo conhecido da tradicional farmacopeia chinesa, também demonstrou potentes propriedades anti-inflamatórias. Os pesquisadores das instituições que conduziram os estudos seguiram o mesmo caminho que Ulloa e sua equipe. A ideia era verificar se o tratamento milenar seria capaz, por meio de tentativa e erro, de produzir algum efeito biológico ou potencial terapêutico possível de ser testado rigorosamente em laboratório. Em ambos os relatórios, os autores seguiram as exigências dos editores e revisores de artigos dos renomados periódicos (e até dos próprios céticos) que endossam a medicina baseada em evidências – e o que elas mostram é que as agulhas podem ser fortes aliadas da saúde e do bem-estar.
PONTOS DE SAÚDE, DIFICULDADES DE COMPROVAÇÃO
A maioria dos pontos de acupuntura se localiza perto de grandes nervos. Na imagem acima, os seis que são utilizados no estudo que demonstra que a técnica é tão eficaz quanto o Prozac no tratamento contra a depressão. Outras pesquisas também estudam os efeitos da estimulação desses locais.
Estudos consistentes contam com um grupo de controle confiável, consideram o efeito placebo e asseguram que nem médicos nem voluntários saibam se o procedimento é real ou inativo. Os resultados devem ser replicados com sucesso em vários laboratórios pelo mundo. Apesar das dificuldades de manter o rigor científico nessa área, pesquisadores que trabalham com a acupuntura vêm buscando driblar os entraves. Conheça alguns deles:
EFEITO PLACEBO: é um grande obstáculo elaborar uma boa técnica de acupuntura falsa que sirva de parâmetro de sua eficácia. O primeiro estudo descrito acima não fez um controle fidedigno, o que torna impossível saber se as agulhas, a corrente elétrica ou qualquer outra forma de tratamento representam de fato os resultados. Além disso, a técnica é associada a um grande efeito do placebo (simplesmente ser visto e tocado por um profissional faz a maioria das pessoas se sentir significativamente melhor, o que poderia fazê-la parecer mais eficaz do que realmente é). Por outro lado, o poder do procedimento inerte pode ofuscar uma pequena – mas real – diferença entre os grupos de tratamento regular e com placebo, mascarando o verdadeiro potencial da acupuntura.
OCULTAÇÃO: não é fácil criar um experimento duplo-cego (método de ensaio clínico em que nem o objeto de estudo nem o examinador conhecem determinada variável). Observadores e participantes podem distorcer os resultados, mesmo sem se dar conta, se souberem quando o procedimento é verdadeiro ou simulado. O acupunturista certamente reconhece se o método é real ou não, o que pode sutilmente alterar seu próprio comportamento. O primeiro estudo acima foi parcialmente cego, em que os médicos que avaliaram os sintomas dos pacientes não sabiam o tratamento que haviam recebido.
PARCIALIDADE: vários estudos demonstram uma inclinação sistemática na literatura médica: pesquisadores revisaram ensaios clínicos randomizados feitos na China, no Japão, na Rússia e em Taiwan e descobriram que a maioria apresenta resultados positivos para a acupuntura. Estudos feitos em outras partes do mundo não encontram tantos benefícios. O problema ainda é agravado pela tendência de arquivar resultados negativos e publicar somente os positivos. No geral, as evidências da eficácia da técnica são ambíguas e bastante contraditórias, e os resultados difíceis de reproduzir.
ATENDIMENTO DE EMERGÊNCIA
Com raros efeitos colaterais, a maioria decorrente da prática incorreta e da falta de formação dos profissionais, a acupuntura é tema de polêmica, apesar de o Brasil ser considerado um dos centros mundiais de excelência nessa área. Atualmente, a técnica é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina, pela Associação Médica Brasileira e pela Comissão Nacional de Residência Médica. A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) abriga desde 1992 o Setor de Medicina Chinesa – Acupuntura, ligado ao Departamento de Ortopedia e Traumatologia da instituição. Desde 1998, o Hospital São Paulo, ligado à Unifesp, dispõe de um serviço de pronto-atendimento.
PICADAS NA PELE, EFEITOS ANALGÉSICOS NO CÉREBRO
Sob a óptica da medicina ocidental, a picada de uma agulha de acupuntura produz a condução de um impulso: receptores cutâneos transmitem informações sobre o local e a intensidade da dor até a medula espinhal. A partir daí, o sinal passa por diversas transformações (no mesencéfalo, por exemplo) até que, pela via do tronco cerebral e do diencéfalo, chega enfim ao tálamo (que faz parte do sistema límbico) e ao córtex somatossensorial, onde a dor é percebida de forma consciente. Então, o sistema límbico agrega ao impulso uma componente emocional: o incômodo da dor. Além disso, o cérebro reage ao estímulo da acupuntura da mesma maneira como a outras irritações provocadas por estresse: o corpo passa a secretar o hormônio ACTH (adrenocorticotrofina) em maior quantidade, o que, por sua vez, leva à produção de substâncias analgésicas.
O estímulo atua em pelo menos três planos. A primeira inibição da dor ocorre na medula espinhal. O estímulo provoca a secreção de encefalina e dinorfina, o que resulta na inibição da excitabilidade elétrica das células nervosas condutoras. Assim se explica também o rápido alívio da dor, o chamado efeito analgésico imediato da acupuntura: enquanto a agulha estiver fincada na pele, o estímulo atua contra as dores reais à maneira de uma manobra diversionista, ou seja, distraindo o paciente.
Especialistas como o médico Markus Backer, do Instituto de Medicina Natural e Integrada da Universidade de Duisburg-Essen, postulam ainda um segundo mecanismo, mais a longo prazo, no plano da medula espinhal: sinapses inibidoras diminuiriam de forma duradoura a força de transmissão das fibras nervosas condutoras, de tal modo que a dor real já não chegaria ao cérebro e, portanto , não poderia ser sentida.
Um terceiro mecanismo que também conduz à inibição mais duradoura pode ser atribuído a uma espécie de contrairritação do cérebro: mesmo bom tempo depois de retirada a agulha, a atividade que foi acionada em partes do diencéfalo persiste. A partir do hipotálamo ou da hipófise, hormônios como a betaendorfina retornam à medula espinhal, proporcionando ali um efeito analgésico duradouro.
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