SOMOS TODOS “PSICOSSOMÁTICOS”
Quando as dificuldades enfrentadas são muito intensas ou ocorrem num curto intervalo, sem que tenhamos tempo para nos recuperar, mesmo os mais equilibrados dificilmente conseguem absorver e elaborar os problemas. E o sofrimento se expressa no corpo de alguma forma.
No dia a dia observamos pessoas que adoeceram gravemente após terem tido um grande problema na vida. Cada vez mais, nos últimos anos, tem sido reconhecido o fato de que fatores psicológicos participam do aparecimento e curso de patologias físicas. Um caso que não deixa margem à dúvida: os pesquisadores americanos D. Phillips e D.G. Smith constataram que, na colheita chinesa da Califórnia, na semana que precede a festa da Colheita da Lua, em setembro, a mortalidade diminui 35% .Na semana seguinte, os índices se reequilibram, numa espécie de “compensação”, e as pessoas voltam a ser vitimadas por acidentes vasculares cerebrais, doenças cardíacas e neoplasias. “Vemos que a expectativa feliz da festa é um fator psicológico que garante um novo alento de vida aos chineses, diminuindo a mortalidade”, escreveu o oncologista francês Claude Jasmin ao analisar o caso.
Reconhecidamente, o estresse tem papel importante no desenvolvimento de doenças, tanto físicas quanto mentais. Esse estado, porém, parece impreciso, às vezes até mesmo para psicólogos. Nesse sentido, a psicossomática tem se mostrado uma opção para a compreensão dos processos mentais envolvidos no adoecimento físico. Curiosamente, essa área surgiu na França e nos Estados Unidos, embora seus formuladores não soubessem das pesquisas um do outro. Os europeus, na verdade, precederam os americanos em nove anos. Em 1963, Pierre Marty, então presidente da Sociedade Francesa de Psicanálise, e seus colaboradores publicaram o artigo O pensamento operatório. Em 1972, o psicanalista Peter Sifneos, professor da Universidade Harvard, introduziu a noção de alexitimia, que se referia praticamente ao mesmo que Marty. Ambos os termos significam que, numa situação difícil da vida (como perda ou separação, falência, ameaça persistente, forte humilhação), é mais comum que voltemos nosso pensamento para o que aconteceu, muitas vezes independentemente de nossa vontade, trazendo lembranças, imaginando consequências e tirando conclusões. Com isso, elaboramos o problema – e não importa se nossas conclusões são as melhores, nem se nosso pensamento corresponde à realidade, o que conta é que nossa mente se ocupe do problema.
No pensamento operatório, no entanto, a mente se volta minimamente ao que aconteceu. A formulação central proposta pela psicossomática é a seguinte: de qualquer forma o indivíduo é afetado pelo problema; se sua mente não o elabora, ele atinge o corpo, o soma, daí o termo somatização.
Particularmente, prefiro a psicossomática de Marty porque nela o pensamento operatório foi se refinando e dando lugar a diversificações e ao conceito de mentalização, oferecendo espaço a gradações. Fala-se hoje em pessoas “melhor” ou “pior” mentalizadas. Podemos pensar em exemplificar com dois indivíduos hipotéticos, A e B, relatando como foi seu dia:
A) Tomei café da manhã ouvindo as notícias.
B) Tomei café da manhã pensando na discussão ontem à noite com meu filho.
A) No trânsito, fiquei ouvindo música e pensando em tudo que ia fazer durante o dia.
B) No trânsito fiquei ouvindo música e uma delas me fez lembrar a vez em que dancei esta música com minha primeira namorada.
A) Fiquei pensando em C, em como será nossa convivência no trabalho, já que fui promovido e ele não.
B) Fiquei pensando sobre que faculdade meu filho deveria cursar e na viagem de formatura dele daqui a quatro anos. Será que vale a despesa?
A) Passei a tarde conversando com clientes. Quando finalmente fiquei só, pensei em como deveria conversar no dia seguinte com D sobre o projeto.
B) Passei a tarde conversando com os clientes.
A) À noite fiquei assistindo TV com minha mulher.
B) À noite fui à casa de minha mãe e me senti culpado de ter ficado pouco tempo lá, mas ando muito ocupado. Quando eu namorava, estava com minha mãe e queria logo ir embora ver minha namorada. No caminho me sentia culpado.
Podemos perceber que B é mais bem mentalizado em comparação a A, cujo pensamento é voltado a ações e ao momento presente (poucos dias antes, poucos dias depois). O pensamento de B tem autonomia, distancia-se das ações, tece relações (ou associações de ideias), faz incursões pelo passado longínquo ou futuro distante. Em razão das limitações decorrentes da pouca autonomia e do fato de se ater ao presente, a quantidade de pensa mentos de B acaba, consequentemente, sendo menor do que a de A. Numa psicoterapia, B não tem muito a dizer. Mas nos momentos difíceis da vida, A e B não mudam o funcionamento mental; o pensamento de B continua sendo sumário – mas em momentos críticos isso prejudica sua saúde física.
LIMITES TÊNUES
Quando a mentalização é precária e o pensamento é muito unido às ações, a vida onírica também se apresenta empobrecida. Quando dormimos e deixamos de agir, o pensamento se esvai e não há produção de sonhos – eles são muito raros, de tipo simples, sem elementos insólitos e de fácil interpretação, revelando assim a pouca atividade mental na sua construção.
Há algo importante a ser considerado: essa concepção de somatização só é válida para doenças graves (por definição, aquelas em que a possibilidade de morte é quase certa se a medicina não for capaz de intervir). Doenças crônicas muito comuns, que se apresentam geralmente na forma de crises – como asma, enxaqueca, cefaleia tensional, dores nas costas, prisão de ventre, gastrite e úlcera-, não seguem esse esquema, não têm relação com a mentalização, embora cada manifestação corresponda a uma dificuldade psicológica característica do paciente.
Porém, se as dificuldades enfrentadas forem muito intensas, principalmente se surgirem vários problemas simultâneos ou estes se sucederem em curto intervalo, mesmo uma pessoa com mentalização de boa qualidade dificilmente conseguirá absorver e elaborar os problemas e terá grandes possibilidades de somatizar gravemente – o que nos leva a crer que somos todos “psicossomáticos”. É importante destacar, porém, que o aparecimento de doenças graves depende de nossas predisposições genéticas e adquiridas – por exemplo, pelo uso do tabaco, ou de agentes do meio ambiente, como vírus e bactérias.
A personalidade mais vulnerável a somatizações graves foi chamada por Marty de neurose de comportamento. Nos Estados Unidos, alguns anos depois, o psicanalista Otto Kernberg descreveu o mesmo tipo de personalidade, designada borderline, que depois passou para a classificação do DSM- IV. A descrição de Marty, entretanto, continua mais completa por incluir a mentalização. Uma primeira característica dessa personalidade é a impulsividade. Significa que a ação é intempestiva, não há retenção no pensamento e a ação “transborda” em direção ao alvo. Isso ocorre porque o indivíduo é tomado por uma emoção muito intensa. Ora, a emoção fica muita intensa porque não cai na rede dos pensamentos, não é modulada por eles, justamente por haver “pouco pensamento”, ou seja, uma má mentalização. Outra característica do borderline consiste em estar quase permanentemente ligado a coisas externas, assistindo TV, por exemplo, ou fazendo algo.
Somos seres sociais; se não estamos nos relacionando com alguém presente, tecemos relações em nosso mundo interno, imaginando diálogos e as mais diversas situações. Como para o paciente com características borderlines falta esse contato interno, o processo se dá externamente. A pessoa vive temendo separações, e seu ponto fraco para somatizações é justamente a ruptura de relacionamentos. Nessas ocasiões, o indivíduo fica desesperado, até eventualmente encontrar substitutos.
A principal causa da constituição da personalidade borderline está nos maus cuidados com o bebê. Na prática, isso se dá em situações de falta de amor ou incoerência afetiva (na qual sentimentos positivos se alternam com negativos de um momento para o outro), violência física, caos na guarda (a criança passa semanas ou meses com a mãe, outras semanas ou meses com a avó, até poder ir parar num abrigo). Nos casos mais graves, encontramos todos esses antecedentes. Nessas condições de maus cuida dos, a mentalização mal se constitui. O prejuízo pode ser revertido na infância se as condições mudarem, mas depois dessa fase torna-se mais difícil reparar os prejuízos.
Pessoas com mentalização um pouco melhor que os que sofrem com a personalidade borderline podem apresentar neurose de caráter (o termo foi usado por Marty e substituído depois por neurose mal mentalizada). A descrição do psicanalista francês também precedeu a da personalidade narcísica apresentada pelos psicanalistas Heinz Kohut e Otto Kernberg, que também passou para a classificação do DSM- IV. A descrição de Marty é mais abrangente porque parte de formas mais amenas – embora já vulneráveis a somatizações graves – em vez de manifestações nas quais a patologia mental é mais evidente. O DSM IV volta-se para quadros sintomáticos mais “evidentes e barulhentos” e assim considera dentro de uma faixa de normalidade formas mais brandas que, no entanto, podem estar correlacionadas com maior vulnerabilidade para somatizações graves.
Na personalidade narcísica o investimento essencial está na formação de um ego ideal, segundo a nomenclatura de Marty – ou self grandioso, conforme Kohut e Kernberg. Ainda na infância o sujeito mostra certa independência, como se não precisasse dos cuidadores.
Na adolescência formam-se fantasias de muito poder, riqueza, beleza e principalmente a necessidade da relação superior-inferior, na qual o narcisista estaria obviamente identificado com o superior. Nesse caso, os cuidados negligentes com o bebê não foram tão ruins quanto no caso do paciente borderline. Aqui, geralmente, o que mais ocorre é falta de amor e dedicação, uma hostilidade encoberta. Compensatoriamente o bebê infla seu self e agarra-se a ele (enquanto o borderline se agarra às pessoas). Como os cuidados não foram de boa qualidade, consequentemente, além do self grandioso, deparamos com uma má mentalização.
Maiores problemas na vida, como falência e traição, por exemplo, ferem o self grandioso. Se o indivíduo não consegue culpar outros ou responsabilizar as circunstâncias, fica arrasado, o que pode ser uma porta de entrada da somatização grave. Mas o próprio ciclo da vida com a chegada da meia-idade e o início do processo de envelhecimento dificilmente é aceito pelo self grandioso, já que a pessoa cultiva a ideia de que estar envelhecendo é sinal de inferioridade, o que pode resultar em somatizações graves.
Um terceiro funcionamento mental propenso ao adoecimento foi chamado por Marty de mentalização incerta. O paciente mostra pouca presença da mente como nas más mentalizações vistas antes, no entanto, um dia a pessoa relata um sonho complexo ou tece relações reflexivas como nas boas mentalizações. Isso, porém, é “sem amanhã” – e o paciente volta por muito tempo à precariedade dos conteúdos mentais. Na realidade, não se trata de uma má mentalização, mas sim de uma repressão maciça do pré-consciente (numa referência a conteúdos que sabemos existirem, diferentemente dos conteúdos inconscientes). O indivíduo não quer saber de si (é como se existisse outro ele dentro dele). Muitas vezes mais voltada a profissões e atividades técnicas, essa pessoa isola seu universo psíquico e tende a ver a psicologia com certo escárnio. Esse tipo de paciente chega à terapia normalmente por insistência de alguém próximo. Se o terapeuta não focar logo essa repressão maciça, a possibilidade de o paciente deixar o tratamento é grande. Como esse indivíduo não apresenta nenhum sintoma “barulhento”, ele ficou excluído do DSM-IV.
RAÍZES NA INFÂNCIA
Há duas causas da repressão maciça. A primeira e mais comum consiste na educação relativamente afetuosa mas muito severa e aplicada precocemente. Em linhas gerais, é como se o bebê tivesse de aprender a dizer “obrigado” quando ganha algo, antes mesmo de aprender a dizer “mama” e “papa”. Uma segunda causa vem de traumas ocorridos depois dos 2 anos, como a morte de um dos pais, as separações muito tumultuadas entre eles ou o abuso sexual. Não querer pensar no que aconteceu aparece como defesa natural da criança, mas se perdurar isso trará prejuízos ao seu desenvolvimento, já que a defesa pode se cristalizar e se generalizar, resultando na mentalização incerta – infelizmente, na intenção de preservar a criança, muitos cuidadores favorecem esse desdobramento.
Os momentos muito difíceis são acompanhados normalmente de ansiedades difusas. São estados de aflição muito intensos, relativamente justificados pelos fatos. No DSM-IV, caberiam no item que se refere a transtorno de adaptação, e não aos transtornos de ansiedade (pânico, ansiedade generalizada, fobias, transtorno obsessivo compulsivo, reapresentação do trauma), cuja causa aparentemente não é justificada. No paciente bordeline, os estados de desespero são equivalentes da ansiedade difusa, e, no paciente narcísico, os momentos em que se sente arrasado que são equivalentes da ansiedade difusa. Na realidade, a ansiedade difusa propriamente dita ocorre mais nas melhores mentalizações (que podem conduzir a somatizações graves). Também nas melhores mentalizações podemos constatar, antes que a doença se instaure, o que Marty chamou de depressão essencial. Ela é indolor, sem a tristeza e/ou imobilidade que caracteriza a depressão na classificação do DSM-IV. Na manifestação à qual Marty se refere, vemos desaparecer a vida onírica, a pessoa deixa de ter ideias e cai em fórmulas feitas, na repetição do mesmo, em automatismos.
Na psicoterapia, o profissional procura, de imediato, assumir o papel do ego auxiliar da mentalização do paciente, trazendo a dificuldade de vida como tema a ser tratado e examinando os vários aspectos da questão, de forma a chegar gradativamente às partes mais dolorosas, não deixando o assunto esmorecer, que seria uma tendência natural na má mentalização. Ao longo do processo terapêutico, a proposta é ajudar a pessoa a melhorar sua capacidade de mentalização para que possa elaborar os problemas futuros de maneira mais eficiente.
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