A MÍNIMA DIFERENÇA
Os ícones da feminilidade se modificaram e as diferenças entre os sexos têm se diluído, mas permanecem os impasses e as pretensões de homens e mulheres em torno do amor e do desejo.
Há mais de cem anos não se fala em outra coisa. O falatório surpreenderia o próprio Freud. Se ele criou um espaço e uma escuta para que a histérica pudesse fazer falar seu sexo em um tempo cuja norma era o silêncio, o que restaria ainda por dizer ao psicanalista quando a sexualidade circula freneticamente em palavras e imagens como a mais universal das mercadorias? O escândalo e o enigma do sexo permanecem deslocados – já não se trata da interdição dos corpos e dos atos – , avisando que a psicanálise ainda não acabou de cumprir seu papel. Mulheres e homens vão aos consultórios dos analistas (e, como sempre, mais mulheres do que homens), procurando, no mínimo, restabelecer um lugar fora de cena para uma fala que, despojada de seu papel de lata de lixo do inconsciente (no que reside justamente sua obscenidade), vem sendo exposta à exaustão, ocupando lugar de destaque na cena social, até a produção de uma aparência de total normalidade.
Parece que nada mudou muito: mulheres e homens continuam procurando a psicanálise para falar da sexualidade e de suas ressonâncias, mas o que se diz já não é a mesma coisa. “O que devo fazer para ser amada e desejada?”, perguntam as mulheres, com algum ressentimento: não era de esperar que o amor se tornasse tão difícil já nos primeiros degraus do paraíso da emancipação sexual feminina. “O que faço para ser capaz de amar aquela que afinal me revelou seu desejo?”, perguntam os homens, perplexos diante da inversão da antiga observação freudiana segundo a qual é próprio do feminino fazer-se amar e desejar e próprio do homem, Narciso ferido eternamente em busca de restauração, amar sem descanso aquela que parece deter os segredos de sua cura. Mulheres que já não sabem se fazer amar, homens que já não amam como antigamente. Como se pedissem aos psicanalistas: “O que faço para (voltar a) ser mulher?”, “Como posso (voltar a) ser homem?”.
CAMPO MINADO
Incapaz de formular uma interpretação satisfatória para o que ouço no consultório e na vida, dou voltas em torno desse mal-estar. Tento cercar com perguntas aquilo para o que não encontro resposta. É possível que a relação consciente/ inconsciente se modifique à medida que mudam as normas, os costumes, a superfície dos comportamentos, os disc ursos dominantes? A questão remete, sim, à relação entre recalque e repressão. Se mudam as normas, mudam os ideais e o campo das identificações – e, com eles, parte das exigências do superego, parte das representações submetidas pelo menos ao recalque secundário – , mudam também as chamadas soluções de compromisso, os sintomas que tentam dar conta simultaneamente da interdição e do desejo recalcado… Dito de outra forma: os “novos tempos” nos trazem novos sujeitos? No vos homens e mulheres colocam outras questões à observação psicanalítica? E aqui vai a ressalva: não há nenhuma euforia, nenhum otimismo no emprego da palavra “novo”. A própria psicanálise já nos ensinou que a cada barreira removida, a cada véu levantado deparamos não com um paraíso de conflitos resolvidos, e sim com um campo minado ainda desconhecido.
Avancemos mais alguns passos nesse campo minado. O lugar reservado às mulheres na cena social {e sexual) desde o surgimento da psicanálise foi sendo alterado {por obra, entre outras coisas, das próprias contribuições freudianas) e ampliado; as insígnias da feminilidade se modificaram, se confundiram, as diferenças entre os sexos foram sendo borradas até o ponto em que a revista americana Time publicou em 1992, como artigo de capa, a seguinte pesquisa: “Homens e mulheres nascem diferentes?”. Na dinâmica de encontro e desencontro entre os sexos, a intensa movimentação das tropas femininas nas últimas décadas parece ter deslocado os significantes do masculino e do feminino a tal ponto que vemos caber aos homens o papel de Narcises frígidos e às mulheres o de desejantes sempre insatisfeitas. Não cabe hoje aos homens dizer “Devagar com a louça!”, aterrados diante da audácia dessas que até uma ou duas gerações atrás pareciam aceitar as investidas do desejo masculino como homenagem a sua perfeição ou como o mal necessário da vida conjugal?
Já sabemos que o homem odeia o que o aterroriza. Se a verdade do sexo vazio da mulher sempre tem de ser dissimulada com os engodes fálicos da beleza e da indiferença , tal a angústia que é capaz de provocar em quem ainda sente que tem “algo a perder”, essa angústia parece redobrar diante da evidência de que esse sexo vazio também é faminto, voraz. “O que elas querem de nós?”, indagam entre si os varões, tentando se assegurar de que ainda é possível entrar e sair da relação com a mulher, sem deixar por isso de ser homens – mas como, se a mulher que expõe seu desejo sexual age “como um homem” e com isso os feminiza?
AGRURAS DA PAIXÃO
Os artistas da virada do século 19 para o 20 já previam a sorte dessas novas-ricas da conquista amorosa. Ana Karenina (Tolstoi, 1873 -1877) pagou por sua ousadia debaixo das rodas de um trem, como “a mais desgraçada das mulheres”, enlouquecida ao descobrir que o amor não é meio de vida, não garante nada – o casamento, sim. Emma Bovary (Flaubert, 1853-1856) queimou as entranhas com arsênico por não ter sido capaz de tomar a aventura amorosa do mesmo modo que seu amante Rodolfo – apenas como uma aventura. Na virada do século, já não havia Werther que destruísse sua vida pela utopia do amor de uma mulher, que foi deixando de ser utopia para se tornar fato corriqueiro: são as grandes amorosas que se matam, então, ao descobrir que seu dom mais precioso perde parte do valor, justamente na medida em que é dado.
O destino de Nora (lbsen, 1879) nos parece mais promissor, porque a peça termina quando tudo ainda está por começar. Ela abandona a “casa de bonecas” ao descobrir que sua alienação (termo que lbsen nunca usou) era condição de felicidade conjugal. Depois de entender que no código do marido o amor mais apaixonado só iria até onde fossem as conveniências, Nora recusa o retorno à condição feminina-infantil de seu tempo e sai em busca de…mas aqui cai o pano e agora, mais de um século depois, fazemos o balanço do que ela encontrou. Independência econômica, algum poder, cultura e possibilidades de sublimação impensáveis para a mulher restrita ao espaço doméstico. Também a possibilidade da escolha sexual, e a segunda (e a terceira, e a quarta…) chance de um casamento feliz. E a possibilidade de conhecer vários homens e compará-los. De ser parceira do homem, reduzindo a distância entre os sexos até o limite da mínima diferença. Mas teria Nora, melhor que as contemporâneas literárias, conquistado alguma garantia de corresponder às paixões masculinas sem “se desgraçar”?
No Brasil, onde historicamente todas as diferenças são menos acentuadas, a história de amor mais marcante já no século 20 é a de um engano. É por engano que o jagunço Riobaldo (Guimarães Rosa, 1956) se apaixona por seu companheiro Diadorim, ou Maria Deodorina, que acaba perdendo a vida em consequência de sua mascarada viril. É por engano – ou não é? – que Diadorim desperta a paixão de um homem, travestida de homem, por sua feminilidade diabólica que se insinua e se inscreve justo onde deveriam estar os traços mais fortes de sua masculinidade – a audácia, a coragem física, o silêncio taciturno. Como se Guimarães Rosa tivesse dado a entender, lacanianamente: se uma mulher quer ser homem, isso não faz a menor diferença, desde que continue sendo mulher. Ou mais: se uma mulher quer ser homem e se esconde nisso, daí, sim, é que ela é mesmo mulher.
O fato é que não se trata só de esconder ou disfarçar, como no caso de Diadorim. O avanço das Noras do século 21 sobre espaços tradicionalmente masculinos, as novas identificações (mesmo que de traços secundários) feitas pelas mulheres em relação a atributos que até então caracterizavam os homens não são meros disfarces: são aquisições que tornaram a(s) identidade(s) feminina(s) mais rica(s) e mais complexa(s)- o que teve, é claro, seu preço em intolerância e desentendimento, de parte a parte. Aqui tomo emprestado um conceito que Freud empregou em Mal-estar na cultura (1920), sem ter se estendido mais sobre ele. Nesse texto Freud cunhou a expressão “narcisismo das pequenas diferenças”, tentando explicar as grandes intolerâncias étnicas, raciais e nacionais, sobretudo as que pesavam sobre os judeus na Europa. É quando a diferença é pequena, e não quando é acentuada, que o outro se torna alvo de intolerância. É quando territórios que deveriam estar bem apartados se tornam próximos demais, quando as insígnias da diferença começam a desfocar que a intolerância é convocada a restabelecer uma discriminação, no duplo sentido da palavra, sem a qual as identidades ficariam muito ameaçadas.
FALOS E BRUXAS
No caso das pequenas diferenças entre homens e mulheres, parecem ser os homens os mais afetados pela recente interpenetração de territórios – e não só porque isso implica possíveis perdas de poder, como argumentaria um feminismo mais belicoso, e sim porque coloca a própria identidade masculina em questão. Sabemos que a mulher encara a conquista de atributos “masculinos” como direito seu, reapropriação de algo que de fato lhe pertence e há muito lhe foi tomado. Por outro lado, a uma mulher é impossível roubar a feminilidade: se a feminilidade é máscara sobre um vazio, todo atributo fálico virá sempre incrementar essa função. já para o homem, toda feminização é sentida como perda – ou como antiga ameaça que afinal se cumpre. Ao homem interessa manter a mulher a distância, tentando garantir que esse “a mais” inscrito em seu corpo lhe confira de fato alguma imunidade.
A aproximação entre as aparências, as ações, os atributos masculinos e femininos são para o homem mais do que angustiantes. É de terror e de fascínio que se trata quando um homem se vê diante da pretensão feminina de ser também homem sem deixar de ser mulher. Bruxas, feiticeiras, possuídas pelo demônio, assim se designavam na Antiguidade essas aberrações do mundo feminino que levavam a mascarada de sua feminilidade até um limite intolerável. Se a morte, a fogueira ou a guilhotina seriam capazes de pôr fim à onipotência dessas que já nasceram “sem nada a perder”.
SERES ESVAZIADOS
E quem duvida de que Ana Karenina, Emma Bovary, Nora, Deodorina tenham se tornado aquilo que se costuma chamar de “mulheres de verdade” a partir do momento em que abandonaram seus postos na conquista desse “a mais” que, tão logo conquistado, parece lhes cair como uma luva? Mas quem duvida também de que o preço dessas conquistas continue sendo altíssimo? Quando não a morte do corpo (pois não é no corpo que se situa o tal “a mais” da mulher!), a morte de um reconhecimento pelo outro, na falta do qual a mulher cai em um vazio intolerável. Pois, se a mulher se faz também homem, é ainda por amor que ela o faz – para ser ainda mais digna do amor.
Quando o amor e o desejo da mulher se libertam de seu aprisionamento narcísico e repressivo para corresponder aos do homem, parece que alguma coisa se esvazia no próprio ser da mulher. Os suicídios de Ana e Emma são, nesse caso, exemplares. Teriam suas vidas perdido o sentido depois que elas se entregaram sem restrições ao conde Vronsky e a Rodolfo Boulanger? Não; eu diria que a perda de sentido se dá nelas próprias. Ao desejarem e amarem tanto quanto foram amadas e desejadas, elas deixaram de fazer sentido como mulheres – primeiro para os amantes, depois para si mesmas.
Na defesa do narcisismo das pequenas diferenças, é do reconhecimento amoroso que o homem ainda pode privar a mulher, esta que parece não se privar de mais nada, não se deter mais no gozo de suas recentes conquistas. Mas não se imagine que o homem o faz (apenas) por cálculo vingativo. É que ele já não consegue reconhecer essa mulher tão parecida consigo mesmo, na qual também odiaria ter de se reconhecer.
Vale ainda dizer que não é só da falta de reconhecimento masculino que se trata o abandono e a solidão da mulher. já nos primórdios dessa movimentação toda, os psicanalistas Melanie Klein e Joan Riviere escreviam que, muito mais do que a vingança masculina, o que uma mulher teme em represália por suas conquistas é o ódio de outra mulher, aquela a quem se tentou suplantar etc. etc. – ódio que frequentemente se confirma “no real”, para além das fantasias persecutórias.
E aqui abandono o campo minado das “novas sexualidades” sem nada além de hipóteses e questões a respeito de nosso mal-estar, antes que este texto se torne paranoico ; mas como não ser paranoico um texto escrito por mulher, sobre a ambiguidade, os impasses e as pretensões da sexualidade feminina?
MARIA RITA KEHL – é psicanalista, doutora em psicanálise e autora, entre outros livros, de O tempo e o cão: a atualidade das depressões (Boitempo, em impressão). Este artigo foi publicado originalmente no livro A mínima diferença – o masculino e o feminino na cultura (Imago, 1996), esgotado.
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