AS INJÚRIAS DA FELICIDADE
O mundo não é uma brincadeira de criança sem risco. A vida adulta exclui a imaginação lúdica saudável e dá lugar às crenças inerentes aos pensamentos positivos rumo ao futuro.
Já dizia o poeta: “Não quero ter razão, quero ser feliz!” Em tempos de promessas, virada de ano, tempos difíceis, mudanças, de crises existenciais e outras mais, cada um recorre a algo a que possa se segurar. Muitos recorrem à onipotência do pensamento chamado de positivo, combatendo o negativo como se o querer consciente fosse um milagre retilíneo uniforme. Ainda que este tipo de pensamento designado de positivo pela consciência tenha seu lugar e suas funções confortantes para muitas pessoas, ele não é definidor de mundo.
Não se trata de ser pessimista o fato de saber que o mundo não gira ao redor do umbigo do pensamento, mas se trata de encarar a angústia magna existente para o ser falante. Ao falar, indagar, inserir a linguagem que corta o todo naturalizado do mundo, o ser humano se depara com a intrínseca angústia de não ser todo. Falar é assumir que é faltante, viver é isso, fazer da falta um bom motivo para fazer algo de tudo. A falta pode ser adereço central do desejo se a tomarmos como faísca de linguagem.
Muitos, na sua essência faltante, em sua euforia de querer ser mais em meio à sociedade do espetáculo feliz, das imagens do todo, da ditadura do sorriso de prótese, acabam se angustiando ao saber que a felicidade plena é inconivente com o modo humano de ser. Para estes, a felicidade surge como mercadoria promissora, onde vendem os pergaminhos, bulas, treinos, itens e tudo mais que for necessário para irem tamponando o que não tem tampa, mas tem borda. Ao apostar todas suas fichas nesses indícios prometidos e fracassar perante o delineado esperado, o sujeito inaugura nova rotina de angústia em resposta ao exercício da castração que ameaça o Eu.
A angústia, em Psicanálise, é um sinal de alerta a ser escutado. Ela vem, estrangula o dito não dito, agita o ser por falar tocando diretamente na víscera real do corpo que habitamos. A angústia chama para a vida ao lembrar da morte: e agora? O sujeito tem que se haver com sua condição. Não dá para se estabilizar na angústia, pois ela é o afeto que não brinca em serviço. A angústia, que rasga de dentro para fora, mostra que não se foge de si mesmo. É imprescindível encará-la, ainda que a vontade seja a de sair correndo, sem rumo, lenço e documento.
Escutar a si mesmo é tarefa árdua, difícil, inefável e laboriosa, pois não se trata de escutar o rasante dos pensamentos tão somente, uma vez que por eles inclusive nos enganamos e maquiamos em fantasias o que não vai bem. Escutar a si mesmo é aceitar sua dolorida condição. Daí, numa Psicanálise, as pessoas que esperavam tudo aconchegante saírem com labirintite psíquica. Em pensamentos, reformulamos o mundo de forma afável, somos carismáticos conosco mesmos, maquiamos narcisicamente nossa condição, ensimesmamos fetiches de salvação. Penso, logo egoísmo. Necessitamos ir além das defesas pensantes que criamos se desejamos romper com as rígidas repetições que nos alinham no sofrer. Na dinâmica da vida é preciso fazer o luto da onipotência, permitindo indagar o pensamento, aceitando a condição faltante. Não será sem suporte, certamente será com medidas paliativas, cada um com as suas, tal como aponta Freud: “A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós, proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas” (Freud, 1930).
Cada pessoa deverá analisar quais medidas paliativas lhe servem em seu propósito de vida.
CIVILIZAÇÃO
Em se tratando de civilização, Freud afirma que uma das condições centrais para que esta exista, ainda que manquejando, é a de que “o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança” (Freud, 1930). Desse modo, suportar as pequenas diferenças e se ouriçar nas relações é condição sine qua non para viver em civilização. Por ouriçar, entendamos, conforme Schopenhauer aponta em sua escrita dos porcos espinhos na noite de inverno: caso estejam muito próximos, se ferem e sangram, podendo morrer pela proximidade sufocante e perfurante dos espinhos. Se muito distante, podem morrer pelo frio. Portanto, se faz necessária uma distância encontrada que não seja muito próxima ou tão longínqua.
Aqueles passos que sonhamos para alcançar a felicidade, aqueles conselhos que indicam o caminho, os manuais do que fazer e como fazer que garantem sucesso jogam com nosso desamparo. Aqui se encaixa bem um postulado de Freud, em O Mal-estar na Civilização: “Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem que descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo” (Freud, 1929). A vida humana é singularmente inventiva, não há roteiro, manual, passo a passo, nada que garanta. A felicidade, sempre em pedaços, é feita, construída, às vezes aparece de surpresa, e esta vai além do cair nas artimanhas da sedução de soluções rápidas.
É confortante deslocar as resolutivas dos problemas ao poder do pensamento ou a alguém. O outro nada pode por nós, pode “com nós”. E apostar no pensamento mágico é se portar como se fôssemos bebês com a onipotência de seu choro: chora se, esperneia-se, basicamente não se faz mais do que isso e o mundo nos atende. Os pensamentos mágicos são derivados de nossas experiências da tenra infância. Desde os primórdios, o pensamento mágico demarca presenças, nos credos, rituais tribais e mitos fundadores. Chora-se e magicamente aparecem quentinho copo de leite, seio com afeto, soluções mirabolantes, acaloramentos, nutrientes afetivos e vitamínicos. Eis aqui o protótipo do credo no pensamento mágico onipotente. Econômico e até então eficaz. Até então.
Até então, pois a posteriori o princípio de realidade surge e demarca que castrações nos chamam ao movimento. Pelo atemporal do inconsciente (o inconsciente tem um peculiar tempo psíquico, no qual memórias amalgamam e reinventam noções de passado, presente e futuro), muitos ainda estão enraizados nesse badalar da vida psíquica, crianças de várias adultas idades. O infantil em nós é por toda vida. Por esse motivo, pelos traçados da infância, ao lado disso tudo, o que se está colocando é a onipotência de uma carência que existe em nós: de um outro que cuide de nós, que faça por nós, que nos acolha, que nos indique e que nos ensine a caminhar, que segure nossa mão, alguém que nos salve ainda que saibamos não se tratar de salvação. Demandamos amor e buscamos enrijecer o poder a um outro da verdade, cremos nele, não por ele, mas pelo amor dele: “Uma criança sente-se inferior quando verifica que não é amada, o mesmo se passa com o adulto” (Freud, 1936).
PRINCÍPIO DE REALIDADE
A identificação, o espelho, a tentativa imitante, ecolalias do fazer constituem papel fundamental no desenvolvimento do sujeito frente ao seu mal-estar. Desenvolver aponta que primeiro se envolve e depois se “desenvolve” para herdar algo e fazê-lo teu. Do princípio de prazer, no qual se desenvolvem desejos e fantasias, advém, em um porvir existencial, o princípio de realidade, no qual se desenvolve o ajeitar-se em meio às ameaças de castração do mundo social. O princípio de prazer é pulsionalmente mortífero, visa o princípio de nirvana.
O advento do princípio de realidade não anula o princípio de prazer. Segundo Freud, “a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade não implica a deposição daquele, mas apenas sua proteção” (Freud, 1911). A partir desse motivo, dentre outros, é que somos desmedidas e incomensuráveis vezes guiados por nós mesmos para lá, onde não sabemos que sabemos. Um saber que escapa à razão pensante e que diz pelos rastros repetitivos dos experimentos da vida cotidiana. Em busca de algo outrora perdido para sempre manifestamos dizeres em lapsos da língua, do corpo, da memória, por pilhérias, trocadilhos e chistes, além de dizermos em metáforas, nos sonhos e sintomas. O inconsciente diz de um saber que relutamos saber que sabemos, uma resistência que adoece produzindo estrangulados dizeres sintomáticos. Quanto mais o sujeito tenta negar a si mesmo, mais ele se afirma sem perceber. O inconsciente é dinamizado por processos primários que escapam à lógica do tempo cronológico, à realidade externa, à caracterização de bem e bom, é afirmativo e ainda ausenta contradições mútuas. As características do inconsciente, como podemos perceber, diferenciam-se, e muito, dos pensamentos. Secundariamente é que emerge, organizando-se para a consciência e os outros, o escopo pensante. Uma psicanálise não é para fazer pensar alinhavado, e sim causar ondas para que algo mude, ainda que o sujeito nem saiba de onde aquilo veio. No pensamento, assim como na confissão, fala-se o que se sabe, e no inconsciente, pela associação livre sob transferência, o sujeito diz mais do que sabe, até prega em si mesmo surpresas acerca de quem se é.
Portanto, compreendemos que os pensamentos são fabricados a partir de processos primários de cada um, sendo este um dos caminhos a escutar, destrinchar e seguir rumo a algo dito em suas entrelinhas. O pensamento é um derivado secundário da vida psíquica, tem sua importância, compete sabermos de qual modo ele se encaixa na psicopatologia da vida cotidiana do sujeito. Ele advém como produto condensado e alinhavado de elementos que desconhecemos que sabemos, “ah, sei lá!”, dizem comumente as pessoas, apontando que em algum lugar sabem, mas não percebem onde e de que modo, mas, ao inverso do que podemos imaginar, o inconsciente que não é inconsequente, “parece que não está em mim essa coisa”, “fiquei cego na hora’ “não sei, tem algo em mim”, “quando vi, já tinha feito’ é linguagem nossa e somos por ela responsáveis. Escutar é ético, na medida em que coloca o sujeito nas rédeas do responder às suas mazelas e delícias.
Acerca dos pensamentos, podemos pensar (ironia) que eles, os pensamentos, são coberturas da razão. A razão é uma cobertura de algo, o dito senso comum já o aponta ao dizer que tal pessoa “está coberta de razão”. Usam e abusam dessas coberturas, como drogas, mesmo, viciosas. O pensamento está certeiramente nas procrastinações, assim como a razão está nas defensivas ante os afetos. Os pensamentos estão na busca lógica pela felicidade plena inalcançável por excelência.
INJÚRIAS DO PENSAMENTO
Freud (1915) postula que “o pensamento é o ensaio da ação”. Um ensaio que desmedidas vezes aniquila a ação. Como numa festa marcante, num show, compra-se o ingresso meses antes, por exemplo, pensa se como será bom, deleita- se, traça-se o que fazer, com quem fazer e como fazer, gozam-se maravilhas no pensamento, perdem-se noites de sono e quando está para chegar a hora já se esvaziou aquela expectativa criada e um desânimo emerge. O pensamento aqui não saiu do ensaio e ficar nele garante ao sujeito que a ação não atrapalhe a delícia construída por ele. Outro exemplo do pensamento como realização em si mesmo, se assim podemos dizer, é quando uma pessoa vai caminhando em direção ao seu patrão, e o patrão em direção à pessoa, e ela pensando: “Vou pedir aumento, vou pedir aumento, vou pedir…” o patrão passa e ela “eu deveria ter pedido aumento, deveria ter pedido!” O pensamento estava montado, ela sabia o que fazer, mas algo maior na história daquela pessoa fez com que ela, frente a um lugar de poder, recuasse em seu propósito.
Outra forma de utilizar o pensamento como modo de ser feliz, ou de despistar tristeza, ou de tentar se garantir que se prova ineficiente ou demasiado limitado é quando a pes soa tenta conduzir sentimentos pelo pensamento. Até dizem “vai namorar com ele mesmo? Pensou direito?”, “Gosta dela mesmo? Tem que pensar duas vezes”. Como se uma forma de pensamento, de interpretação fosse capaz de garantir uma felicidade e prevenir o sujeito de embaraços. Na lógica reacional, há quem, em luto, sofrendo pelo término, diga a si mesmo e reafirme reiteradas vezes: “Não vou me apaixonar, não vou me apaixonar, não vou…” e quando menos se espera, quando percebe, já está sendo levado a uma relação. Algo aqui escapa. Algo conduz. Esse fetiche do pensamento, como forma motriz de garantia de felicidade, tem a consequência de limitar o sujeito. Obviamente, o pensamento é importante. No entanto, é mais óbvio ainda termos que indagar o óbvio para não ficarmos reféns do mundo. Como ser senhor de seus pensamentos é uma interessante questão. Pensamentos lapidados, sedutores, sem furos servem para? Acomodar-se em demasia assassina o desejo, estrangula a fabricação de si. Na obsessividade do pensamento podemos falar em um “penso, logo desisto”. Para outros, “penso, logo procrastino”. E, ainda, “penso, logo suporto”. Tudo isso não anula a epígrafe famosa do “penso, logo existo”, porém é preciso saber que existimos fora do pensamento.
Por essas supracitadas vias podemos pensar em ao menos dois usos distintos do pensamento: aquele ao qual se é levado pela ilusão e ao qual se é impelido ao se mover, devido ao surgimento de um desassossego. Um pensamento que finda e um pensamento que funda o comprometimento. A diferença está na posição do sujeito. No primeiro, o sujeito se coloca como passivo da atuação, refém das conspirações do universo, sufoca sua existência singular e se faz objeto dos rotacionais movi mentos de forças maiores. Ativa um suposto e confortante controle, pois sabe o que fazer por e com ele. Este controla tudo pela mente, pelo seu credo, nada pode fazer além disso, de aceitar, de receber, logo nada faz para que se realize, deixa à mercê do querer alheio da força maior chamada de destino. Anula em si que destino é construção e que estamos fadados a repetição se não tratarmos de analisá-lo. Desvirtua o seu desejo, sequer deseja, pois desejar é ser rotacional em outro ritmo e ali não se permite tal injúria.
REFLEXOS
No segundo modo de pensamento, o reflexivo, que visa reflexos do interno, que desacalenta e cria movimentos pelos furos existentes, o sujeito se coloca incomodado e encara o ato, vai ao fazer, se vira, assume-se como senhor, em parte, de sua casa, arca com as consequências, responde aos efeitos, responsabiliza-se por mudar o que, na outra lógica estaria fadado a, abandona a queixa e parte rumo à tentativa que soluciona, estando, assim, ativo na atuação que nasce de um pensamento e passivo perante o resultado, pois tudo pode acontecer, não se sabe o que virá, como virá e de onde, mas não objetaliza-se recuando do viver. Em ambos os modos de pensar temos ilusões que o sujeito cria, uma do alcance da possibilidade castrada e outra de que forças maiores reservam vanglórias a si. A ilusão é uma medida paliativa que nos habita desde cedo na vida. Em uma ilusão, na da vanglória que ele tanto merece, e cria justificativas racionais para tal, a felicidade em seus pedaços está no pensamento de que dará certo e pronto, fala por ânsia fantasmagórica. Na outra ilusão, a de pensar que nem tudo pode e por isso deve estar apto a viver lutos se der errado, a felicidade é uma aposta que poderá surgir ou não nos pedaços das realizações deste porvir. De todo modo, a ilusão nos move da imagem está tica a um drama e por esse drama é que o ser humano ilude a si mesmo, o que não significa ser um erro, não é isso. É um arranjo que deve ser avaliado na singularidade. Para ter ilusão é preciso ter alguma história. Podemos tomar a ilusão como uma das formações distorcidas do desejo: “Quando digo que todas essas coisas são ilusões, devo definir o significado da palavra. Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro, nem tampouco um erro. […] O que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. […] As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis, ou em contradição com a realidade” Freud, 1927).
SINTOMA DA CAUSA E EFEITO
Cura em Psicanálise: queijos no divã. Muito se diz do tratamento psicanalítico, tratamento existencial sob transferência – vínculo clínico. A Psicanálise trata sintomas? Sim, mas não tão somente aqueles psiquiátricos. São sintomas singulares, não para serem eliminados, mas sim tratados, escutados. Esses sintomas dizem do sujeito, o organizam desorganizando-o, eliminá-los é emudecer o existir. Se o sujeito não reinventa outro modo de lidar com seu profundo mal-estar fica ruim com o sintoma e pior sem ele, o desamparo assola, pois o sujeito perde parte falante de si. Trata-se, então, de escutá-lo para fazer falar de outro modo. Fazer falar o sintoma é ser causa de desejo. São sintomas que se entregam à transferência. O sujeito em seu inconsciente aceita ser tratado: sim, toma! E entrega seus dizeres rumo à possibilidade de desembaraçar-se dos conflitos da confusão de língua. Tendo um irredutível do ser, a Psicanálise possibilitando a reinvenção singular do sujeito, com seus pares e ímpares, não busca uma cura no sentido médico do termo. É o sujeito que utiliza o bisturi da língua para operar sua relação com o destino flexibilizando repetições. Então qual cura é possível? A cura do queijo. Queijo curado é aquele maturado pelo tempo dele, o tempo lógico se faz importante e mediante contatos externos e borbulhas internas eles fazem sua consistência e sabor serem únicos. Queijo curado depende do corte. do manejo, fica com seus furos e particularidades. Queijo curado tem história, necessita de cuidados e responde a eles. Queijo curado é queijo que, com o modo de se relacionar com o que lhe toca, clima, bactérias, material que suga salmoura ou não, luz, cria uma crosta fiel à sua necessidade e consegue resistir cada vez mais ao mundo aberto e seus perigos. Vive melhor em locais nos quais antes apodrecia, ficava amargo. Aprende a lidar com o que o circunda. Essa é a cura, a construção de uma nova capacidade de lidar com o mundo sob a essência antiga, transformação, não sem dificuldades!
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