JUNG E O CAMINHO EM DIREÇÃO A SI MESMO
Os conceitos de inconsciente coletivo, individuação, sombra e arquétipo revelam o caráter universal de imagens e dinâmicas do inconsciente.
Uma das ideias centrais da psicologia analítica, criada pelo psiquiatra Carl Gustav Jung, é o processo de individuação, que percorre toda a evolução humana (tanto no nível pessoal como no coletivo). Trata-se do processo de “tornar-se uma pessoa inteira”, subjetivamente integrada, o que desperta um sentido de autorrealização. É claro que falamos aqui de uma visão idealizada, mas motiva o ser humano do nascimento à velhice e o guia nas escolhas afetivas e profissionais.
Embora todos nós tenhamos os mesmos padrões básicos de comportamento, a relação desses aspectos com a consciência se transforma à medida que novos conteúdos da subjetividade são assimilados pela consciência coletiva. Portanto, a psicologia junguiana é claramente evolutiva, revelando que o nível de consciência teve grande transformação desde nossos ancestrais até hoje, o que inclui conhecimento, cultura, ética e moral.
Por outro lado, “ser” e “existir”, independentemente da educação ou da cultura em que vivemos, é uma experiência intuitiva cujas bases não podem ser localizadas em uma célula ou em algum lugar no cérebro. Basta observar recém-nascidos para encontrarmos certos traços de personalidade que não podem ser reduzidos apenas à genética ou ao ambiente familiar. É comum crianças entre 3 e 5 anos falarem de si mesmas ou de sua origem não biológica com grande convicção. Uma menina de 5 anos, ao visitar a casa dos avós, pergunta: “M mãe, onde eu estava quando você dormia nesse quarto?”. A certeza de haver uma existência anterior à vida consciente, embora não seja uma prova cientifica de existência pré ou pós-morte, é uma convicção psicológica arquetípica, isto é, comum a toda a humanidade. É, portanto, um fato psicológico, assim como a sensação da existência de um ser transcendente, um deus. Com isso, Jung introduziu a possibilidade de estudar a religião como manifestação psicológica, distinguindo a teologia da psicologia do estudo das religiões. Aqui não se disputa a “existência de Deus”, mas é possível afirmar que a ideia de uma representação divina e onipotente está presente na psique. Apenas aparência, forma e características dinâmicas da imagem divina são singulares para cada cultura e época – mas a essência é a mesma. Ao observar povos primitivos, Jung concluiu que o comportamento religioso é tão elementar quanto a sexualidade e não necessariamente resulta de uma projeção de aspectos reprimidos da vida erótica. Jung observou que povos livres na sua expressão sexual cultivavam seus deuses, mantinham suas crenças e seus rituais tradicionais. A vida religiosa decorrente da repressão sexual era resultante de uma cultura moralista e proibitiva (como na Viena do século 19, em que viveu Freud), que limitava a livre expressão e produzia certas psicopatologias. Em sociedades menos repressoras, a vida sexual e a religiosa não se opunham e eram integradas culturalmente por meio de ritos e imagens de fertilidade. Essa afirmação foi em grande medida um dos pomos da discórdia da célebre ruptura de Freud com Jung, em 1913, e tem sido objeto de estudos científicos no campo da psiconeurologia contemporânea.
O processo de individuação, tal como concebido por Jung, é resultante da interação do indivíduo com o coletivo. No plano individual, à medida que acriança se desenvolve, aptidões e características da subjetividade se tornam mais evidentes e singulares. De certo modo, o processo de individuação depende dessa fina sintonia com o que podemos chamar de nossa essência, que, embora dependa da genética, da educação e do ambiente familiar e cultural, certamente a tudo transcende.
A alegria é a nossa bússola no caminho da individuação, uma convicção forte e espontânea que emerge quando escolhas atuais estão alinhadas com nossa essência inata. Por isso se diz que o horizonte do processo de individuação é formado pelas inúmeras elaborações simbólicas que aproximam o indivíduo de sua essência. Essa singularidade diferencia um ser de qualquer outro e o torna insubstituível, pois a tarefa que cada um deve cumprir de acordo com seus talentos não pode ser reproduzida por nenhuma outra pessoa e tampouco reprimida.
Sistemas educativos e políticos rígidos, que tentam adequar o indivíduo a fins lucrativos ou ao bem do Estado, produzem distorções de subjetivação e graves neuroses. Depressões e suicídios de jovens são frequentes em sistemas totalitaristas ou alienantes, que obrigam à servidão a uma causa ou a se colocar a serviço de uma idealização em detrimento do desenvolvimento da singularidade. Dessa forma, a psicologia junguiana apenas no fim do século 20 entrou na Rússia, pois foi execrada na antiga União Soviética, onde a educação estava a serviço do Estado, e não do bem-estar individual.
O mesmo acontece com a criatividade. Indivíduos criativos são mais livres em sua autoexpressão em todos os campos. Sua ligação com o inconsciente, com o material ainda desconhecido pela consciência coletiva, traz à tona perspectivas e novas soluções técnicas e instrumentais para problemas antes insolúveis. Exemplos notáveis são encontrados na literatura e na biografia de pessoas célebres que, mesmo desprovidas de qualquer possibilidade educativa ou de recursos materiais, desenvolveram grandes talentos. James Hillman dá como exemplo um grande pianista de jazz americano (possivelmente Van Cliburn Jr.) que, por falta de recursos financeiros para comprar o próprio instrumento, utilizava o desenho de um teclado sobre uma folha de papel para exercitar a leitura musical. Durante muito tempo em sua infância, esse desenho foi o único teclado em que ensaiou e treinou suas capacidades até o dia em que se transformou em um músico profissional.
DINÂMICAS DO INCONSCIENTE
Saindo dos exemplos excepcionais, a forma como cada um de nós lida com dificuldades e desafios do cotidiano revela, em boa parte, as qualidades da nossa essência, do Si Mesmo. Por esse conceito entendemos tanto a totalidade psíquica, que inclui os aspectos conscientes e inconscientes, como também o arquétipo do centro da personalidade, que confere orientação e sentido à vida psíquica. O Si Mesmo é entendido paradoxalmente como totalidade dinâmica e arquétipo central de onde emergem os símbolos que podem ser experimentados e integrados pela psique subjetiva. Esse arquétipo abrange toda experiência humana e representa uma trama de sentidos potenciais, de caráter universal, que caracteriza a natureza igualmente paradoxal do homem como ser coletivo e ontológico.
Jung concebe o inconsciente como fonte de criatividade e potencialidade, e não apenas como o depositário de conteúdos recalcados, imagens infantis e vivências dolorosas protegidas por mecanismos de defesa. Do inconsciente surgem impulsos que tomam forma na matéria, de acordo com o espaço, a educação e o tempo de cada pessoa.
O conceito de arquétipo como representação psicológica da vida instintiva explica o aspecto universal dos padrões de comportamento, tal como o esqueleto que confere estrutura e base ao corpo. Embora todos nós tenhamos a mesma anatomia e fisiologia, não há um ser idêntico a outro. A maneira como cada pessoa atualiza os arquétipos depende das vivências individuais, educacionais e socioculturais. Em cada época, os arquétipos mudam a roupagem com que se apresentam, embora seu dinamismo básico permaneça o mesmo.
A exemplo do arquétipo da Grande Mãe, podemos observar que desde as épocas das cavernas já havia cultos a imagens femininas de largos quadris e muitas mamas, apontadas como criadoras do mundo e deusas da fertilidade. Essa imagem passou por transformações ao longo do tempo e hoje aparece no Brasil, por exemplo, nas formas de Iemanjá e de Nossa Senhora Aparecida. A crescente expansão do culto a Iemanjá observada em todo o litoral é uma demonstração da força que esse arquétipo exerce sobre a psique do povo brasileiro. Nesse ritual, repete-se o culto que os antigos gregos faziam à deusa Afrodite, com oferendas de flores, perfumes e pedidos levados em pequenos barcos lançados ao mar. Para muitos brasileiros, a esperança de renovação da vida por meio desse ritual independe da religião e se tornou um ritual pagão feito por pessoas de diferentes níveis socioculturais.
Os arquétipos são facilmente observáveis também na literatura e nas artes em geral. Nos contos de fadas podemos identificar as tarefas que o ego infantil deve superar durante seu crescimento. A história de João e Maria, por exemplo, mostra que, quando as crianças são fragilizadas pela falta de capacidade dos pais em alimentá-las (amorosamente), elas são levadas a uma jornada solitária pela floresta, onde são seduzidas com doces e guloseimas pela bruxa má. Pais excessivamente ocupados, sem tempo para se dedicar aos filhos, geram uma “fome emocional” nas crianças, tornando as vulneráveis e presas fáceis da sedução de adultos abusadores. A falta de um ambiente familiar acolhedor e amoroso faz com que os pequenos tenham de desenvolver por si mesmos a capacidade de superar o desamparo e a aridez de uma mãe (ou pai) que vive da vida dos filhos, isto é, de uma grande mãe devoradora. O caráter atual do conto pode ser observado também na psicodinâmica simbólica da anorexia e da bulimia, transtornos bastante comuns na cultura contemporânea. A ditadura da moda da magreza extrema obriga jovens, principalmente os de uma base afetiva extremamente frágil, a perseguir um padrão estético por vezes incompatível com o seu bem-estar físico. Vivemos numa cultura em que ser benquisto está profundamente associado (e estimulado pela mídia) a um corpo escultural, pele impecável (de bebê) e roupas que escondem as formas femininas em seu aspecto maternal. Vemos com isso duas polaridades do arquétipo da Grande Mãe: a positiva – quando sua imagem é reverenciada nos rituais de renovação do ano-novo, dando a esperança de saúde e abundância – e a negativa – como nas dietas exageradas e transformações estéticas extremas, na tentativa de ir além dos limites do corpo para “vencê-lo” como forma de superar a própria natureza. No processo evolutivo, observamos também os movimentos ecológicos como uma maior consciência da Mãe Natureza, antes menosprezada e vilipendiada. A passagem do arquétipo da Grande Mãe para o do Pai Espiritual é ilustrada na história dos três porquinhos e o lobo mau. Aqui vemos a necessidade de fortalecimento do ego para enfrentar as adversidades do crescimento, deixando a casa da mãe para construir um mundo independente. Ao depararem com o lobo, o aspecto negativo da figura paterna, os porquinhos percebem que uma casa feita às pressas, com material frágil, é facilmente derrubada pelo sopro da violência. A experiência ensina que somente uma casa solidamente construída (ego forte e em contato com a realidade) pode oferecer um abrigo suficientemente seguro, no qual poderão sobreviver longe da proteção materna.
UNIÃO DOS OPOSTOS
O arquétipo subjacente a essas histórias é o mito do herói, talvez o mais presente no mundo literário e cinematográfico de todos os tempos. De Tarzan, o rei da selva, a Neo, o herói de Matrix, a imagem arquetípica do jovem que é levado a desafiar os valores predominantes da cultura nos ensina a incorporar habilidades inovadoras e a vencer obstáculos aparentemente intransponíveis. Sua função libertadora ajuda a humanidade a confiar no aspecto transcendente e transitório da condição humana. Os símbolos presentes nessas histórias são também elementos facilitadores na integração dos conteúdos inconscientes.
Jung usou o conceito de símbolo de acordo com sua etimologia: sym = juntar, unir; ballein= em direção a uma meta, um objetivo. Nesse sentido, symballein significava, na antiga Grécia, o ato de unir duas metades de uma mesma moeda que fora partida na separação de duas pessoas. Quando uma delas desejava enviar uma mensagem importante à outra, o mensageiro trazia consigo uma das metades da moeda. Desse modo, o destinatário da mensagem poderia verificar sua autenticidade ao constatar a perfeita união das duas metades (uma conhecida, outra incógnita).
A palavra “símbolo” passou a ser empregada para designar a união de opostos – algo conhecido, consciente, com algo desconhecido, inconsciente. Como aquilo que é desconhecido tem um valor afetivo, o símbolo sempre desperta uma emoção. O conceito aponta para uma conexão entre aspectos conscientes e inconscientes de um mesmo fenômeno. Por mais que saibamos o significado racional das cores e da forma da bandeira brasileira, muitos se emocionam quando a veem tremulando em um evento de importância internacional, por exemplo.
O símbolo sempre contém um aspecto irracional e enorme poder de mobilização; é capaz de provocar grandes transformações de caráter estruturante, mas também conflitos étnicos e religiosos. Podemos perceber o símbolo em formas concretas, como slogans e hinos, ou em eventos como a queda do Muro de Berlim, a derrubada da estátua de Stalin ou de Saddam Hussein. O símbolo representa a conexão com a energia arquetípica necessária para a consecução de feitos que alteram o estado das coisas e podem trazer novas soluções para conflitos aparentemente insolúveis.
Grandes invenções tiveram o símbolo como mediador do processo de conhecimento, como conta a história da descoberta do anel de benzol. Friedrich Kekulé, químico alemão do século 19 que tentava, com pouco sucesso, descobrir a estrutura química do benzeno, sonhou que as moléculas se reuniam na forma de serpentes. Quando uma delas mordeu a própria cauda, de súbito Kekulé entendeu que a estrutura era um anel, dando assim um grande passo no progresso da química orgânica.
O símbolo é também o elemento que traz nova luz a uma situação aparentemente sem saída. Um jovem executivo bem-sucedido de 42 anos, solteiro e muito assediado pelas mulheres, achava-se bastante deprimido e desmotivado, pois, em sua opinião, “já havia alcançado o topo de tudo que desejava, nada mais restando a fazer”. Um sonho lhe esclareceu bem sua situação, revelando o perigo em que se encontrava: estava em uma nave espacial brilhante e prateada, que de repente despencou sobre um charco na periferia da cidade. Imediatamente, mendigos sujos e maltrapilhos invadiram a nave e roubaram tudo que era precioso. Percebemos que o sonhador estava vivendo com uma atitude de superioridade, inflada e dissociada de seus aspectos mais simples e humildes, correndo o risco de tudo perder. Ele precisava entrar em contato com seu lado menos desenvolvido e mais pobre para poder crescer.
Aspectos menosprezados ou reprimidos pela atitude consciente podem surgir nos sonhos sob a forma de figuras degeneradas, ladrões, personagens estrangeiros ou de constituição física oposta. À vezes aparecem também em preconceitos, atos falhos e lapsos de linguagem, como no caso de uma jovem que, aterrorizada perante seu professor de física, um homem muito severo e repressor, pergunta aos colegas, ao tentar entender uma formulação complexa sobre o movimento parabólico: “O que é movimento paralítico?”. A situação provavelmente provocou a emergência de um complexo paterno autoritário projetado sobre a figura do professor, paralisando a capacidade de pensar da jovem.
Os complexos fazem parte do nosso inconsciente pessoal, isto é, da sombra, e são responsáveis em grande parte por nossos comportamentos mais aberrantes e pobremente adaptados à realidade. Podem levar, por exemplo, um pai de família calmo e tranquilo a se tornar um assassino em potencial quando provocado no trânsito. Nesse momento, o complexo de inferioridade assume o controle e subjuga o ego, e uma enorme quantidade de energia é despendida na tarefa de vencer um adversário imaginário. Da ótica da psicologia analítica, esse adversário intangível pertence ao seu mundo interno, desconhecido, e se apresenta como uma qualidade projetada sobre um motorista qualquer que inadvertidamente cruzou seu caminho, de flagrando o complexo. Esse sofrimento pode ter origem em um conflito recente ou primitivo, mas de todo modo inacessível à consciência.
MÁSCARAS E PROJEÇÕES
A necessidade de nos adaptarmos à vida em sociedade e às exigências culturais leva-nos também a desenvolver aquilo que Jung chamou de persona, isto é, uma máscara coletivamente reconhecível e socialmente aceitável. Ela é responsável por nossa adaptação ao mundo social e é expressa no nosso estilo de vida, nas imagens que temos sobre as categorias profissionais e até mesmo na moda. A persona bem adaptada – que corresponde às expectativas da moda – tem importância cada vez maior na sociedade, pois aquele que dispõe dela tem maiores chances de ser visto como uma pessoa bem-sucedida e amada. Entretanto, quando extremamente rígida, a persona pode se dissociar dos aspectos mais profundos do ser e passa a expressar apenas um aspecto desejado externamente, sem refletir o caráter mais ontológico do Si Mesmo. Quando integrada, a persona é criativa e possibilita a expressão de diferentes facetas do indivíduo.
Outro conceito importante na psicologia de Jung é a hipótese sobre aspectos do inconsciente mais indiretamente observados: a anima e o animus, que são as contrapartes sexuais do homem e da mulher, respectivamente, e funcionam como ponte entre o mundo interno e o ego. Assim como existem aspectos biológicos masculinos na mulher, há também aspectos psicológicos masculinos correspondentes ao arquétipo do animus. Anima e animus contêm as qualidades humanas que faltam na disposição consciente. Uma mulher muito feminina tem aspectos inconscientes mais viris, assim como um homem muito másculo guarda em seu mundo interno qualidades profundamente enraizadas no feminino. Na cultura contemporânea o masculino e o feminino estão em constantes transformações, possibilitando maiores ampliações no desenvolvimento da personalidade à medida que podemos experimentar novas formas de ser homem ou mulher.
O essencial desse conceito é que anima e animus são representações psíquicas daquilo que nos inspira a seguir nossos desejos e ideais, de modo a ampliar nossa consciência. As projeções românticas têm a função de estabelecer um confronto com o inconsciente, e sua retirada permite uma expansão do autoconhecimento. Mediante a relação com o sexo oposto, podemos conhecer a realidade de nosso potencial, pois tornar-se consciente não é um projeto isolado. Embora requeira certa dose de introspecção, essa jornada implica um convívio com o outro para se realizar.
PADRÃO MORAL E CONSCIÊNCIA
Ao longo dos séculos, a figura feminina tem sido para o homem a inspiradora nas suas descobertas e feitos heroicos. Tomando a mitologia grega como ilustração, percebemos em Ariadne a imagem da anima, cuja promessa de amor não apenas inspira a luta de Teseu contra o Minotauro – o aspecto sombrio e monstruoso do herói -, mas também fornece a ele o fio condutor para um retorno seguro para fora do labirinto. Ela é, ao mesmo tempo, a musa que inspira a luta heroica e a luz que aponta a saída da escuridão do inconsciente. Deusas, divas, pin-ups, modelos e artistas são o objeto dessa projeção arquetípica e inspiram desde sempre os feitos heroicos, artísticos e científicos que dão sentido à busca da individualidade.
Enquanto a anima se associa à receptividade afetiva no homem, o animus representa sistemas de avaliação e capacidade de julgamento. Assim, liga-se a convicções por vezes indiferenciadas quando uma mulher passa a se acreditar portadora de certezas absolutas e defensora de valores extremamente rígidos. Em seu aspecto criativo, o animus associa a mulher à capacidade de discriminação, às atitudes e iniciativas construtivas de modo consciente. Por meio da dinâmica do animus, ela aprende a aceitar a reparação, a independência e a responsabilidade por suas reações emocionais. Em geral, o animus é projetado em professores, líderes e outras figuras de autoridade que inspiram nas mulheres a realização de seu potencial social e a saída dos recônditos do mundo familiar. Entretanto, quando a união entre mãe e filha é tão intensa que a possibilidade de um casamento é sentida quase como um ato de ruptura abrupta, figuras de homem-vilão podem emergir. É a história de Perséfone, filha da grande mãe Deméter, que foi raptada por Hades, o rei do mundo inferior, quando passeava pelos campos floridos. Aqui, Hades representa a imagem do animus que transporta Perséfone para outra dimensão, retirando-a das limitações do mundo conhecido. A mesma temática pode ser percebida em novelas e filmes em que o homem vilão desempenha o papel daquele que abre, por vezes dolorosamente, os horizontes e oferece, apesar do sofrimento, novas perspectivas para o desenvolvimento do potencial da mulher.
Os complexos também se manifestam no plano da identidade de um grupo social, e nesse caso são denominados complexos culturais. No Brasil, o mais evidente é o de sentimento de inferioridade, visível especialmente nas relações dos brasileiros com pessoas de outros países. Supervalorização do estrangeiro em detrimento do produto nacional e atitudes autodepreciativas presentes em piadas têm contribuído em grande parte para a tolerância com corrupção, quebra da lei, favoritismos e outros comportamentos espúrios, principalmente, de figuras de autoridade. Somente a consciência desse complexo, cuja raiz remonta à época do descobrimento e da escravidão, possibilitará a recuperação da autoestima, dando a real dimensão do valor da identidade brasileira.
Embora a incorporação dos elementos inconscientes na consciência seja um processo lento e doloroso, cada passo nessa direção, mesmo que comece por um pequeno grupo, certamente contribuirá para uma melhora na qualidade de vida de todos. O desenvolvimento da consciência traz, também, uma mudança no padrão ético. O comportamento moral e a saúde mental são, sem dúvida, as bases de uma sociedade saudável. Em sua última entrevista, em 1959, aos 84 anos, Jung disse a um repórter da BBC de Londres que precisaríamos cada vez mais da psicologia, pois todo mal que estava por vir partiria do próprio homem. A história continua como testemunho dessa verdade, mas também podemos dizer que todo bem que está por vir só depende do desenvolvimento de nossa consciência – e esse caminho é, sem dúvida, a grande contribuição do mestre Jung.
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