RETRATOS DE UM CASAMENTO
Somos frutos de todas as experiências que vivemos desde o nascimento. A posição que ocupamos dentro da família vai influenciar a forma como nos relacionamos com nossos pares no futuro.
Como escreveu o filósofo Zigmunt Bauman (2004), vivemos em uma sociedade líquida, na qual as coisas, em sua maioria, são “impermanentes”. Estamos em tempos de amores líquidos, em que nas últimas décadas criaram-se novos termos e designações para os tipos de relacionamento: “ficar”, “relacionamento aberto”, “poliamor”, “crush”, “pegação”, entre outras nomenclaturas. Deseja-se o amor, mas busca-se o prazer imediato. As pessoas procuram avidamente um relacionamento, mas quando surge um pequeno problema, geralmente, não encontram condições internas para resolvê-lo. Por falta de condições ou por escolha, as relações são descartadas, reiniciando-se a busca por outro parceiro.
Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstram que, nos dois últimos anos, 2017 e 2018, o número de casamentos diminuiu enquanto o de divórcios aumentou. A média da duração dos casamentos caiu de 17 para 15 anos. A partir dessas estatísticas, percebemos que está cada dia mais difícil estabelecer e manter relações duradouras. No século passado, os casamentos eram para toda uma vida. Comemoravam-se bodas de prata nos 25 anos de casados e bodas de ouro aos 50. Nas últimas décadas, apesar da expectativa de vida ter aumentado consideravelmente, é muito mais difícil pensarmos nesse tipo de comemoração, devido à pouca duração da maioria dos casamentos.
Sabemos, por outro lado, que hoje em dia os casamentos que não são bons não se mantêm. Muitos autores escreveram sobre o casamento e o relacionamento. Existem dezenas de livros sobre o amor e a paixão. Mas não existe uma fórmula que possa ser aplicada quando se trata de relações humanas. O assunto é muito importante, pois a relação é um grande caminho para revelar nossos aspectos sombrios. Se aproveitarmos a oportunidade de autoconhecimento que emerge, seremos sem dúvida seres humanos mais inteiros e felizes.
No “caldeirão” chamado relacionamento cabem muitos ingredientes: a atração física, a admiração, a identificação, a projeção, as semelhanças, as diferenças, as preferências, os hobbies, o estilo de vida, os talentos, os defeitos, a convivência com as respectivas famílias de origem, as expectativas em relação a filhos e como cada um lida com dinheiro e carreira, entre outros importantes aspectos. Quanto de cada um desses ingredientes deve constar na lista de um casamento feliz e duradouro? Essa receita tão subjetiva nunca será equacionada, mas, apesar disso, devemos pensar e refletir. O casamento antigamente tinha outros propósitos em sua configuração. Era voltado a dar estabilidade aos parceiros e constituir família. Hoje, diferentemente de antigamente, podemos pensar no aplacamento da solidão e da insegurança em que vivemos em todos os sentidos: cultural, social e político.
Quando um vínculo começa a se estabelecer, é difícil o casal ir para a cama “sozinho”. As figuras introjetadas da mãe e do pai estão presentes nessa relação como modelo a ser reproduzido ou evitado. Infelizmente, poucas pessoas podem dizer que gostariam de ter um casamento como o de seus pais. O modelo da relação dos pais vivido na sua família de origem deixa marcas. Muitos dos casais que procuram psicoterapia apresentam incompatibilidade sobre vários fatores que acreditam ser certos e bons para a relação. As pessoas herdam seus modelos e se fixam a eles, às vezes inconscientemente e sem reflexão.
As pessoas têm percepções diferentes do mesmo ambiente. Irmãos que viveram décadas na mesma casa possuem visões diversas sobre o casamento de seus pais e cada um pode ser afetado de várias formas pelos conflitos familiares. Os membros desse núcleo, principalmente os filhos, podem ter tarefas relativas a manter a homeostase da família. Acabam por optar por esses papéis para suas futuras relações.
Vanda Lucio Di Yorio Benedito, terapeuta de casais, em seu livro Terapia de Casal e de Família na Clínica Junguiana, escreve: “A escolha do parceiro, geralmente, envolve um complexo arsenal de motivações. Ligadas à vivências emocionais muito íntimas e profundas, […] de difícil representação no nível da consciência. Misturam-se desejos de várias ordens, e quanto mais inconsciente o indivíduo estiver desses desejos, maior a possibilidade de tais conteúdos serem ‘fisgados’ numa relação. […] O indivíduo que não consegue tomar para si aquilo que constitui parte de seu mundo interno fica perdido de si mesmo, buscando achar-se no outro”. A psicoterapia de casais tem a grande tarefa de elucidar os inúmeros fatores que interferem na relação conflitiva. A conscientização dos aspectos gerados pela família de origem de ambos é um bom começo para o tratamento de casais. Na maioria dos casos, o conflito possibilita o conhecimento e a clarificação das fixações dos parceiros em aspectos não integrados de sua personalidade. A tarefa é criar um terceiro modelo, uma união que possa contemplar as expectativas trazidas pelos parceiros para essa relação.
ELAINE CRISTINA SIERVO – é psicóloga, Pós-graduada na área Sistêmica – Psicoterapia de Família e Casal pela PUC- SP. Participa do Núcleo de Psicodinâmica e Estudos Transdisciplinares da SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica). Atuou na área de dependência de álcool e drogas com indivíduos, grupos e famílias.
Você precisa fazer login para comentar.