O MOVIMENTO DO VOLUNTARIADO
Quais fatores motivam as pessoas a se voluntariar, quais os riscos em questão, e mais: o que pode sustentar esse tipo trabalho, garantindo um intercâmbio construtivo para todos e a longevidade da ação?
O movimento do voluntariado tem tido um crescimento exponencial nos últimos dez anos, nas mais variadas partes do mundo. Uma espécie de contribuição social que já é considerada fundamental em diversas situações e/ou locais onde pessoas tiveram suas vidas atingidas por catástrofes ou vivem em regiões com índices de desenvolvimento humano absolutamente precários. Além disso, as pessoas que se envolvem com tais ações referem um ganho muito particular, especialmente em termos pessoais: um aprendizado que não imaginavam ter em outros contextos de sua própria vida.
Podemos dizer que o voluntariado já é um dispositivo social com características e atribuições muito próprias. Temos organizações da sociedade civil que discutem e planejam ações, mobilizam e lideram grupos e fazem parcerias em diversos setores, buscando fomentar o movimento e suas realizações. Uma importante evidência do lugar que ocupam tais ações solidárias, em especial no Brasil, é a existência, há mais de uma década, de uma legislação que regulamenta as relações de trabalho voluntário.
Na amplitude que é o movimento do voluntariado, proponho analisar um recorte específico: as ações voluntárias nas quais há uma relação direta entre dois seres humanos, tais como são realizadas em hospitais, creches, abrigos, asilos, trabalhos com jovens, entre outros. Nesses casos, a pessoa se vê em condições de auxiliar a outra por meio de apoio, orientação e cuidados, considerando que estarão em contato com certa regularidade para esse propósito.
BAIXA FIDELIZAÇÃO
O que frequentemente se observa nesse modelo de voluntariado é que, inicialmente, os interessados mostram um desejo muito grande de ajudar, de participar, de contribuir com alguém que precisa de apoio. Porém, ao longo do processo, é muito comum o abandono precoce da ação: um dos maiores problemas referidos pelos gestores de ações voluntárias desse tipo é a baixa fidelização dos participantes.
Com a bússola do conhecimento psicanalítico, podemos articular algumas ideias a respeito dessa baixa fidelização e propor possíveis alternativas para essa questão.
Inicialmente os voluntários mostram um desejo muito grande de ajudar, de participar, de contribuir com alguém que precisa de apoio.
Nesse tipo de ações de voluntariado, quando há esse encontro humano a que me referi, estarão sempre em jogo pelo menos duas pessoas que irão se envolver diretamente e, com isso, construir um vínculo pelo qual circularão, então, desejos, ideais, sentimentos hostis e amorosos. São pessoas cuja aproximação ocorre pela oferta de ajuda de um lado e a carência de outro, atuando num contexto que não implica remuneração, em termos de pagamento (salário, honorários etc.), embora muitas vezes exista um trabalho profissional realizado por um médico, um psicólogo, um advogado, por exemplo, atendendo gratuitamente.
Até aqui, já fica claro, que merece ser analisado o fator que motiva essas pessoas a essa ação, quais os riscos em questão, e mais: o que pode sustentar esse tipo de trabalho, garantindo um intercâmbio construtivo para todos e a longevidade da ação.
POR QUAL RECOMPENSA?
Jean Rhodes, psicóloga americana, pesquisadora de Programas de Mentoring nos EUA, coordenou uma investigação relatada em seu livro Stand by me: the risks and rewards of mentoring today’s youth (2002, p. 57), na qual foi verificado que metade de todas as relações com mentores voluntários se dissolve dentro de poucos meses. Dentre as razões identificadas para esse rompimento estão o medo de fracassar e a percepção de pouco esforço por parte de quem recebe a ação, no projeto.
Essa mesma autora afirma que a sobrevivência do relacionamento depende largamente das recompensas (isto é, o mentor receber respostas que indiquem que as suas ações estão produzindo mudanças no jovem). No início do trabalho, quando tais recompensas são baixas: “[…] eles acabam se dando conta de que o investimento pessoal necessário para trabalhar com adolescentes, por exemplo [de condições desfavorecidas] ultrapassa as suas previsões, particularmente se o envolvimento está o distanciando dos compromissos familiares e do trabalho”.
ALTERIDADE
Em Psicanálise, esse termo é muito útil para compreendermos a diferenciação fundamental entre o eu e o outro além da possibilidade de levar o outro em consideração e, portanto, ter empatia, interesse e disponibilidade para cuidar.
A Psicanálise é o saber mais consistente construído no último século para entender o funcionamento psíquico e as relações entre os seres humanos, seus desejos, angústias. Se nos ajuda a entender como nosso psiquismo se constitui e o que está em jogo na nossa relação com outros seres humanos, ela é fundamental para entender as motivações que levam uma pessoa a querer cuidar de outra, geralmente em situações de vulnerabilidade, e em ambientes tão distantes dela. Freud nos diz que um dos maiores problemas com os quais temos que lidar é nossa relação com outros seres humanos. Sendo assim, é curioso pensar nessa motivação para cuidar de quem tem tantos problemas. Podemos imaginar o quanto se torna complexa essa relação. É intrigante entender as motivações inconscientes que levam a isso.
FAZER O BEM… A QUEM?
É muito frequente que as pessoas sejam movidas para o voluntariado por um desejo de reparar experiências malogradas de sua própria vida, de preencher faltas, de projetar no outro também todo o sofrimento e assim se sentir, digamos, purificado desse mal. Se olho o outro como estando numa situação de tanta penúria, isso me faz ver a minha vida mais leve, mais fácil, algo como: “Coitado do outro: ficou com toda a desgraça humana!!!”. É impressionante isso, mas não é incomum esse tipo de atitude diante de uma população beneficiária, pessoas que dizem: “Quando estou aqui nesse abrigo, vejo tanto sofrimento que volto para casa achando minha vida uma maravilha!”. Parece que quem está “fazendo o bem” para esse sujeito é a tal criança do abrigo, que lhe “faz o favor” de assumir “toda” a desgraça do mundo em sua vida e, assim, aliviar o sofrimento do voluntário (inerente à vida de todos nós).
O que a Psicanálise também nos ajuda a pensar é que o voluntário espera ser investido afetivamente por parte daquela pessoa a quem oferece a sua ajuda, ser amado e reconhecido por sua dedicação, e, se isso não ocorre ou demora a ser demonstrado, a tendência é emergirem sentimentos hostis em relação àquela pessoa, num movimento psíquico defensivo (por exemplo, um voluntário, diante da suposta indiferença de um jovem a quem se põe a orientar, passa a se referir a ele como alguém pouco comprometido e irresponsável, esquecendo que sua função era justamente cuidar de alguém que atravessa um período crítico na vida e, portanto, pensar formas de lidar com essa pessoa e ajudá-la).
NARCISISMO IMPERATIVO
São casos em que fica evidente o predomínio do autocentramento e o desejo de exaltação e enaltecimento de si mesmo sem limites, onde o “eu” se apresenta como onipotente e majestoso. Não é a pessoa que recebe a ação de cuidados, em sua alteridade reconhecida e aceita, a quem são lançadas as atenções e os investimentos afetivos, e sim o próprio voluntário cuidador (a si mesmo, portanto), que busca o reencontro com amores e gratidões maternas (ou seja, o reencontro com essa experiência infantil, que permanece como uma espécie de memória inconsciente), agora, na relação com o jovem. É um movimento nada incomum nos nossos dias, em que o narcisismo é imperativo e o espetáculo é a via em que se busca o engrandecimento do eu e a admiração por parte do mundo.
Joel Birman, psicanalista brasileiro muito interessado nas questões do mundo contemporâneo, afirma que: “A autoexaltação desmesurada da individualidade no mundo do espetacular fosforescente implica a crescente volatilização da solidariedade. Enquanto valor, esta se encontra assustadoramente em baixa”. Segundo este autor, a solidariedade seria própria das relações inter-humanas fundamentadas na alteridade, o que implica em que o sujeito reconheça o outro na diferença e não apenas alguém em quem se projete a si mesmo, seu modo de existir, seus ideais.
Na verdade, a chave para decifrar esse abandono precoce da ação está no funcionamento inconsciente, seus conflitos e ambiguidades. Escutar psicanaliticamente esses voluntários, levantando questões e fazendo apontamentos, pode levar a caminhos com possíveis efeitos terapêuticos, porque pode facilitar a circulação das palavras e promover redes de significação que levem a ampliar a percepção de si mesmo. Dessa forma, temos como desfechos possíveis o voluntário podendo encontrar um novo jeito de participar da vida do sujeito que recebe seus cuidados, criando um estilo de ajuda em que o outro seja genuinamente considerado ou podendo reconhecer seus limites, pelo menos no momento, para aquela ação ou, honestamente, admitir que não quer relacionar-se com aquela pessoa. Outros desenlaces, ainda, poderiam ser pensados. O que interessa é que sejam reflexos de uma percepção mais ampliada do seu mundo interno e de um encontro mais verdadeiro com o seu desejo, dando expressão ao eixo alteritário do sujeito.
PROBLEMAS MAL RESOLVIDOS
Outra questão que se coloca a respeito do voluntariado é que as pessoas que se envolvem com essa ação estão, como a maioria dos seres humanos, preocupadas com seus próprios problemas psíquicos, mal ou insuficientemente resolvidos. O encontro com o outro que revela possuir algum tipo de fragilidade mobilizarão intensamente, tal como ocorre com um terapeuta ou um médico, por exemplo. Como propõe Enriquez, não podendo tratar os seus próprios conflitos, o risco que corre e que faz com que o beneficiário da ação também corra é de se apresentar como referência absoluta, inquestionável, que não suporta senão a reprodução de sua própria imagem (de sua opinião etc.) ou ainda de provocar um conflito afetivo na pessoa atendida, neutralizando suas potencialidades, seus interesses e desejos.
DESAMPARO PRIMORDIAL
Todo humano nasce em uma condição de pré- maturidade: como não sobrevive sozinho, portanto está em desamparo. Essa experiência deixa marcas no inconsciente de todos nós. A cada situação de desamparo que vivemos ao longo da vida, há uma espécie de reconexão com essa experiência primordial.
A pessoa que recebe os cuidados, por sua vez, pode se deixar seduzir por essa figura que se mostra tão potente, talvez numa ilusão de salvamento, aceitando o lugar de objeto do desejo do outro (o voluntário).
Observamos que como a ação solidária é comunicada aos beneficiários faz toda a diferença em como irão responder a elas. Aqueles que o recebem como uma caridade, algo de alguém que tem mais para quem é carente, estão mais vulneráveis a serem invadidos pelos ideais desse voluntário, que pouco está atento à singularidade do sujeito que está diante de si. que, embora vivam também dentro de uma imensa carência, mas têm a oportunidade de serem reconhecidos como sujeitos, sendo ouvidos, sendo autorizados a expressar seus desejos, sentindo-se respeitados como cidadãos, podem se beneficiar muito da ação dos voluntários que se empenham no desenvolvimento daquele grupo.
O altruísmo é fundamental para a vida em sociedade, porém, isso é algo que precisa ser desenvolvido, o que só pode ocorrer num grande trabalho de autoconhecimento e reflexão.
É possível traçar um paralelo entre o trabalho do voluntário que se põe a cuidar de pessoas com o trabalho do psicanalista, guardada as devidas proporções, evidentemente. O fato é que ambos se põem a lidar com o sofrimento alheio. Como psicanalistas temos como tripé fundamental em nossa formação, o estudo da teoria, a supervisão com um psicanalista mais experiente e um longo período de análise pessoal. Só assim nos vemos em condição de exercer esse ofício.
As pessoas que se põe a cuidar de outras em programas de voluntariado precisam também de um mínimo de formação – o que envolve não só treinamentos, informação, mas espaços de reflexão, onde poderia se produzir um pouco de autoconhecimento e reflexão sobre a prática e assim ser possível a construção de programas de voluntariado mais efetivos.
Como diz a psicanalista Lisabel Khan em sua apresentação sobre o meu livro Voluntariado: uma dimensão ética: “Fazer um trabalho social, ajudar o próximo, só é possível se forem garantidas condições de reflexão, a supervisão [como conhecemos em Psicanálise], para que haja suporte a alteridade, aos estranhamentos, à potência criada em cada encontro. Só assim o outro – beneficiado – não estará a serviço do narcisismo do benfeitor, cativo de sua demanda de amor, de sua proteção, da ‘boa vontade’. Um encontro que não se sustenta apenas na compaixão e que permite ao sujeito assistido se afirmar em seu lugar social, a partir de suas competências, resgatando aquilo que lhe é de direito.”
MOTIVAÇÕES EGOÍSTAS OU ALTRUÍSTAS?
Parece que há que se ter uma especial atenção aos trabalhos dos voluntários que se propõe a uma ação cuidadora diretamente com outro ser humano, isto porque as motivações inconscientes podem tanto indicar um genuíno interesse em contribuir com o outro (e nesse caso é preciso deslocar-se do autocentramento), como podem apontar para o uso do outro para atender às suas próprias questões psíquicas mal ou insuficientemente resolvidas. Nesse último caso, está claro que a ação voluntária, teoricamente tão benevolente, não teria praticamente nada de útil para quem a recebe. Enfim, eis o grande desafio para o voluntário em sua função cuidadora: abrir mão de uma suposta onipotência, assim como de amarras narcísicas, além de suportar fazer face ao desamparo que irá confrontá-lo na realidade daquela relação, o que remeterá irremediavelmente ao seu desamparo primordial, doloroso de ser reeditado. Um esforço psíquico nada simples de ser realizado e, considerando que, via de regra, os voluntários são pessoas que não possuem eles próprios uma experiência de análise pessoal, estamos falando de vivências que se encontram no fio da navalha.
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