CHAPEUZINHO VERMELHO ALÉM DA FLORESTA
Rico em significados e possibilidades de simbolizações, conto ajuda crianças a desenvolver capacidade de fazer representações dos estados mentais das outras pessoas.
Apesar da trama simples, da protagonista com traços de personalidade pouco desenvolvidos e do texto enxuto, Chapeuzinho Vermelho é uma das histórias infantis mais populares no mundo. O curioso é que não apenas fascina crianças, também motiva pesquisadores a fazer análises, comentários e interpretações. À primeira vista, o conto do escritor francês Charles Perrault passa uma mensagem clara: meninas devem ser obedientes, não conversar com estranhos, desconfiar dos meninos muito atrevidos e não se distrair com futilidades. Do contrário, estarão correndo perigo. Por causa desse teor “educativo”, o autor, político erudito e literato benquisto na corte de Luís XIV foi recriminado por ter desfigurado uma obra da cultura popular a ponto de torná-la praticamente irreconhecível.
Com exceção de alguns versos publicados em 1022 por um certo Egbert de Liege, que mencionam uma criança usando um a túnica vermelha que enfrentava filhotes de lobo, não chegou até nós nenhum vestígio desses originais. No entanto, Perrault menciona explicitamente em seus escritos que não inventou completamente a história, que faria parte desses “contos que nossos antepassados criaram para seus filhos”. Trata-se possivelmente de uma história inventada e transmitida pelas “famílias simples dos povoados e do campo”. Especialistas entendem que, apesar da ausência de versões originais, é possível entender e interpretar Chapeuzinho recorrendo ao método comparativo de padrões. Como se fossem biólogos, os pesquisadores procuraram deduzir qual seria o “antepassado comum” de cada personagem com base na análise de várias versões mais recentes.
Foi assim que Paul Delarue (1889-1956), pioneiro francês dessa abordagem, conseguiu reunir 35 versões de Chapeuzinho Vermelho, essencialmente das regiões do vale do Loire, do norte dos Alpes e da Itália, além do Tirol. Ele se interessou particularmente por aquelas que lhe pareciam completamente independentes da versão de Perrault. Se a trama geral é praticamente a mesma, nem sempre a menina usa uma capa vermelha com capuz; ou então o lobo é um bzu (espécie de lobisomem) que serve à garotinha os restos do corpo da avó como refeição; ou, ainda, antes de se enfiar na cama da avó, ele se despe. Mas o final da história é feliz, pois a menina consegue fugir, alegando uma “necessidade natural urgente”.
Segundo Delarue, todos esses elementos, ausentes no texto de Perrault, não são modificações posteriores, mas sim omissões, uma censura feita pelo autor de traços do suposto conto original. Outros pesquisadores também destacaram elementos semelhantes em contos asiáticos e africanos, mas todos são posteriores ao de Perrault. A versão dos irmãos Grimm, publicada em 1812, ou seja, mais de um século depois da de PerrauJt, é sem dúvida a outra mais conhecida. Ela também tem um final “feliz”, no qual um caçador abre a barriga do lobo e solta a menina e a avó. Todavia, sabe-se que os irmãos Grimm trabalharam com base no texto de Perrault, mas mesclaram o final do conto Os sete cabritinhos. A presença de uma cena de canibalismo em algumas versões faladas do conto, na qual o lobo oferece os restos da avó à menina, em especial chamou a atenção dos etnólogos. Não que a antropofagia fosse comum nos povoados franceses da época, mas o episódio tem certa relação com a percepção das relações familiares de então. Ao fazer uma leitura detalhada dos diferentes contos reunidos por Delarue nos anos 50, conclui-se que a protagonista se refere, na versão original, à “necessidade de transformações biológicas femininas, que levam à eliminação das mais velhas pelas mais jovens”. A tríade “menina-mãe-avó” representaria o ciclo de gerações que substituem umas às outras, em uma mescla de benevolência, transmissão de ensinamentos e rivalidade – que transcorre fora da esfera do masculino. A menina escolhe sozinha o seu caminho, mas ao fazer isso corre o risco de ser devorada pelo lobo, ou seja, para se transformar em mulher, deve compartilhar a cama de um pretendente e, dessa forma, incorporar o estatuto das gerações seguintes. O conto seria uma alegoria da sociedade matrilinear das aldeias.
Sigmund Freud destaca, em 1908, a versão dos irmãos Grimm para tratar do desenvolvimento da sexualidade infantil. Ele observa que, espontaneamente, as crianças imaginam que bebês nascem pelo umbigo ou que o ventre da mãe se abre “como o que acontece com o lobo, no conto do Chapeuzinho Vermelho”.
Em 1913, um analisando que se tornou conhecido como “o homem dos lobos” contou um sonho no qual figuravam animais que lembravam uma ilustração de Chapeuzinho Vermelho. Freud deduziu que o animal seria uma representação do pai do paciente e se perguntou se o conteúdo latente do próprio conto não seria simplesmente o medo infantil da figura paterna.
Em 1951, o psicanalista Erich Fromm afirmou que o conto tratava dos questionamentos sobre a sexualidade e que o famoso gorro vermelho simbolizava a primeira menstruação. E sugere algo questionável, talvez mais adequado ao momento histórico de sua época: “O conto seria um triunfo de mulheres que detestam os homens”. Ele ressalta que na versão dos irmãos Grimm o masculino não só é figurado como cruel, manipulador e ridicularizado por uma paródia de gravidez. O lobo “carrega” a avó em seu ventre e “dará à luz” à força, antes de ser morto. Moral da história para Fromm: o lobo é que deve ficar longe de menininhas inocentes…
COMPLEXO DE ÉDIPO
A análise psicanalítica mais conhecida desse conto é de Bruno Bettelheim, feita em seu livro Psicanálise dos contos de fada. “Chapeuzinho Vermelho de Perrault perde muito de seu encanto porque é evidente demais que o lobo da história não é um animal selvagem. Esse excesso de simplificação, somado a uma moralidade expressa sem meias palavras, enunciando tudo previamente. Assim, a imaginação do ouvinte não consegue conferir ao conto um sentido pessoal”, escreve. E faz uma leitura bastante peculiar a respeito da protagonista: “Como a garotinha, em resposta à tentativa direta e evidente de sedução (por parte do lobo), não esboça o menor movimento de fuga ou resistência, pode-se deduzir que ela quer ser seduzida. Ela não é, seguramente, uma personagem com a qual teríamos vontade de nos identificar”. Ele insinua ainda que, de certa forma, ela seria cúmplice do assassinato da avó. Temos aqui o complexo de Édipo em todo o seu esplendor: a criança quer seduzir o progenitor do sexo oposto e ser seduzida por ele, mas para isso é preciso se livrar da figura parental do mesmo sexo.
Mesmo que esse tipo de interpretação possa ser considerado excessivo ou descabido, ainda assim é difícil negar que o conto apresenta certa carga de subversão. Como, por exemplo, não perceber uma sinalização feita ao público adulto quando Perrault escreve: “Chapeuzinho Vermelho se despe e vai para a cama, onde fica bastante surpresa ao ver o corpo nu de sua vovozinha”?
Na verdade, parece ser a simplicidade do conto, e não sua profundidade, que faz de Chapeuzinho Vermelho um conto inesquecível. É perfeitamente possível compreendê-lo sem procurar nenhum “sentido oculto”, examinando de modo pragmático sua construção, o que ele diz e o que a criança vê na história. Perrault tinha especial cuidado em apresentar os contos como “narrativas agradáveis e equilibradas, bem dosadas para a delicadeza da idade do público infantil”. Por isso ele utiliza uma série de diminutivos – como “vovozinha” ou a senha para a porta da casa da avó, como um refrão com as palavras “tramelinha”, “ferrolhinho”, termos em desuso na época em que o autor escreve e que ele integra em inúmeras repetições, conferindo ritmo particular à narrativa e facilitando a memorização.
A história ganha corpo em um contexto privilegiado: é contada em voz alta por um adulto a uma criança em um momento íntimo, geralmente na hora de dormir. Nessa situação, a criança está relaxada, próxima ao adulto, aberta ao que é estranho e às surpresas, disposta a conferir plenos poderes à imaginação. Nesse contexto fica mais fácil compreender o final do conto na versão de Perrault, quando o lobo exclama “É para melhor comer você!”- e devora Chapeuzinho, num final muitas vezes considerado trágico e cruel e por isso mesmo censurado.
No manuscrito da antologia de 1695, só descoberto em 1953 em uma coleção particular, Perrault fez uma anotação na margem do texto: “Essas palavras devem ser ditas em um tom de voz forte para assustar a criança, como se o lobo fosse comê-la viva”. O final do conto se alia subitamente à realidade, em uma reviravolta inesperada, na qual a criança se transforma em personagem principal, o que em geral ela adora. Como a criança não é de fato devorada, Chapeuzinho também não é.
Da mesma forma, quando o lobo e a menina pegam caminhos diferentes para ir à casa da avó, a criança que ouve a narrativa precisa fazer um corte na história, dividindo em dois o curso dos acontecimentos. Essa capacidade pode parecer evidente para adultos, mas não é inata. A maturação neurológica e a possibilidade psíquica de transformar a realidade em histórias e a ficção em realidade, mantendo ao mesmo tempo esses domínios em universos distintos, são adquiridas gradualmente, ao longo do desenvolvimento. Dessa forma, a estrutura do conto maneja de maneira habilidosa diferentes níveis de ficção, moldando e preparando o espírito da criança para um mundo complexo.
O conto exige certa competência cognitiva. Trata-se daquilo que os pesquisadores chamam de teoria da mente, um conceito criado por primatologistas que se perguntavam se os chimpanzés tinham compreensão do que acontece na cabeça de outros da sua espécie e mesmo do que pensam os humanos. Será que eles conseguem fazer a diferença, por exemplo, entre alguém que sabe que uma caixa contém uma banana e alguém que ignora? Ou, de modo mais sutil, eles compreendem que alguém pode ter uma falsa crença ou convicção, imaginando, por exemplo, que uma caixa contém uma fruta quando na realidade o recipiente está vazio? Também tem sido questionado a partir de que idade a criança desenvolve uma teoria da mente, passando a entender que as outras pessoas têm desejos, convicções e intenções diferentes dos dela.
Um teste simples é utilizado para verificar essa aquisição. A versão mais conhecida dessa ferramenta é uma pesquisa publicada em 1983 por Heinz Wimmer e Josef Perner. No teste da transferência inesperada (unexpected transfer, em inglês), a criança deve prever que uma pessoa que ignora que determinado objeto foi mudado de lugar vai procurá-lo onde acha que ele está – e não onde ele está realmente. É apresentada à criança uma situação em que dois personagens estão em um aposento diante de duas caixas, uma verde e uma azul. Um dos protagonistas, Maxi, põe a barra de chocolate dentro da caixa verde. Ele é então orientado a sair do aposento, e em sua ausência seu irmão muda a barra de chocolate de lugar, colocando-a na caixa azul. Em seguida, Maxi volta. Pede-se então à criança, que assiste a todos esses movimentos, que diga em qual caixa Maxi vai espontaneamente procurar o chocolate. Para responder corretamente à pergunta, é preciso que a criança entenda que ela sabe de coisas que Maxi ignora. As crianças com menos de 4 anos se enganam sistematicamente e respondem em função de seu próprio conhecimento da situação: pensam que Maxi sabe, como elas, que o chocolate mudou de lugar e que o menino vai abrir a caixa azul.
A teoria da mente pode ser aplicada também ao conto Chapeuzinho Vermelho: a criança que escuta a história deve fazer constantemente a distinção entre o que sabe e o que os personagens da narrativa têm conhecimento. Ao mesmo tempo, o pequeno ouvinte deve determinar o que os personagens sabem uns dos outros. Há um jogo complexo que requer não só trabalho de memória, mas ainda capacidade de se colocar no lugar dos outros. Vejamos, por exemplo, o momento no qual o lobo chega à casa da avó. Como ele age para conseguir entrar? Eis a cena: Toc, toc. “Quem é?”, pergunta a avó. “É sua netinha, Chapeuzinho Vermelho, trazendo manteiga e biscoitos que a mamãe mandou”, diz o lobo imitando a voz da menina. Note aí a astúcia do lobo, que repete as mesmas palavras que ouviu da menina de modo a instilar uma falsa convicção na mente da avó.
A criança que ouve a história deve perceber que a avó tem uma representação errada da realidade e que o lobo continua sendo o lobo, apesar de se fazer passar por outra pessoa. O engodo é um processo complexo: para realizá-lo, constatá-lo ou frustrá-lo, é preciso saber o que passa na cabeça do outro, saber o que os outros sabem de nossas próprias convicções, guardar todas essas informações na memória e ser capaz de compará-las, além de eventualmente revisá-las em tempo real.
A protagonista cai na armadilha do lobo pois ignora o que ele já sabe; já o vilão conhece o que ela ignora. A questão que se impõe é determinar até que ponto uma criança pequena entende exatamente da história, não em termos de sexualidade emergente, de sociedade matrilinear ou do que for, mas simplesmente em relação à própria trama.
Foi isso o que procuraram entender os psicólogos Joel Bradmetz e Roland Schneider, da Universidade de Besançon. Eles narraram aversão de Perrault, assim como diversas adaptações, a crianças com idade entre 3 e 8 anos e fizeram perguntas bem simples: antes de entrar na casa da avó, quem Chapeuzinho Vermelho espera encontrar, a avó ou o lobo? Naquela hora, a menina sente medo ou não? Como previsto, a maioria das crianças com menos de 4 anos pensava que, como elas mesmas, a protagonista deveria saber que o lobo estava na cama da avó. Mas o que surpreendeu foi a evidência atestada pelos pesquisadores deque mesmo as crianças que davam a resposta correta (a avó está na cama) pensavam que Chapeuzinho Vermelho estava com medo. E essa convicção persistia mesmo em crianças com 7 ou 8 anos. O inverso não é verdadeiro: nenhuma das crianças que estavam convencidas de que Chapeuzinho não sentia medo respondia que ela acreditava que ia encontrar o lobo na cama da avó. Isso demonstra que existe uma distância entre a mentalização das convicções e a das emoções e que estas últimas exigem um período de desenvolvimento bem mais longo. Conhecendo esses resultados, fica mais fácil entender a atração psicológica que o conto de Perrault pode ter para as crianças, dependendo da idade. Longe de captar tudo de uma só vez, elas veem nessa história aparentemente tão simples uma sucessão complexa e divertida de interações mentais e afetivas entre personagens que, como elas, não têm um conhecimento perfeito das convicções e intenções de uns e de outros. O conto, admiravelmente construído e calibrado por Perrault, funciona para a mente infantil como uma intriga policial, um drama psicológico com múltiplos quiproquós.
Chapeuzinho Vermelho prepara os pequenos para o mundo da ficção e das interações, adaptando-se às capacidades cognitivas dos pequenos. Muitas vezes, os pais se surpreendem com o pedido dos filhos de contar novamente uma história que eles já ouviram dezenas de vezes. O que permite deduzir que as crianças só entendem o comportamento e as emoções de cada personagem progressivamente e, portanto, que a cada vez elas escutam uma história ligeiramente diferente. Colocar-se no lugar alheio, mentir, conceber que os outros possam mentir, imaginar alternativas, comparar pontos de vista, ser irônico e fazer “de conta” são facetas das interações sociais em ação nesse conto tão rico.
“POR QUE ESSES OLHOS TÃO GRANDES, VOVÓ?”
A mais antiga referência explícita a Chapeuzinho Vermelho está em um manuscrito de Charles Perrault sobre os Contos da Mamãe Gansa, datado de 1695. No texto, Chapeuzinho Vermelho é uma linda menininha vestida de vermelho, o que lhe vale seu codinome. Ela é encarregada pela mãe de levar um pote de manteiga e biscoitos para a avó. No caminho, cruza com um lobo na floresta. Ele não a devora na mesma hora, mas lhe pergunta para onde ela está indo e “a pobre menina, que não sabia ser perigoso parar e conversar com um lobo”, conta sobre a tarefa qual tinha sido encarregada e diz onde fica a casa da avó. Por um atalho, o vilão chega lá antes dela e devora a idosa. Enquanto isso, a garota se distrai colhendo avelãs, correndo atrás de borboletas e fazendo pequenos ramalhetes de flores e chega mais tarde à casa da avó. O lobo veste uma camisola e se deita na cama da avó, fingindo ser ela. Segue-se então o famoso diálogo, que começa com “Vovó, que olhos grandes você tem!”.
O lobo responde: “É para melhor ver você, minha querida”. E termina com ”Vovó, como são grandes seus dentes! É para melhor comer você!”.
SENTIDOS OCULTOS
As interpretações de Chapeuzinho Vermelho são múltiplas.
O próprio caráter estranho do conto – um lobo que fala, o ambiente opressivo da floresta – presta-se à evocação do mundo dos sonhos ou da loucura e ao comentário de que o conto seria simplesmente absurdo. Outras leituras focaram os aspectos históricos. A versão dos irmãos Grimm, por exemplo, chegou a ser descrita como uma representação do sentimento antifrancês do povo alemão. Um olhar feminista viu na narrativa um monumento de machismo no qual as mulheres são descritas como intrinsecamente ingênuas, manipuladoras e más, e por isso devem ser punidas. Outras análises, ainda, destacaram que naquelas épocas mais antigas os lobos constituíam uma ameaça para os humanos, e por isso o conto poderia ter meramente a função educativa de alertar as crianças. Mas foram as leituras etnológicas e principalmente psicanalíticas que abriram a possibilidade de compreensão de sentidos menos óbvios, trazendo a discussão de temas como a encenação do complexo de Édipo e o conflito de gerações, questionando o lugar das mulheres na economia familiar dos povoados e o desenvolvimento da sexualidade.
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