O PODER DA REFLEXÃO
A metacognição, capacidade de mergulhar nos próprios pensamentos e acompanhá-los, pode ser muito útil na hora de resgatar uma memória ou aprender um idioma com mais facilidade.
A britânica Judith Keppel estava a uma única resposta de distância para embolsar 1 milhão de libras. Na fase final de um programa de TV muito popular na Inglaterra, faltava enfrentar o último desafio para se tornar a primeira vencedora do jogo. Precisava responder à pergunta: “Que rei foi casado com Leonor de Aquitânia?”. Após uma breve conversa com o apresentador, Chris Tarrant, ela afirma: “Henrique II”. Ele retruca: ” É sua resposta final?”. Sem titubear, ela confirma. A plateia irrompe em aplausos. Judith acertou.
Naquela noite, ela recorreu a um recurso valioso para não vacilar: sua capacidade metacognitiva. O termo cunhado pelo psicólogo John Flavell na década de 70 refere-se à nossa habilidade de avaliar os próprios pensamentos. Essa prática pode ser muito útil na hora de nos lembrar prontamente de uma senha, resgatar uma memória infantil ou aprender outro idioma com mais facilidade. Trata-se de um tribunal interno que controla a solidez de nossas representações mentais, como a memória e o discernimento. A metacognição permitiu a Judith responder com impressionante segurança.
A capacidade de refletir sobre nossos pensamentos é uma característica fundamental, já que por meio dela identificamos nossas limitações e as compensamos. Um estudante despreparado para uma prova de química, por exemplo, pode dedicar horas extras para revisar orbitais atômicos. A metacognição também entra em cena quando ajustamos um alarme para nos lembrar de algo que podemos esquecer ou fazemos uma lista de afazeres para dar conta das demandas do dia.
Mas essa capacidade não existe só para detectar dificuldades. Também nos ajuda a avaliar nossos pontos fortes, como quando abandonamos as boias de braço depois que aprendermos a nadar ou deixamos as rodinhas de apoio assim que nos sentimos seguros para andar de bicicleta. A metacognição reforça a sensação de que podemos passar para o próximo desafio quando estamos prontos, sem perder tempo para chegar aonde queremos.
Em última análise, serve como base para a aprendizagem e o sucesso. Quando prejudicada, no entanto, costuma afetar o desempenho escolar ou profissional. Podemos ter mais dificuldade para reconhecer uma má decisão e o melhor caminho a seguir. Alguns distúrbios psiquiátricos podem interferir na metacognição, impedindo a pessoa de identificar seus próprios problemas. No entanto, novas técnicas que ajudam a medir essa habilidade em laboratório e relacioná-la com funções cerebrais ajudam pesquisadores a compreender seus mecanismos e por que correm o risco de falhar. Algumas ferramentas podem ajudar a seguir o conselho de Sócrates aos atenienses, “conhecete a ti mesmo”, com o treino da metacognição e a aperfeiçoar nossas capacidades.
A OPÇÃO PELO ATALHO
Especialista em desenvolvimento infantil, Flavell propõe que a metacognição seja compreendida como um aspecto da introspecção, indispensável à aprendizagem. Em um teste de memória, por exemplo, ele observou que “adultos que haviam estudado por um tempo e afirmavam estar preparados, de fato estavam, enquanto crianças pequenas nas mesmas condições frequentemente se enganavam em relação ao próprio desempenho”.
Os dados sugerem que durante o desenvolvimento cerebral certas áreas ou redes neurais vão se tornando mais sólidas, o que gradualmente nos torna aptos para julgar a própria capacidade de aprendizagem com maior precisão. No entanto, os pesquisadores enfrentaram um dilema para estudar essa hipótese em laboratório: como testar a maneira como enxergamos nossos próprios pensamentos?
Não há marcadores claros da metacognição, por isso meus colegas e eu decidimos usar um atalho: medimos o grau de confiança de algumas pessoas para defender suas ideias e verificamos se a certeza se justificava. O cotidiano está repleto de cenas sobre as quais nos equivocamos. Um cozinheiro inexperiente que acredita que um jantar com vários amigos no qual deixa queimar o salmão e se esquece de arrumar a salada pode não ter boa metacognição. Em meus estudos, a tarefa proposta é muito mais simples do que preparar refeições. Os participantes se sentam na frente de uma tela de computador e observam dois grandes círculos, cheios de pontos, piscar brevemente: o objetivo é decidir qual figura geométrica está mais preenchida. A maioria dos voluntários não acha essa atividade tão fácil. O meu interesse, porém, não é ter a resposta correta, mas saber o grau de segurança que os participantes têm para sustentar sua opinião. Repetimos o experimento várias vezes, até que observamos um padrão. Ter alta confiança somente quando acertamos, e vice-versa, significa que nossa metacognição está apurada. Testes similares podem medir essa habilidade relacionada a outros aspectos do comportamento, como memória e aprendizagem.
Os resultados sugerem que a precisão metacognitiva varia amplamente entre a população. Alguns parecem conhecer pouco sobre os próprios pensamentos, enquanto outros demonstram excelente capacidade de autoavaliação mental. No entanto, é importante notar que isso não prediz o desempenho. Podemos ter pouca noção das próprias habilidades, mas fazermos excelente uso delas.
Nos últimos anos, pesquisadores têm trabalhado na identificação de mecanismos neurais que regulam a metacognição. As primeiras pistas vieram de um paciente com um dano neurológico bastante específico. Em meados da década de 80, o neurocientista Art Shimamura fazia seu pós-doutorado com a orientação do psicólogo Larry R. Squire, da Universidade da Califórnia em San Diego. Os dois investigavam pacientes com amnésia que haviam sofrido lesões no hipocampo (região importante para a memória), quando observaram um padrão curioso nos dados. A maioria apresentava problemas de memória, mas apenas alguns estavam cientes disso. Aqueles que não se davam conta da dificuldade que enfrentavam (baixa metacognição) sofriam da síndrome de Korsakoff, um distúrbio da memória frequentemente associado ao alcoolismo. Os pacientes não só desenvolveram amnésia por danos causados no hipocampo, mas também pelas lesões no lobo frontal, o que levou os pesquisadores a suspeitar que essa região estivesse envolvida na regulação da metacognição. Para confirmar a hipótese, junto com a neurocientista Jeri Janowsky, Shimamura e Squire examinaram sete pessoas com lesões nos lobos frontais, mas com as regiões associadas à memória preservadas. Eles observaram que de fato a metacognição estava prejudicada nesses pacientes. Os cientistas mostraram a eles uma lista de frases e lhes perguntaram a probabilidade de reconhecê-las depois, ao que responderam com imprecisão. No entanto, se lembravam claramente do que estava escrito. Esses foram os primeiros estudos a mostrar a metacognição como uma função cerebral independente e não apenas em parte integrante de habilidades cotidianas.
O lobo frontal abrange uma vasta área neural. Meus colegas e eu procuramos identificar mais precisamente as regiões associadas à metacognição. Em 2010, publicamos uma pesquisa em que propusemos essa ideia. Em outro estudo, em parceria com os neurocientistas Geraint Rees,
Rimona S. Weil e outros colegas da Universidade College London, mostramos brevemente duas imagens para alguns voluntários e perguntamos qual parecia ser mais brilhante. Na sequência, eles relataram o grau de confiança na própria resposta. Após diversos testes, calculamos um escore metacognitivo para cada participante.
Para afastar qualquer interferência que pudesse ser causada por alguma alteração na percepção visual, cuidamos para que nossos pacientes fossem igualmente capazes de identificar a figura mais reluzente. Eles forneceram a resposta correta em aproximadamente 70% das vezes. Depois de pontuarmos erros e acertos, submetemos os voluntários a exames de neuroimagem e observamos, naqueles com metacognição mais apurada, maior concentração de matéria cinzenta no córtex pré-frontal anterior, uma região cerebral desproporcionalmente maior em seres humanos do que em outros primatas. A massa cinzenta consiste principalmente em células neurais, diferentemente da substância branca, com axônios delgados que se estendem do corpo celular e transmitem impulsos elétricos para outros neurônios. Pessoas com maior capacidade metacognitiva também tinham áreas de matéria branca mais densa conectando o córtex pré-frontal anterior ao restante do cérebro.
Outros estudos com neuroimagem sugerem que a atividade neural no córtex pré-frontal anterior é mais fortemente correlacionada com a confiança em pessoas com melhor metacognição. Além disso, estimular essa área com pulsos magnéticos interfere temporariamente no funcionamento dos neurônios, o que pode prejudicar essa habilidade sem afetar outros aspectos da percepção ou da tomada de decisão.
Estávamos curiosos, porém, para determinar se as áreas que identificamos estavam associadas a julgamentos simples também desempenhariam algum papel em decisões complexas. Com os neurocientistas Benedetto De Martino, Ray Dolan e Neil Garrett, então da Universidade College London, elaboramos um experimento mais próximo de uma situação real, ainda que dentro de um escâner cerebral. Pedimos aos participantes que escolhesse entre dois petiscos: batata frita ou chocolate. Em seguida, eles relataram o grau de segurança de ter tomado a melhor decisão. Depois que saíram do aparelho, disseram o quanto estariam dispostos a pagar para cada uma das guloseimas e, novamente, classificaram a autoconfiança em relação à escolha, dessa vez, considerando a quantia mencionada.
VOCÊ SABE QUE SABE?
O procedimento que elaboramos nos ajudou a distinguir a atividade cerebral que sustenta nossas ações da que regula nossos pensamentos sobre como agimos. Nem todos disseram que pagariam mais para o item preferido (a resposta aparentemente lógica}. No entanto, para alguns, seu comportamento inconsciente era mais claro do que para outros. Como constatamos em 2013, essas pessoas demonstravam conectividade mais forte entre o córtex pré-frontal anterior e uma região do cérebro associada a cálculos. Apesar de não fazerem necessariamente as melhores escolhas, pelo menos tinham maior clareza sobre isso.
No entanto, não sabemos ainda como o córtex pré-frontal anterior contribui com a metacognição nem por que maior volume cerebral nessa região interfere na capacidade de observar os próprios pensamentos. No entanto, os resultados são o primeiro passo para identificar como aprimorar essa habilidade imprescindível. Médico s usam o termo anosognosia (em grego, sem conhecimento da doença} para descrever a pessoa com um distúrbio neurológico que a impede de saber sobre seu problema de saúde. Isso pode se dar em vários níveis. Por exemplo: um pai que não percebe sua própria doença ou a de um filho pode afetar significativamente as relações familiares, interferindo na realidade compartilhada em que as trocas sociais são construídas. Pacientes com demência não se dão conta de que perdem a memória progressivamente. Isso dificulta procurar ajuda, lembrar-se de tomar os medicamentos ou reconhecer que talvez não dirijam mais com a mesma segurança. Esquizofrenia, dependência química e acidente vascular cerebral também interferem na metacognição.
Não se pode deixar de lado, porém, a visão psicanalítica de que há pessoas que, defensivamente, desenvolvem mecanismos de negação. Nessa perspectiva, até poderiam reconhecer suas dificuldades, mas seriam relutantes em admiti-las a profissionais da área da saúde ou mesmo a pessoas da família. É tênue o limite entre essa defesa e a baixa metacognição que pode ser consequência de algumas doenças. Muitos dependentes de álcool, por exemplo, não consideram a bebida um problema, mesmo que compreendam que o excesso é prejudicial. Há consenso entre médicos e psicólogos que tratam de toxicodependência de que um dos maiores desafios no tratamento é lidar com a resistência de pessoas que precisam de ajuda mas não reconhecem a necessidade de intervenção terapêutica.
Ainda não está claro se metacognição e anosognosia são dois lados da mesma moeda, mas sabemos que estão intimamente relacionadas. Pacientes com esquizofrenia sem consciência da própria doença, por exemplo, tendem a ter o lobo frontal menor do que aqueles que reconhecem ter o distúrbio – o mesmo padrão observado nos indivíduos saudáveis com metacognição prejudicada. Considerando que doenças psiquiátricas podem provocar múltiplos efeitos no cérebro, é provável que a anosognosia esteja relacionada a alterações em redes neurais.
Talvez cheguemos à conclusão de que esse problema neurológico seja simplesmente um tipo de dificuldade metacognitiva. Estudos recentes sugerem que a capacidade de introspecção pode variar e a anosognosia pode ser uma de suas facetas. Pesquisas recentes reforçam a hipótese de diferenças na atividade cerebral associadas com a metacognição da memória e com a metacognição da percepção. Meus colegas da Universidade de Nova York e eu também observamos que pessoas com danos no córtex pré-frontal anterior apresentam dificuldade com a metacognição perceptual, mas parecem não ter problemas para julgar suas memórias com precisão.
UM MINUTO PARA ENTENDER
Em 1990, os cientistas começaram a desenvolver pesquisas para descobrir como aprimorar essa habilidade. Um estudo em pequena escala sobre os efeitos da clozapina (droga antipsicótica) em pessoas com esquizofrenia apontou que a medicação ajudou a melhorar a compreensão dos pacientes sobre seus sintomas clínicos após seis meses de tratamento. O remédio também interrompeu manifestações esquizofrênicas, por isso os pesquisadores não conseguiram determinar em quais aspectos a metacognição interferiu positivamente.
Mais recentemente, o psicólogo Robert Hester e seus colegas da Universidade de Melbourne, na Austrália, descobriram que o metilfenidato poderia aumentar essa capacidade em voluntários sadios. Nesses experimentos, os participantes realizaram uma tarefa em que deveriam detectar, sob pressão de tempo, uma cor difícil de ser percebida e detectar quando acreditavam ter cometido um equívoco – um julgamento metacognitivo. Aqueles que tomaram o medicamento reconheceram mais seus próprios erros de forma consciente do que participantes que ingeriram outras drogas, como antidepressivos comuns. O problema do uso desses produtos, entretanto, não se reduz a sua eficácia, já que ainda não estão claros seus efeitos colaterais.
A estimulação elétrica cerebral também pode ajudar a melhorar a metacognição. Utilizando a mesma tarefa do experimento anterior, uma equipe da Universidade Trinity College, em Dublin, constatou que disparar uma corrente elétrica fraca pelo córtex frontal de voluntários idosos aumenta a consciência dos próprios erros. O estímulo excita temporariamente os neurônios, o que pode colocar o lobo frontal em estado de alerta, aumentando a capacidade metacognitiva. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer para compreendermos melhor como as drogas ou a estimulação cerebral pode melhorar nossa capacidade de raciocinar sobre nossos próprios pensamentos.
Já a meditação é um excelente método disponível para aprimorar a habilidade de julgar as próprias ideias. Um estudo deste ano, conduzi do pelos psicólogos Benjamin Baird e Jonathan W. Schooler, da Universidade da Califórnia em Santa Barbara mostrou que duas semanas de prática meditativa aumentaram a metacognição de voluntários durante um teste de memória (mas não em uma tarefa que envolvia discriminação visual). A técnica milenar pressupõe o desenvolvimento da capacidade de manter o foco ao se concentrar nos próprios estados mentais o que tende a aprimorar a habilidade de avaliar a si mesmo. De fato, diversos estudos apontam que a meditação pode provocar mudanças na estrutura, nas funções e na conectividade do córtex pré-frontal anterior. Isso sugere que a técnica pode induzir a neuroplasticidade em circuitos cerebrais estimulados por ela e envolvidos na metacognição. A hipótese, porém, é especulativa: por enquanto, não há provas concretas de alterações neurais que persistem após melhora na metacognição.
Estratégias psicológicas simples ajudam a fortalecer essa habilidade na sala de aula. No início dos anos 90, o falecido psicólogo Thomas Nelson e seu aluno John Dunlosky, então da Universidade de Washington, relataram um efeito intrigante. Voluntários que foram convidados a refletir, depois de uma pequena pausa, sobre o próprio desempenho em uma tarefa em que deveriam aprender uma lista de palavras, demonstraram maior noção sobre suas ideias do que aqueles que deveriam responder imediatamente. Desde então, muitos estudos replicaram esses resultados. Ou seja: incentivar os alunos a ponderar por algum tempo antes de decidir se estudaram o suficiente para um teste que está por vir pode colaborar com a aprendizagem de uma forma simples e eficaz
Eles também podem ter melhor discernimento se puderem criar palavras-chaves sobre os temas explorados. O psicólogo Keith Thiede, especialista em educação, pesquisador da Universidade Estadual de Boise, observou que solicitar aos alunos que escolhessem termos que resumissem determinado tópico os ajudou a desenvolver melhor precisão metacognitiva. Isso também os auxiliou a dividir melhor o tempo de estudo e a se concentrar mais nos conteúdos menos compreendidos.
No entanto, o insight sobre a própria condição nem sempre é bem-vindo na opinião do psicólogo. Em alguns cenários, seria até inapropriado. Um paciente com Alzheimer, por exemplo, poderia se angustiar ainda mais se tivesse consciência da deterioração progressiva de sua memória. Essa e outras questões éticas devem ser consideradas na medida em que a neurociência metacognitiva amadurece. E nesse processo dois pontos se destacam:
1. muitas vezes experimentamos nossos sentimentos e pensamentos de forma bastante frágil;
2. alterações na habilidade metacognitiva interferem no autoconhecimento e nas tomadas de decisão. Em casos extremos, como nos transtornos psiquiátricos, a pessoa costuma ter dificuldade de se conectar com a realidade social compartilhada. Ajustar o “foco da lente” – com a ajuda da neurociência cognitiva, da psicologia e de modelos computacionais- pode ser crucial para diminuir o sofrimento de muitas pessoas.
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