QUANDO A HOMOSSEXUALIDADE FOI PROSCRITA PELA PSICANÁLISE
Considerada doença ou transtorno mental, a preferência por pessoas do mesmo sexo foi historicamente colocada à margem do movimento psicanalítico institucionalizado; muitas vezes, homossexuais que se candidatavam à formação de analista eram repudiados.
Este ano parte dos países ocidentais celebrará os 50 anos da “revolta de Stonewall”, em junho de 1969, considerada a retomada contemporânea da luta pelos direitos das minorias sexuais. No Brasil, a parada do Orgulho Gay, que já faz parte do calendário oficial de muitas cidades, especialmente São Paulo, é uma referência ao evento. Na ocasião, gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros resistiram aos maus-tratos que sofriam de policiais e, durante seis dias, ocorreram vários conflitos nas proximidades do bar de Nova York. Depois disso, o movimento de emancipação gay tomaria como um de seus alvos o próprio Código Penal, assim como a religião, a psiquiatria e também a psicanálise.
Nos anos 70, a psicanálise havia atingido seu auge de popularidade e influência, especialmente nos Estados Unidos. Reverenciada como representante da autoridade em saúde mental, era praticamente indiscernível da psiquiatria médica. De 1952 a 1973, o célebre Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), hoje na quinta edição, servia na época como testemunha de uma relação muito próxima entre esses dois domínios. Em suas duas primeiras versões, o DSM era marcado pela nosologia psicanalítica, contestada a partir da elaboração de sua terceira versão em diversos pontos – um deles, a definição da homossexualidade como transtorno mental. A “patologização” da homossexualidade era, assim, a expressão de uma psicanálise que pouco lembrava suas bases libertárias. Figuras respeitadas da disciplina freudiana se engajavam em práticas de “conversão” de homossexuais e de difusão de discursos demonizadores acerca da homossexualidade.
A REGRA NÃO ESCRITA
À conquista do espaço público pela fala gay aliaram-se denúncias que abalariam as estruturas armadas para recalcar, sob o signo do silêncio, a presença de homossexuais em instituições tradicionalmente conservadoras, como o Exército, a Igreja, os cursos de medicina psiquiátrica e os institutos de formação psicanalítica. Em uma conferência nos Estados Unidos em 1972, um homem disfarçado com uma máscara, adotando a alcunha de Doctor H. Anonymous, disse após ter exposto a necessidade de esconder-se de seus pares por ser gay: “Há psicanalistas atuantes entre nós que completaram uma formação psicanalítica sem sequer mencionar sua homossexualidade a seus analistas”. Esse primeiro gesto político do psiquiatra mascarado inaugurou a “saída do armário” e repercutiu no universo psicanalítico.
A estratégia da visibilidade foi a via pela qual se fez explícita a regra silenciosa de proibição do ingresso de homossexuais assumidos na formação psicanalítica. A Associação Psicanalítica Internacional (IPA), instância reguladora dos institutos de formação desde sua fundação, em 1910, nunca editou nenhuma norma explícita que proibisse a candidatura de um pretendente à formação assumidamente homossexual. Todavia, as reações tempestuosas dos psicanalistas de diversas nacionalidades à homossexualidade tornada pública de Richard lsay – psicanalista americano, primeiro a “sair do armário”-, bem como daqueles que atenderiam a seu chamado à visibilidade, denunciam que a homossexualidade foi historicamente colocada às margens da psicanálise institucionalizada.
Em nenhum outro país além dos Estados Unidos houve a expressão pública de psicanalistas homossexuais formados pelos institutos filiados à IPA. Todavia, a orientação para a proibição é explícita em muitas denúncias e depoimentos de psicanalistas ou candidatos homossexuais rejeitados em diversos países, publicados após os eventos que marcaram a década de 70, inclusive em veículos tradicionais de divulgação psicanalítica.
No Brasil, uma reunião internacional de psicanalistas ocorrida em 2008 mostra ser consensual a opinião de que não só havia uma atitude da IPA orientada para a rejeição desses candidatos, mas de que também teorias psicanalíticas nas quais a homossexualidade era o signo de uma doença eram imediatamente levadas em conta pelos encarregados da seleção de candidatos à formação. A exclusão de homossexuais não era, portanto, um assunto exclusivo da psicanálise americana, como muitos então faziam crer.
E quais eram as teorias que viam a homossexualidade como uma patologia? Comecemos pelos primórdios. É difícil sintetizar em poucas linhas o pensamento freudiano acerca da homossexualidade masculina, e toda tentativa de obter uma compreensão unívoca resultou em algo enviesado e forçoso, seja com o intuito de encontrar uma unanimidade conservadora ou mesmo libertária. Para Freud, a homossexualidade é, assim como a heterossexualidade, derivada da bissexualidade original, produto de uma série de restrições no desenvolvimento psicossexual, conforme encontramos em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905. A crença na sexualidade “perverso-polimorfa”, típica da criança, é a matriz das reflexões de Freud acerca das limitações que resultam na preferência manifesta de alguns pela relação sexual com pares do mesmo sexo biológico.
Desde os gregos e seus efebos até a fuga da competição com o pai, passando pelo narcisismo no ensaio sobre Leonardo da Vinci, a homossexualidade segundo Freud não assume um caráter diagnóstico, nosológico ou descritivo definitivo. Ao final de sua vida, em 1935, temos ainda o testemunho dado por uma carta escrita em resposta à mãe de um homossexual, na qual lemos: “A homossexualidade não é seguramente uma vantagem, mas não é nada de que se deva envergonhar; não é um vício, não é uma degradação, não pode ser classificada como uma doença. Nós a consideramos uma variação da função sexual produzida por certa inibição do desenvolvimento sexual”.
O aspecto multifacetado da teoria freudiana serve como um índice de como seu legado não oferece uma compreensão definitiva da homossexualidade masculina, sempre pensada, repensada e contraditada de acordo com a questão que se apresentava especialmente a partir de seus casos clínicos. De sua obra, portanto, não se pode derivar seguramente qual seria sua opinião acerca do ingresso de homossexuais nas instituições psicanalíticas, até mesmo se levarmos em conta que sua última teorização mantinha a homossexualidade como uma “interrupção no desenvolvimento”. O que Freud pensava acerca disso fica claro em uma carta de 1921 em que discute com um discípulo justamente a sina de um médico rejeitado à formação psicanalítica por ser homossexual. Freud escreve: “Sua indagação, caro Ernest, a respeito da prospectiva qualidade de homossexuais como membros foi por nós considerada e discordamos de você. Com efeito, não podemos excluir tais pessoas sem outras razões suficientes, assim como não podemos concordar com suas perseguições legais. Sentimos que uma decisão em tais casos deve depender de um cuidadoso exame de outras qualidades do candidato”.
Mesmo que Freud tenha nutrido e exposto tal opinião, a posteridade psicanalítica negou a homossexuais a possibilidade de formarem-se nos institutos vinculados à IPA. Some-se a isso um recrudescimento da teoria da homossexualidade masculina como patologia e também de um moralismo praticamente ausente no texto freudiano. Uma tradição, inaugurada por Melanie Klein, muito popular após a morte de Freud, foi conceber a homossexualidade como resultado de uma perturbação pré-edípica do desenvolvimento que a avizinhava da psicose e dos transtornos borderline, muito aquém da resultante de um drama edípico conforme Freud pensava. E não seria nada raro, justamente a partir da década de 40, encontrarmos psicanalistas respeitados de diversas nacionalidades tecendo opiniões degradantes acerca da homossexualidade, bem como anunciando terem encontrado o mecanismo subjacente a toda escolha homossexual, quase sempre concebida como um erotismo equivocado em relação à aquisição do único e verdadeiro amor representado pela heterossexualidade genital e reprodutiva, e tal escolha homossexual seria, por vezes, passível de “cura” por meio da análise.
Dessa forma, a psicanálise adotava um discurso, em termos formais e ideológicos, semelhante aos da Igreja e de outras instâncias sociais normativas que traçavam as fronteiras entre os comportamentos socialmente aprováveis e os outros, marginalizados. Assim, emerge como uma consequência lógica o afastamento dos homossexuais do posto daqueles que se qualificavam como porta-vozes e vigias da normalidade (os psicanalistas), por meio do repúdio compulsório ou da assimilação mediante o segredo e o silêncio. O que caracterizava propriamente a política do “não pergunte, não conte” – ou don’t ask, don’t tell, como foi chamada no Exército americano – era também; aplicável aos dispositivos de transmissão e formação psicanalítica. Mas, quanto ao veto de homossexuais entre seus membros, como a instituição psicanalítica tornou-se equivalente ao Exército e à Igreja?
Para Freud, a psicanálise tinha como destino inevitável provocar oposição e despertar rancor, devido à posição de crítica cultural que assumira desde seus primeiros avanços. Punha-se, assim, ao lado de outros personagens e movimentos marginais da cultura dominante, como os de liberação sexual encabeçados pelo médico alemão Magnus Hirschfeld, homossexual, fundador do Instituto Psicanalítico de Berlim. Porém, já na década de 70, a psicanálise havia se tornado, nas palavras de um de seus representantes, “legítima, respeitável, bem como apática e presunçosa, atraindo aqueles que encontram segurança na conformidade e na propriedade”. No cerne desse percurso das bordas da cultura dominante ao centro está uma estrutura de poder arcana e dogmática. Para garantir que a psicanálise “original” e “legítima”, regulada pela IPA, fosse ensinada e praticada da mesma forma em todos os lugares, o mesmo sistema de formação deveria ser posto em operação. Michael Balint, notório crítico desse sistema, apontava para o fato de que nada na psicanálise era submetido a um recalque tão pronunciado quanto o próprio sistema de formação, e a resultante eram o dogmatismo e a proibição do pensamento.
Em síntese, a formação psicanalítica era caracterizada, do alto, pelos analistas didatas, os membros mais antigos e poderosos dos institutos; os candidatos desejosos de se formarem psicanalistas, depois de uma série de entrevistas iniciais, deveriam submeter-se a uma análise de tempo determinado com os didatas, bem como a uma série de supervisões de casos clínicos por eles atendidos. Um dispositivo hierárquico que operava pelo controle estrito das características dos candidatos, como se pode perceber, produziu um sistema cada vez mais normalizador, em que as personalidades não conformistas do passado cederam lugar a personalidades excessivamente obedientes.
A REGRA ENFIM ESCRITA
A resultante desse sistema de difícil oposição era que os jovens ingressantes no freudismo não tinham alternativa a não ser aceitar os parâmetros de seus antecedentes, e um veículo dessa aceitação era identificarem-se a seus analistas sob o risco de terem de abandonar o processo, não havendo outra formação além daquela legitimada pela IPA. E os parâmetros eram justamente aqueles de uma cultura que, progressivamente, demonizava a homossexualidade. Desde o recrudescimento da homofobia no mundo ocidental com o advento da Segunda Guerra Mundial, e de uma psicanálise adaptativa e conformista nos Estados Unidos, a aversão tornou-se o modelo dominante também na IPA.
Não por acaso, as críticas mais duras e efetivas ao sistema de formação psicanalítica coincidiram com o momento em que as denúncias de exclusão de homossexuais começaram a ser expressas – as sociedades psicanalíticas francesas, por exemplo, chegaram ao extremo de abolir a análise didática. Ambas as esferas estão intimamente relacionadas e começam a mudar também em um contexto de crise da psicanálise em âmbito mundial, até com a perda da influência de que antes gozava. Nesse contexto, a psicanálise americana, antes o exemplo mais claro da homofobia psicanalítica, tornou-se rapidamente uma bandeirante da libertação homossexual e, após ter estabelecido regras explícitas de não discriminação de homossexuais, forçou a IPA a emitir ela própria uma política de não discriminação, adotada em 2002 e hoje visível em seu conjunto de regras de procedimentos nos seguintes termos: “Na base de seu compromisso com valores éticos e humanísticos, a IPA se opõe a discriminações de qualquer tipo. Isto inclui, mas não se limita a qualquer discriminação baseada em idade, raça, gênero, origem étnica, crença religiosa ou orientação homossexual”.
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