GÊNIOS POR ACIDENTE
Em alguns casos, lesão na cabeça pode fazer aflorar dons artísticos ou intelectuais até então ocultos. Registro mundial apresenta apenas 32 casos de pessoas comuns em todo o planeta que, após trauma, demência ou AVC, apresentam talentos inusitados.
Um menino de 10 anos, Orlando Serrell, foi atingido por uma bola de beisebol, ficou inconsciente e descobriu mais tarde que, após o trauma, conseguia se lembrar do dia da semana exato e do clima de qualquer data. Podia recordar também os mínimos acontecimentos diários. Agredido durante um assalto, Jason Padgett sofreu uma lesão cerebral grave. Logo depois, começou a ver o que descreve simplesmente como “imagens” que ele passou a desenhar. Quando mostrou seu trabalho, soube que os padrões repetidos, similares entre si, eram fractais.
Essas duas pessoas têm uma condição notável conhecida como síndrome de savant adquirida. Na forma mais conhecida de savant – que se tornou famosa com o filme Rain man, de 1988 -, pessoas são dotadas de habilidades extraordinárias bem definidas desde o início da vida. Podem ter talentos musicais, artísticos, matemáticos, mnemônicos ou mecânicos, que contrastam com suas deficiências marcantes na linguagem, interação social e outras faculdades mentais em geral. Em Rain Man, por exemplo, o personagem do ator Dustin Hoffman, Raymond Babbitt, tinha memória incrível, habilidades impressionantes em matemática e cálculo de datas, mas também apresentava limitações cognitivas e comportamentais graves decorrentes do autismo.
Já na síndrome de savant adquirida, os níveis quase geniais de aptidões artísticas e intelectuais surgem após um golpe forte na cabeça ou outro dano cerebral. A descoberta desse fenômeno incomum levanta a suspeita de que o potencial latente em algum campo artístico ou intelectual – um “savant interior” – reside em cada um de nós. Se for assim, talvez possamos encontrar uma forma para ativar essas capacidades ocultas, mesmo na ausência de doença ou lesão.
Estudei a síndrome de savant durante grande parte da minha carreira. Até meados da década de 80, supunha que fosse congênita, sempre se apresentando desde o nascimento. Mas, então, participei da abertura da exposição de esculturas excepcionais feitas por Alonzo Clemons. Desde bebê, ele parecia aprender muito rapidamente. Por volta dos 3 anos, no entanto, uma queda resultou em lesão cerebral, retardando seu desenvolvimento cognitivo precipitadamente e deixando-o com deficiência mental grave, que comprometeu seu vocabulário e limitou a linguagem. Mais tarde, desenvolveu uma capacidade espetacular de esculpir qualquer material à disposição – mesmo subtraídos da cozinha. Com o novo talento, veio um fascínio crescente por animais. Ele podia, por exemplo, olhar para a fotografia de um cavalo em uma revista e esculpir uma réplica tridimensional em menos de meia hora, cada músculo e tendão reproduzido em detalhes precisos.
Clemons despertou meu interesse pela síndrome de savant adquirida. Examinei relatos na literatura médica, mas encontrei apenas alguns casos. Em 1923, a psicóloga Blanche M. Minogue descreveu o aparecimento de extraordinárias habilidades musicais em uma criança de 3 anos após um surto de meningite. Em 1980, T. L. Brink, também psicólogo, relatou o caso de um menino de 9 anos cujas habilidades mecânicas superiores surgiram após um ferimento com bala no hemisfério esquerdo do cérebro. Ele conseguia desmontar, remontar e modificar bicicletas de várias marchas e chegou a inventar um saco de pancadas que podia simular os saltos e movimentos de um adversário.
Esses relatos esparsos nas décadas anteriores à de 80 refletiam a raridade dessa condição, e mesmo entre médicos era pouco difundida a ideia de que uma lesão cerebral ou acidente vascular cerebral (AVC) pudesse aumentar a capacidade cognitiva ou criativa. Então, decidi coletar descrições desses casos. Até 2010, havia montado um registro mundial de 319 savants conhecidos, dos quais apenas 32 exibiam a forma adquirida.
Entre os relatórios inseridos no meu registro estava o trabalho do neurologista Bruce Miller, agora na Universidade da Califórnia em São Francisco. Em 1996, ele começou a compilar o primeiro dos 12 casos de pessoas com um transtorno conhecido como demência frontotemporal (DFT). Esses pacientes idosos demonstraram habilidades musicais ou artísticas, pela primeira vez, em alguns casos em níveis prodigiosos, após o diagnóstico. A DFT difere da demência causada pelo Alzheimer na medida em que o processo degenerativo afeta apenas os lobos frontais, e não áreas mais amplas do cérebro.
Ela normalmente visa a área temporal esquerda anterior do cérebro e o córtex orbito frontal. As duas regiões costumam inibir a atividade do sistema visual na parte de trás do cérebro, envolvida no processamento de sinais recebidos dos olhos. A doença parece promover a sensibilidade artística, desligando sinais inibitórios da parte frontal do cérebro. O desbloqueio das travas permite que o cérebro processe imagem e som de novas maneiras, liberando sensibilidades artísticas ou criativas, mesmo que os danos aos lobos frontais possam levar a comportamentos inadequados que caracterizam a DFT. “A demência fronto temporal é uma janela inesperada no processo artístico”, considera Miller.
Trabalhos posteriores concluem que o gênio por acidente resulta da atividade diminuída em algumas áreas cerebrais combinada com intensificação em outras, como contrapeso. Mais especificamente, trata-se de um conjunto de eventos que eu chamo de os três Rs, que ocorrem depois que o cérebro está danificado, em geral após o hemisfério esquerdo ser atingido, de modo semelhante ao que aconteceu com os casos de DFT de Miller. O processo começa com o recrutamento, um aumento na atividade elétrica no tecido cortical ainda intacto, muitas vezes no hemisfério direito. Em seguida, os circuitos cerebrais passam por religação para estabelecer conexões recém-formadas entre regiões que não estavam previamente ligadas. Depois, vem a recomposição da capacidade dormente, resultante do acesso aumentado às áreas cerebrais recém-conectadas.
Um experimento de Richard Chi e Allan Snyder, ambos então no Centro da Mente, da Universidade de Sydney, usou uma tecnologia relativamente nova para fornecer alguma evidência de que essas mudanças cerebrais são responsáveis por habilidades savant. Com estimulação transcraniana por corrente contínua (ETCC), os cientistas fizeram com que voluntários desenvolvessem, por alguns minutos, habilidades semelhantes às dos savants. A técnica gera uma corrente elétrica polarizada para diminuir a atividade na parte do hemisfério esquerdo envolvido na entra da sensorial, memória, linguagem e outros processos cerebrais, enquanto a atividade no hemisfério direito (lobo temporal anterior direito) é aumentada.
Então, os cientistas pediram a participantes do estudo que resolvessem o quebra-cabeça dos nove pontos com ou sem ETCC – uma tarefa que exige criatividade para buscar a solução de maneira não convencional. Participantes tiveram de ligar três fileiras de três pontos usando quatro linhas retas sem erguer a caneta e sem passar por cima das linhas traçadas. Nenhum deles conseguiu resolver antes do estímulo, e, quando 29 pessoas foram expostas à estimulação “simulada”- eletrodos colocados sem nenhuma corrente para testar efeitos placebo -, ainda assim ficaram perdidas. Com a corrente ligada, no entanto, cerca de 40% – 14 de um total de 33 participantes – foram bem-sucedidos na atividade.
Como uma pessoa pode, de repente, sair-se muito melhor ao toque de um botão? Pois tanto os savants congênitos quanto os adquiridos “sabem de coisas” intrinsecamente, sem que tenham sido ensinados. Clemons, o escultor, não teve nenhum treinamento formal em arte, mas sabia instintivamente como produzir uma armação, a estrutura da escultura, que permitisse que suas peças mostrassem cavalos em movimento.
NEURÔNIOS CONECTADOS
Uma explicação plausível para talentos ocultos que surgem na síndrome de savant – seja no início da vida ou induzida por lesão – é que “reservatórios de aptidões e conhecimento” devem ser herdados de alguma forma. Não começamos a vida com uma lousa em branco, posteriormente inscrita pela educação e por outras experiências de vida. O cérebro pode vir carregado de um conjunto de predisposições inatas para processar o que vê ou para entender as “regras” da música, arte ou matemática. A diferença é que os savants conseguem alcançar o conhecimento herdado muito melhor que uma pessoa comum.
Saber que esses talentos podem surgir até mesmo mais tarde na vida suscita a questão de descobrir se todos podem se tornar savants e se isso seria possível sem ter de enfrentar as agruras da lesão cerebral ou da demência. A maneira mais óbvia de desencadear esse brilho oculto seria aplicar a ETCC – o u uma tecnologia relacionada denominada estimulação magnética transcraniana repetitiva – como uma “touca de pensamento” que ligaria e a pagaria regiões cerebrais para potencialmente aumentar a capacidade criativa da pessoa. Uma solução tecnológica pode não ser um pré-requisito absoluto, no entanto. A meditação ou simplesmente a prática assídua de uma habilidade artística pode permitir a ligação do lado direito mais criativo do cérebro e, assim, explorar capacidades artísticas desconhecidas.
Compreendendo melhor o cérebro, cientistas podem encontrar outras formas de determinar o que acontece ao aumentar ou diminuir o volume de circuitos cerebrais. O imageamento por tensor de difusão (ITD) e o rastreamento por tensor de difusão (RTD), que identificam as conexões entre os neurônios (“rastreamento de fibras”), são mais adequa dos que os métodos anteriores para revelar os meandros da fiação no cérebro humano, permitindo que pesquisadores correlacionem a atividade cerebral com o súbito aparecimento de aptidões. Essas tecnologias mais precisas podem proporcionar imagens tridimensionais das fibras que unem as células cerebrais. Um desafio para descobrir a neurobiologia do savantismo é a dificuldade de observar o cérebro enquanto realiza tarefas criativas que exijam movimento. Não apenas é difícil esculpir ou tocar piano dentro de um aparelho de ressonância magnética, mas qualquer movimento compromete a acuidade das imagens. Uma técnica mais recente – espectroscopia do infravermelho próximo (NIRS) – contornaria esses problemas substituindo máquinas volumosas por um solidéu confortável que mede a quantidade de oxigênio no sangue fluindo através dos vasos sanguíneos do cérebro e retransmite informações para o software de processamento de imagem. Ainda mais promissor é um capacete desenvolvido recentemente que usa outra técnica de imageamento – a tomografia por emissão de pósitrons (PET) – para monitorar quando uma pessoa está sentada, em pé ou até mesmo exercitando-se. O desafio maior parece ser encontrar as melhores maneiras de explorar nosso “pedacinho de Rain Man” mantendo intacto o restante de nossas faculdades mentais.
APRIMORAMENTO INSTANTÂNEO
Uma tecnologia denominada estimulação magnética transcraniana repetitiva pode desencadear temporariamente habilidades semelhantes ao savant e oferece uma forma de investigar como surgem essas habilidades. Quando a têmpora esquerda é estimulada, um campo magnético pulsante se propaga pelo crânio, aparentemente desligando circuitos cerebrais na área temporal esquerda, responsável pelo processamento de palavras e outras informações. Nesse momento, circuitos cerebrais do lado direito, dedicados a tarefas espaciais, assumem papel mais abrangente no processamento mental. Em vários casos, pessoas expostas a campos magnéticos puderam adivinhar melhor a quantidade de uma enorme coleção de objetos.
PEQUENOS FLASHS DE GENIALIDADE
Mesmo sem passar por algum trauma que, eventualmente, desperte uma habilidade excepcional, a maioria das pessoas pode ter “flashs de genialidade” – aqueles momentos em que tudo “se encaixa” e surge uma grande ideia. O insight tão bem-vindo pode ser muito útil – e, embora não seja possível forçá-lo a aparecer, há maneiras de favorecê-lo. Se, por exemplo, você já passou um bom tempo refletindo sobre um problema e sente que se meteu num beco sem saída, isso significa que pode estar muito perto da solução. Segundo pesquisas, a sensação de não conseguir ir adiante às vezes precede uma súbita descoberta. Se, no entanto, você não consegue avançar ou fica tentando sempre a mesma solução, faça uma pausa. Ou, melhor ainda: tire uma soneca.
De fato, importantes insights aparecem quando sonhamos ou depois de uma cochilada. Conta-se que o famoso químico alemão Friedrich August Kekulé von Stradonitz (1829 – 1896), por exemplo, descobriu a estrutura anular do benzeno ao sonhar com uma cobra que mordia o próprio rabo.
O sono faz bem a esses processos perceptivos, como revelou um estudo de autoria de Ullrich Wagner e de seus colegas das universidades de Lübeck e Colônia. Eles propuseram a voluntários séries simples de caracteres às quais, mediante a aplicação de duas regras lógicas, os participantes deveriam reagir pressionando uma sequência de teclas. Contudo, as séries de caracteres eram escolhidas de tal modo que as tarefas podiam ser resolvidas também com o emprego de uma estratégia bem mais simples. Os voluntários efetuaram uma grande quantidade dessas tarefas, durante as quais se computaram quantos deles conseguiam descobrir a estratégia mais favorável. Aqueles que, antes de descoberto o atalho, foram interrompidos e postos para dormir por algumas horas encontraram o truque com muito mais facilidade que aqueles aos quais os pesquisadores não permitiram a pausa para uma soneca.
Os pesquisadores explicam essa diferença espantosa recorrendo a processos de consolidação que têm lugar no hipocampo durante o cochilo: desse modo, as novas informações recebidas são associadas ao saber armazenado na memória há mais tempo. E isso pode fazer com que descubramos com maior rapidez estratégias mais simples de resolução de problemas
Se tirar uma soneca não é possível, deixar que o pensamento divague um pouco ajuda. Ou, então, ir fazer alguma coisa que deixe você de bom humor – tomar um sorvete ou, talvez, jogar uma partidinha de pingue pongue. Muitos estudos demonstram que um estado de espírito positivo propicia a contemplação inconsciente de um problema de outro ponto de vista, conduzindo, assim, à solução.
TALENTOS ESPECIAIS
O savantismo adquirido permite que as pessoas se lembrem de fatos com enorme precisão, façam desenhos, poesia e música de qualidade, além de cálculos mentais complexos instantaneamente. Veja alguns casos:
O falecido TOMMY MC HUGH era um construtor de 51 anos, de Liverpool, na Inglaterra, sem nenhum interesse especial por poesia ou pintura. Em 2001, depois de sofrer uma hemorragia no revestimento do crânio que danificou a área frontal do cérebro, ele começou a encher cadernos com poemas e passava grande parte do tempo pintando e esculpindo. Os médicos atribuíram esse novo talento à “desinibição relativa”, que libera a capacidade de evocar justaposições incomuns de palavras ou de imagens. McHugh fez exposições no Reino Unido e sua história foi registrada em diversos documentários para a televisão.
ORLANDO SERRELL, hoje com 47 anos, começou a fazer cálculos de calendário quando menino após ter sido nocauteado por uma bola de beisebol. Ele consegue determinar o dia da semana de qualquer ano, desde a data da lesão. Também relembra o clima de todos os dias desde então. Suas habilidades de memória avançaram a ponto de ele se lembrar dos mínimos detalhes das atividades diárias – uma condição conhecida como memória hipertimésica. Escaneamentos de seu cérebro, no Centro Médico da Universidade Colúmbia, confirmaram que Serrell se envolve em cálculo inconsciente e sua habilidade não se baseia em memorizar o calendário, mas em cálculo.
DEREK AMATO era um treinador empresarial de 40 anos, vivia no Colorado e não tinha nenhum interesse ou aptidão especial em música. Em 2006, ele mergulhou na parte rasa de uma piscina, teve lesão cerebral grave e perdeu parte da audição de um ouvido. Após a alta hospitalar, foi atraído inexplicavelmente para o piano, que nunca havia tocado antes. Começou a ver manchas em preto e branco que conseguiu transpor de sua mente para notas. Agora cria composições ao vivo, toca e grava.
O cirurgião ortopédico TONY CICORIA, de Nova York, falava ao telefone em 1994, quando foi atingido por um raio. Presumiu-se que estava com parada cardíaca e foi reanimado por uma enfermeira que aguardava o uso do telefone. Durante dez dias, ele teve alguns problemas leves de memória – que finalmente cederam, e ele retomou sua prática profissional, sem efeitos residuais do raio. Mas com uma mudança: desenvolveu obsessão pela música clássica. Antes do acidente, gostava de rock, mas depois mostrou enorme desejo de tocar música clássica.
Pouco depois da lesão, ouviu música em um sonho. A melodia o tomou, ressoando por dias em sua cabeça após ter acordado. Finalmente, ele decidiu transcrever a insistente peça em um concerto de piano de 26 páginas denominado Fantasia: the lightning sonata, op. 1.
JASON PADGETT, que desenvolveu paixão por matemática, física e formas geométricas após agressão num assalto, ainda gerencia três lojas de futon (colchão tradicional japonês) no estado de Washington. Agora ele chama a lesão de “raro do m”.
Antes do assalto, Padgett tinha aversão a matemática. Agora o ex desistente da faculdade frequenta cursos de alto nível sobre o tema para entender completamente as figuras geométricas pelas quais tanto se interessa. Escreveu um livro sobre suas experiências.
Você precisa fazer login para comentar.