OUVINDO VOZES
A difícil jornada de uma estudante estigmatizada pelo diagnóstico de esquizofrenia destaca como o preconceito em relação a transtornos mentais e a hostilidade vivida por pacientes podem ser até mais prejudiciais que os próprios sintomas do distúrbio.
Em 1999, quando saí de casa dos meus pais para ingressar na universidade, estava esperançosa e otimista. Havia sido boa aluna no ensino médio e tinha grandes expectativas. Entrei no campus com o pé direito e frequentei excelentes aulas, além de festas animadas. Aparentemente era corajosa, cheia de energia e capaz de enfrentar os desafios para alcançar um futuro brilhante.
Por trás dessa fachada, no entanto, me sentia profundamente infeliz, insegura e assustada. Tinha pavor de outras pessoas, medo do futuro, do fracasso e de ficar aquém das altas expectativas que havia estabelecido para mim mesma. E, acima de tudo, temia o vazio que sentia. Porém era bastante hábil para esconder essas angústias. O escudo de invulnerabilidade que criei parecia tão perfeito que cheguei a acreditar que estava protegida. Naquele momento não havia como alguém prever a catástrofe que estava prestes a me acontecer.
Tudo começou no segundo semestre da faculdade. Após ter participado de um seminário, enquanto mexia na mochila e cantarolava, exatamente como sempre fazia, ouvi: “Ela está saindo do prédio”. Era uma expressão calma, apenas um aviso. Olhei ao redor. Não havia ninguém por perto, mas as palavras eram tão claras e precisas que tive certeza de que não era minha imaginação. Abalada, deixei cair meus livros pelas escadas e corri para casa. Assim que cheguei, escutei novamente: “Ela está abrindo a porta”.
A VOZ HAVIA CHEGADO
Eu não sabia na época, mas aquele era o começo de uma terrível jornada pessoal. Fui diagnosticada como esquizofrênica – o que trouxe a pesada carga da desaprovação social sobre mim e deu início a uma espiral descendente de angústia e desesperança. A recuperação veio aos poucos com a ajuda de um médico dedicado e do apoio de amigos e da minha família. Ao longo desse árduo caminho, aprendi muito sobre mim mesma e como o sofrimento mental é rechaçado e incompreendido em nossa cultura – e mesmo pela medicina. O estigma pode ser um obstáculo para a recuperação tão desafiador quanto o fato de ouvir vozes. Mas, para compreender o percurso pelo qual passei, é importante retomar o início dessa saga.
A Voz costumava ficar comigo por alguns dias e depois desaparecia. Aos poucos, começou a voltar com maior frequência e permanecer por mais tempo, até que passou a persistir por semanas inteiras, narrando tudo em terceira pessoa. “Ela está chegando à aula.” “Ela está indo para a biblioteca.” O tom natural e tranquilo soava estranhamente familiar e reconfortante. No entanto, aquele som pacato foi mudando aos poucos. A Voz passou a espelhar emoções que eu experimentava, mas não conseguia expressar.
Por exemplo, se eu estivesse com raiva e tentasse esconder (o que, aliás, era algo frequente), o tom se tornava contrariado. A maior parte do tempo, porém, eu me sentia bem. A sensação era de que algo queria me mostrar minhas verdadeiras emoções, principalmente aquelas distantes e inacessíveis.
Depois de dois meses, contei o problema para um amigo. Falei do que tanto me preocupava: o fato de que as pessoas “normais” não escutem uma voz em sua cabeça só poderia significar algum problema muito grave. Fazer a confidência foi meu primeiro erro. O medo e a desconfiança do rapaz – que, aliás, ilustram bem como o assunto é tratado como tabu em nossa sociedade – tiveram efeito prejudicial imediato sobre mim. Depois do desabafo, comecei a me sentir desconfortável e adotei uma atitude hostil contra o que ouvia em minha cabeça. De repente, a voz não soava mais tão familiar e atendi prontamente o pedido do meu amigo para procurar ajuda médica. Esse foi meu segundo erro.
Não comentei logo de cara a Voz. Procurei falar sobre o que acreditava serem meus problemas reais: ansiedade, baixa autoestima, insegurança em relação ao futuro. O clínico geral da faculdade parecia extremamente entediado com o assunto. No entanto, quando mencionei a Voz, ele quase derrubou sua caneta, girou a cadeira em minha direção e começou a me encher de perguntas. Nesse momento consegui sua atenção. E, para ser sincera, eu queria muito ser ouvida, estava desesperada para que as pessoas se interessassem por mim e tentassem me ajudar.
Eu disse ao médico tudo sobre os estranhos comentários que escutava. Enquanto conversava, a Voz permanecia em silêncio. Aposto que, se fosse para falar algo, ela diria: ” Ela está cavando sua própria sepultura”.
O CIRCO MÉDICO
O clínico me encaminhou a uma psiquiatra, que também teve uma visão sombria sobre o caso. De fato, ela interpretou tudo o que eu disse através de uma lente de insanidade latente. Por exemplo, durante uma longa consulta, comentei que precisava encerrar porque apresentaria o noticiário das 6. Ela não teve dúvida: anotou no meu prontuário: “Eleanor tem delírios sobre ser apresentadora de uma emissora de televisão”. O que ela não sabia é que de fato eu participava do canal universitário do campus. Nesse dia, tive de correr para não chegar atrasada. A psiquiatra, porém, jamais se preocupou em explorar minha afirmação. Simplesmente concluiu que eu estava louca.
Não demorou muito para que eu fosse diagnosticada como esquizofrênica. E o pior: comecei a me sentir terrivelmente desiludida, atormentada e humilhada. Fui encorajada a encarar tudo como simplesmente uma doença em vez de perceber a situação como uma experiência humana. O medo e a resistência foram se tornando cada vez maiores e desenvolvi, cada vez mais, uma postura agressiva em relação ao que era basicamente parte da minha própria mente. Sentia-me envolvida em uma espécie de guerra psíquica.
Quanto mais procurava me afastar da Voz, mais hostil ela se tornava. Logo, ela se transformou em muitas. E começaram a ficar cada vez mais ameaçadoras. Sentindo-me impotente e abatida, recuei para um angustiante mundo interno, onde as vozes me perseguiam, mas também eram minhas únicas companhias. Uma vez, elas me disseram que, se eu provasse ser digna de sua ajuda, poderiam restaurar minha vida e tudo voltaria a ser como antes. E estabeleceram uma série de tarefas cada vez mais bizarras que eu deveria cumprir. No começo eram até simples, como arrancar três fios de cabelo. Mas, aos poucos, elas se tornaram mais exigentes a ponto de me prejudicar. Num dia, recebi uma instrução particularmente grave: “Vê aquele professor ali? Percebe o copo em sua mesa? Pegue-o e derrame a água sobre ele”. E foi o que fiz. Obviamente não fiquei muito bem-vista nem pelo professor nem pelo restante da faculdade.
Dois anos depois daquela primeira conversa com o médico da faculdade, me sentia terrivelmente deteriorada emocionalmente. A essa altura, havia desenvolvido um repertório frenético de vozes assustadoras, visões grotescas e delírios bizarros. O diagnóstico havia se tornado uma marca, uma espécie de estigma social que me mantinha no lugar da perturbada, diferente e vulnerável. Fiquei estarrecida ao perceber o quanto eu incomodava algumas pessoas. Virei alvo de constantes intimidações por um grupo de colegas, que no início tentavam me isolar, mas passaram a me insultar verbalmente e, aos poucos, partiram para agressão física e sexual. Fui diagnosticada, drogada e descartada.
Um dia, meu psiquiatra comentou: “Eleanor, seria melhor ter câncer. Você teria maiores chances de cura”. Meus sonhos pareciam efetivamente enterrados. Estava tão atormentada pelas vozes que comentei com meus pais (tristes e horrorizados com a situação) minha intenção de fazer um buraco em minha cabeça para “arrancá-las” de lá. Felizmente fui impedida de concretizar esse gesto, mas o fato de ter esse ímpeto era um sinal devastador do meu desespero de ter sido condenada àquela vida.
AS PALAVRAS DA DOR
Quando olho para trás e percebo a ruína que vivi durante aqueles anos, tenho a sensação de que uma parte de mim morreu. No entanto, uma pessoa foi salva. Uma mulher aterrorizada e despedaçada começou uma viagem, mas outra a concluiu: uma sobrevivente que conseguiu se transformar em quem realmente era. Até me lembro das pessoas que me prejudicaram, mas muito mais daquelas que me ajudaram. Minha mãe, que jamais desistiu de mim, sabia que um dia me recuperaria – e ela estava disposta a esperar o tempo que fosse preciso. O médico que trabalhou comigo por apenas um breve período sempre acreditou na recuperação. Durante tempos terríveis de recaída, ele reconfortava minha família: “Não desistam, tenham esperança. Eleanor vai superar essa situação. A tristeza pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã”, dizia.
Pessoas boas e generosas lutaram comigo e aguardaram para me receber de volta daquele lugar solitário e angustiante no qual me refugiava, dentro de minha cabeça. Eles me ajudaram a forjar coragem, criatividade e a crença de que meu ego estilhaçado poderia ser reintegrado. Eu costumava dizer que elas me salvaram. Hoje, acredito que fizeram algo melhor: fortaleceram me para que eu mesma pudesse me curar.
A ajuda que recebi foi crucial para entender o que sempre suspeitava: as vozes eram importantes respostas de eventos traumáticos, particularmente da infância – e não minhas inimigas como estamos acostumados a pensar. Elas foram o caminho para me fazer olhar para problemas emocionais que poderiam ser resolvidos. Inicialmente, sentia que as vozes eram poderosas e intimidadoras. Mas perceber seus significados metafóricos foi decisivo para caminhar em direção à cura. As vozes que ameaçavam atacar minha casa, por exemplo, não precisavam ser tomadas como um perigo objetivo, mas como uma expressão de meus próprios sentimentos de insegurança e medo do mundo. Levou um bom tempo até que eu conseguisse “decodifica las”. Inicialmente, não conseguia interpretá-las de maneira construtiva. Recordo-me de ter ficado em guarda durante uma noite na porta do quarto dos meus pais para protegê-los do que acreditava ser uma ameaça real anunciada. Além disso, objetos cortantes foram escondidos para evitar o risco iminente de autolesão. Aos poucos, comecei a enxergar a situação com mais tranquilidade e a usar a criatividade para lidar com o que surgia. “Não mexam comigo, tenho um garfo de plástico”, brincava. Com o tempo, voltei a usar os talheres convencionais e comecei a desconstruir a mensagem por trás das palavras. Por exemplo, quando as vozes me diziam para não sair de casa, comecei a interpretá-las com uma tentativa de chamar minha atenção para o fato de estar insegura. Com isso, me tranquilizava e percebia que não precisava me sentir tão assustada.
Decidi definir limites para as vozes e interagir com elas de forma assertiva, mas respeitosa. Comecei estabelecendo um lento processo de comunicação e colaboração para trabalharmos juntas. Finalmente aprendi que cada voz que ouvia estava intimamente relacionada a aspectos pessoais e carregava intensas emoções que nunca havia tido oportunidade de processar e resolver: memórias traumáticas de abuso sexual, vergonha, raiva, perdas. As vozes tomaram o lugar da dor e deram palavras a ela.
NADA MAU PARA UMA LOUCA
Acredito que um dos principais insights que tive foi conseguir relacionar as vozes mais negativas a situações em que havia sido muito machucada. Esses conteúdos agressivos precisavam emergir para serem olhados e cuidados. A tentativa de encarar esses sintomas como algo “ruim” a ser eliminado só prolongou meu sofrimento. De fato, as vozes apontavam para o caminho da cura, tentando chamar minha atenção para os conflitos emocionais que precisava elaborar. Saber disso me deu forças para reunir os estilhaços de mim mesma, cada fragmento representado por uma voz diferente.
Aos poucos, me livrei da medicação. E, com o tempo, voltei à compreensão da fragilidade mental – mas não como paciente, e sim como estudante. Dez anos após a primeira consulta, finalmente me formei com mérito em psicologia. Um ano depois, me tornei mestre, também com a pontuação mais elevada e, mais recentemente, obtive o grau de doutora.
Desde que iniciei essa difícil jornada, as vozes nunca mais pararam. O que mudou foi minha relação com elas depois que as reconheci como parte de mim. Aprendi a aceitá-las, o que as tornou menos hostis. Aliás, às vezes são até úteis. Já as escutei sussurrando respostas durante uma prova. Conta como cola? A experiência me ajudou também a ouvir duas conversas ao mesmo tempo. Talvez eu possa usar essa habilidade como espiã.
Brincadeiras à parte, às vezes sinto que gosto da atenção que recebo das vozes. Como estudante de psicologia, uma coisa ficou muito clara: minha história pessoal de reintegração emocional se apoia numa crescente produção de literatura acadêmica sobre experiências consideradas indicativas de esquizofrenia. Há evidências de que grande parte do 1,5 milhão de pessoas diagnosticadas a cada ano com a patologia não é vítima de desequilíbrio químico ou mutação genética. De fato, elas demonstram respostas complexas de situações de abuso, perdas, abandono ou outros eventos traumáticos do passado. Foi o que aconteceu comigo. Considerar esses aspectos é fundamental para desenvolver tratamentos mais eficazes na área de saúde mental e ajudar pessoas a lidar melhor com suas dificuldades.
Hoje dedico minha vida e carreira profissional para promover essa discussão. Nos últimos anos, tenho trabalhado em serviços de saúde mental, falado em conferências, publicado artigos acadêmicos e capítulos em livros para apontar a relevância desses conceitos na abordagem psiquiátrica. Acredito ser fundamental substituir a pergunta (e a compreensão) “O que há de errado com você?” por “O que acontece com você?”.
Depois de muito esforço, aprendi a viver com minhas vozes em paz e com respeito, o que reflete os sentimentos de afeto e aceitação que desenvolvi por mim mesma. Apoiar outra jovem aterrorizada por vozes foi um dos momentos mais comoventes e extraordinários durante minha recuperação. Ajudála me ajudou a perceber claramente, pela primeira vez, que naquele momento eu estava em outra posição e finalmente poderia estender a mão para alguém que passava pela mesma situação.
Tenho muito orgulho de participar da comunidade lntevroiec (www.intervoiceonline.org), uma organização internacional do Hearing Voices Movement, uma iniciativa inspirada no trabalho dos psiquiatras Marius Romme e Sandra Escher. Para eles, ouvir vozes não é um sintoma anômalo característico da esquizofrenia e que deve ser suportado, mas uma experiência importante e significativa a ser explorada. Nessa perspectiva, vozes são estratégias de sobrevivência, uma reação benéfica diante de circunstâncias emocionalmente desorganizadoras.
Juntos, buscamos construir referências para uma sociedade que entenda as pessoas que ouvem vozes, preste suporte e as valorize como cidadãs. Acredito que essas conquistas são um lembrete de que a empatia, a fraternidade, a justiça e o respeito não são só palavras, mas convicções. Talvez pareça utópico, mas para mim não é exagero dizer que crenças podem mudar o mundo.
Nos últimos 20 anos, o movimento estabeleceu redes do Hearing Voices em 26 países, nos cinco continentes, e desenvolveu ações conjuntas para promover autonomia e dignidade para pessoas em sofrimento psíquico. Trabalhamos para desenvolver novas práticas de tratamento, apostando no poder e na resistência do sujeito. Para a sociedade, nada é mais gratificante do que facilitar o processo de cura de alguém: acompanhar de perto, estender a mão, compartilhar o pesado fardo de sofrimento e, acima de tudo, acreditar na recuperação. Da mesma forma, é importante lembrar que não precisamos viver definidos pelas circunstâncias prejudiciais pelas quais passamos. Uma vez, um médico sensível me disse: “Não me diga o que as outras pessoas falam sobre você… Fale-me de você…”. E isso fez diferença em minha história.
COM A AJUDA DA FAMÍLIA
Amigos próximos e pessoas da família, em geral, não sabem como agir quando alguém passa a apresentar sintomas de esquizofrenia. Diante da nova situação, repleta de dificuldades, é comum ficar entre dois extremos: refugiar-se no conformismo, que leva a não procurar tratamentos; ou adotar postura imediatista e iludindo-se com a ideia de que as coisas irão se resolver magicamente, de uma hora para outra, seja mudando o remédio, confiando em apenas um tipo de profissional da saúde ou simplesmente não aceitando o distúrbio.
O mais saudável, tanto para o paciente quanto para aqueles que o querem bem, é procurar um caminho intermediário. Ou seja: informar se sobre a doença sem negá-la e compreender que se trata de um transtorno crônico, que exige cuidados em longo prazo. Os resultados, muitas vezes, são lentos e a melhora só é possível com a busca constante e cotidiana de resolução de problemas e de exercício de diálogo e atendimento multidisciplinar. A experiência tem mostrado que, com o acesso a informações corretas sobre os transtornos mentais, é possível estabelecer relações de solidariedade, diminuindo o isolamento dos pacientes e o preconceito.
Não raro, aqueles que convivem com o paciente também precisam de cuidados, já que a carga emocional pela qual passam é bastante forte. Por isso, é importante integrar-se a grupos de pessoas que vivem a mesma situação ou mesmo procurar atendimento psicológico individual.
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