COMO SERIA O MUNDO SEM O LIVRE-ARBÍTRIO?
Especialistas em comportamento se perguntam o que poderia ocorrer numa sociedade em que as pessoas estivessem convictas de não ter responsabilidade pelas próprias ações. Pesquisas oferecem vagas ideias desse cenário um tanto perturbador, que pode indicar riscos de desmantelamento da organização social.
Em julho de 2008, o metalúrgico aposentado Brian Thomas e sua esposa, Christine, viajaram com seu trailer para um pequeno vilarejo litorâneo no País de Gales. Incomodado por motoqueiros que faziam manobras barulhentas, o casal se mudou para o estacionamento de uma pousada próxima. Mais tarde, naquela mesma noite, Thomas sonhou que um dos motociclistas havia invadido o trailer. Enquanto dormia, ele confundiu sua mulher com o motoqueiro imaginário e a estrangulou. Ou, pelo menos, foi assim que relatou o caso. No ano seguinte, um júri teve de decidir se Thomas era culpado de assassinato. Os jurados ficaram sabendo que ele era propenso ao sonambulismo desde a infância. Um perito em psiquiatria sustentou a tese de que Thomas não estava ciente do que fazia quando sufocou a mulher e de que não havia decidido atacá-la conscientemente. Thomas foi inocentado.
Casos como esse forçam as pessoas a considerar o que significa a capacidade de fazer escolhas de maneira consciente. Durante um episódio de sonambulismo, o cérebro pode direcionar as ações sem que a pessoa esteja ciente disso. Recentemente um número crescente de psicólogos e neurocientistas tem argumentado que, com base na atual compreensão do cérebro humano, todos, de certa forma, estamos sonambulando o tempo todo. Em vez de sermos os autores intencionais de nossas vidas, somos simplesmente manipulados por acontecimentos passados e por maquinações ocultas de nossa mente inconsciente. Mesmo quando estamos perfeitamente acordados, a ampla capacidade de fazer escolhas seria apenas uma ilusão.
Pensadores com esse ponto de vista argumentam que todos os organismos são regidos pelas leis físicas de um Universo onde cada ação é o resultado de eventos anteriores. Humanos são organismos e, assim, o comportamento que apresentam resulta de uma complexa sequência de causa e efeito fora de controle. Segundo essa lógica, o Universo simplesmente não permite o livre-arbítrio. Recentes estudos neurocientíficos intensificaram essa noção ao sugerir que a experiência da escolha consciente é o resultado dos processos neurais subjacentes que produzem ações, e não sua causa. Nosso cérebro decide tudo o que fazemos sem a “nossa” ajuda – e a ideia de que temos voz ativa é apenas aparente.
Obviamente, nem todos concordam com esse ponto de vista, e os debates continuam acalorados. Mas nós dois estamos intrigados com uma questão relacionada e de igual importância: o que acontece quando a crença (justificada ou não) na capacidade de fazer as próprias escolhas é abalada? Qual será o aspecto de uma sociedade pós-livre-arbítrio, ou melhor, uma sociedade pós-crença em livre arbítrio? Nossa pesquisa sobre essa questão oferece algumas vagas ideias de uma resposta, algumas delas perturbadoras. Em particular, vemos sinais de que uma falta de crença na possibilidade de tomar decisões pode acabar desmantelando a organização social.
TOLERÂNCIA AO CRIME
Alguns de nossos experimentos, no entanto, indicaram um resultado mais ameno, ao sugerir que uma sociedade que abandonou a crença no livre-arbítrio seria menos punitiva. Em pesquisas de opinião constatamos que, quanto mais as pessoas duvidam da capacidade de escolher, menos favorecem a punição “retributiva”, ou seja, o castigo não é imposto para impedir crimes futuros, mas sim para fazer as pessoas arcarem com as transgressões cometidas. Mas o que os entrevistados pensavam sobre o livre-arbítrio não diminuiu o apoio à punição “consequencialista”, que abandona a noção de castigo justo ou merecido – e concentra-se nos meios mais eficazes para desencorajar o crime e reabilitar o criminoso. De fato, céticos do livre-arbítrio pensam em pessoas que infringem a lei de forma similar a terremotos, inundações violentas ou outros fenômenos naturais: querem se proteger contra danos, mas não buscam vingança.
Uma pesquisa posterior apresentou resultado similar. Metade dos participantes leu um trecho de um livro que argumentava que uma visão racional dos humanos não deixa espaço para escolhas. A outra metade leu uma passagem do mesmo livro não relacionada à liberdade de tomar decisões. Como esperávamos, o primeiro grupo ficou mais reticente quanto à existência do livre-arbítrio.
Posteriormente, todos os participantes leram uma história sobre um homem hipotético condenado por matar alguém em uma briga de bar. A história deixava claro que o encarceramento não ajudaria a reformá-lo. Os que tinham sido expostos a argumentos contra o livre-arbítrio recomendaram metade do tempo de prisão que os voluntários do outro grupo. Em experimentos de acompanhamento, descobrimos que nem era necessário mencionar explicitamente o livre-arbítrio para mudar o modo como as pessoas pensam sobre o assunto e, consequentemente, como decidem uma punição apropriada para um crime. Depois de terem lido artigos de revistas científicas populares que descreviam os mecanismos neurais subjacentes a ações humanas, sem menção explícita de livre-arbítrio, as pessoas consideraram um criminoso imaginário menos culpado que os voluntários não expostos a esses materiais. Participantes que leram sobre ciência cerebral também recomendaram cerca da metade do tempo de prisão para homicídio. Aprender sobre o cérebro em uma aula na faculdade parece ter efeitos similares. Um recente experimento conduzido pela pesquisadora Lisa G. Aspinwall, da Universidade de Utah, e seus colegas se acrescenta a essa linha de evidências. Eles mostraram que, quando um transtorno mental de um suposto criminoso é explicado em linguagem científica como algo que essencialmente domina o cérebro, juízes se mostram particularmente propensos a sentenciar o acusado a uma pena de prisão mais curta.
Embora uma leniência maior por duvidar do livre-arbítrio possa ser uma coisa boa em muitos casos, abandonar completamente a punição criminal seria desastroso. Uma pesquisa experimental de Bettina Rockenbach, da Universidade de Colônia, na Alemanha, mostrou que, embora poucas pessoas gostem da ideia abstrata de pertencer a um grupo que pune seus membros por delitos, na prática a maioria esmagadora prefere isso.
No experimento, Bettina Rockenbach e seus colegas pediram a voluntários que se envolvessem com jogos de cooperação e lhes deram a opção de participar de um grupo que podia punir ou não seus membros. De início, apenas um terço dos participantes optou pelo grupo que podia punir seus integrantes, mas após 30 rodadas quase todos haviam mudado para a outra equipe. Por quê? Simples: esses experimentos confirmaram o que sociedades humanas constataram incontáveis vezes ao longo da história: quando leis não são estabelecidas e executadas, as pessoas têm pouca motivação para trabalhar em conjunto para um bem maior. Em vez disso, elas se colocam acima de todas as outras e se esquivam de toda responsabilidade, mentindo, trapaceando e roubando.
Mas o ceticismo em relação ao livre-arbítrio pode ser perigoso até para uma sociedade que tem leis. Parte de nossa pesquisa revela que essa dúvida, que enfraquece um senso de responsabilidade por nossas ações, incentiva as pessoas a abandonar regras. Em estudos realizados por Jonathan W. Schooler, da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, voluntários que leram uma passagem contra o livre-arbítrio trapacearam 50% mais em um teste acadêmico – optando por espiar as respostas – em comparação aos colegas que leram um trecho neutro. Além disso, em outro estudo, em que os participantes foram remunerados por cada questão de um teste a que haviam respondido corretamente, os que tinham lido declarações contra o livre-arbítrio alegaram ter acertado mais respostas e aceitaram o pagamento correspondente.
PIMENTA PARA OS MAUS
A crença reduzida no livre-arbítrio parece também liberar impulsos que podem prejudicar os outros. Uma das formas como psicólogos, em especial americanos, medem agressão no laboratório é dar às pessoas a oportunidade de colocar pimenta ou molho picante de tomate em um lanche que eles sabem que será servido a alguém que detesta alimentos condimentados. Roy F. Baumeister, da Universidade do Estado da Flórida, e seus colaboradores pediram a um grupo de voluntários que lessem argumentos pró e contra a existência do livre-arbítrio antes de prepararem tortillas de milho e um molho claramente rotulado como picante a outro voluntário que, antes, havia rejeitado os membros do grupo, recusando-se a trabalhar com eles. Todos sabiam perfeitamente que essa mesma pessoa arrogante não era fã de nada picante e teria de comer tudo o que lhe fosse servido. Os voluntários que leram textos questionando a existência do livre-arbítrio usaram quase o dobro da quantidade de molho apimentado no prato.
A neurociência revelou que há formas de o ceticismo em relação ao livre-arbítrio deteriorar o comportamento ético e enfraquecer a força de vontade. Antes de as pessoas fazerem um movimento simples, como pegar uma xícara, determinado padrão de atividade elétrica, conhecido como potencial de prontidão, surge no córtex motor, a área do cérebro que ajuda a regular movimento. Ao colocar eletrodos no couro cabeludo de voluntários, Davide Rigoni, da Universidade de Pádua, na Itália, mostrou que reduzir a crença das pessoas no livre arbítrio diminuía essa atividade elétrica. Em um estudo de acompanhamento, aqueles cuja convicção na existência da possibilidade de tomar decisões livremente havia sido abalada foram menos capazes de inibir reações impulsivas durante um teste computadorizado de força de vontade. Tudo indica que, quanto menos acreditamos ser capazes de fazer escolhas, menos força temos para nos abster do impulso de mentir, trapacear, roubar e servir molho apimentado a pessoas que não gostam de condimentos. Mas como a sociedade vai reagir se a pesquisa neurocientífica continuar desafiando a convicção das pessoas de que elas têm livre-arbítrio?
CAMINHOS A SEGUIR
Vemos três possibilidades. A história está repleta de exemplos de como normas morais evoluem com novos conhecimentos do mundo. Em seu livro Os anjos bons da nossa natureza – Por que a violência diminuiu (Companhia das Letras), o psicólogo Steven Pinker, da Universidade Harvard, documenta uma “revolução humanitária” ao longo dos últimos 300 anos em que práticas previamente institucionalizadas, como a escravidão e a punição cruel e incomum, foram amplamente vilipendiadas como moralmente repugnantes. Pinker atribui a mudança, em parte, ao conhecimento expandido de diferentes cult uras e ao comportamento humano resultante do grande aumento de alfabetização, aprendizagem e troca de informações na época do Iluminismo.
Novas descobertas sobre o mecanismo biológico do pensamento e ação humana podem inspirar uma mudança também drástica em opiniões morais. Essa é a primeira possibilidade. Como já ocorreu antes, transformações em sentimentos morais podem ajudar a aprimorar o sistema penal americano. Atualmente, a punição criminal é impulsionada principalmente pela desforra “olho por olho”, um tipo de castigo apoiado por pessoas que acreditam no livre-arbítrio, e que, talvez como resultado, é lamentavelmente ineficiente para dissuadir crimes futuros. A sociedade deveria evitar punir as pessoas apenas para vê-las sofrer e, em vez disso, se concentrar em meios mais eficazes para prevenir a atividade criminal e transformar infratores passados em cidadãos produtivos – estratégias que se tornam mais atraentes quando as pessoas questionam a realidade do livre-arbítrio. Apesar dos riscos ocasionais, duvidar do livre-arbítrio poderá ser um tipo de dor de crescimento da sociedade enquanto alinha intuições morais e jurídicas a novos conhecimentos científicos, tornando-nos mais fortes.
Mas talvez não ocorra assim. Como nossa pesquisa sugeriu, quanto mais as pessoas duvidam do livre-arbítrio, mais indulgentes se mostram com os acusados de crimes e mais dispostas elas mesmas se tornam a quebrar as regras e prejudicar os outros para conseguir o que querem. Portanto, a segunda possibilidade é que o recém-descoberto ceticismo quanto ao livre-arbítrio pode ameaçar a revolução humanitária, potencialmente culminando no caos.
A mais provável é a terceira possibilidade. No século 18, Voltaire afirmou que, se Deus não existisse, precisaríamos inventá-lo, porque a noção de sagrado é vital para manter a lei e a ordem na sociedade. Considerando o fato de que a crença na capacidade de fazer as próprias escolhas e se haver com os resultados delas coíbe as pessoas de se envolver nos tipos de delitos que poderiam desfazer uma cultura organizada, o paralelo é óbvio. O que as pessoas farão se chegarem à conclusão de que têm, de fato, pouca possibilidade de tomar decisões imediatas? Talvez elas possam reinventar a capacidade escolher…
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