CICATRIZES PROFUNDAS
Pesquisa realizada com crianças abandonadas pelos pais biológicos na Romênia mostrou de forma contundente o impacto devastador que a experiência de passar os dois primeiros anos de vida dentro dos limites impessoais de uma instituição pode causar sobre a mente e o cérebro.
Em 1966, o então líder da Romênia Nicolae Ceausescu decretou que o país deveria incrementar a produtividade econômica e desenvolver o seu “capital humano”. Para isso, era preciso aumentar a população ativa do país. Ceausescu, no poder entre 1965 e 1989, proibiu os contraceptivos e o aborto e aplicou um “imposto sobre o celibato” para famílias com menos de cinco filhos. Médicos do Estado – a chamada “polícia menstrual” – conduziam exames ginecológicos de mulheres em idade fértil em seu local de trabalho. Obviamente, a taxa de natalidade disparou, mas, como as famílias eram pobres demais para manter os filhos, abandonaram muitos em enormes instituições estatais. Em 1989, quando foi deposto durante a revolução, havia mais de 170 mil crianças nesses locais. E, nos dez anos seguintes, seus sucessores fizeram várias tentativas hesitantes de reparar o dano que ele legou.
O “problema dos órfãos”, entretanto, permaneceu por muitos anos. Uma década após Ceausescu ter sido retirado do poder, alguns funcionários do governo ainda diziam que o Estado era melhor que famílias na criação de crianças abandonadas e que aqueles confinados em instituições eram, por definição, “defeituosos” – uma visão ancorada no sistema inspirado pela União Soviética de educar incapacitados, apelidado de “defeitologia”.
Mesmo após a revolução de 1989, famílias ainda se sentiam autorizadas a abandonar crianças não desejadas em instituições estatais. Há muito, cientistas sociais suspeitam que o início de vida em um orfanato pode levar a consequências negativas. Vários estudos, notadamente pequenos e descritivos, sem grupos de controle, foram conduzidos entre as décadas de 40 e 60 no Ocidente, comparando crianças de instituições com as acolhidas pelas famílias e mostraram que a vida em uma instituição não chegou nem perto de igualar o cuidado de um pai ou uma mãe – mesmo que não fossem biológicos. Um problema desses estudos foi a possibilidade do “viés de seleção”, uma vez que crianças retiradas de instituições e acolhidas por famílias costumam ser menos comprometidas. O único modo de evitar qualquer viés exigiria o passo inédito de colocar aleatoriamente um grupo de crianças abandonadas em uma instituição ou acolhimento familiar.
Compreender os efeitos da institucionalização no desenvolvimento infantil é importante devido à imensidão do problema mundial de órfãos (define-se um órfão aqui como uma criança abandonada ou cujos pais morreram). Só nos últimos anos, guerras, doenças, pobreza e, por vezes, políticas governamentais levaram pelo menos 8 milhões de crianças em todo o mundo a instalações controladas pelo governo. Não raro, esses meninos e meninas vivem em ambientes altamente estruturados, mas irremediavelmente sombrios, onde é normal um adulto supervisionar de 12 a 15 crianças.
Em 1999, quando nos aproximamos de Cristian Tabacaru, na época secretário de Estado da Autoridade Nacional para a Proteção da Criança, da Romênia, ele nos incentivou a realizar um estudo sobre crianças institucionalizadas, pois queria informações para lidar com a questão de saber se desenvolveria formas alternativas de cuidados para as 100 mil crianças romenas que viviam em instituições estatais. No entanto, Tabacaru enfrentava forte resistência de alguns funcionários do governo que, por décadas, acreditaram que a educação de crianças nas instituições era melhor que em acolhimento familiar. O problema foi agravado porque os orçamentos de algumas agências de governo eram muitas vezes garantidos pelo seu papel de prover cuidados institucionais. Diante desses desafios, Tabacaru acreditava que evidências científicas sobre as supostas vantagens de acolhimento familiar forneceriam dados convincentes para a reforma, e assim nos convidou a ir adiante com um estudo.
IMPACTOS SOBRE A INTELIGÊNCIA
Com a ajuda de alguns funcionários do governo romeno e especialmente de trabalhadores da ONG Sera Romênia desenvolvemos um estudo para determinar os efeitos da vida em uma instituição do Estado sobre o cérebro da criança e seu comportamento, e se a adoção poderia amenizar os efeitos dessa educação em condições que vão contra o que sabemos sobre as necessidades nos primeiros anos de vida. O projeto de intervenção precoce de Bucareste foi lançado em 2000, em cooperação com o governo romeno, em parte para permitir respostas que pudessem amenizar os efeitos colaterais de políticas anteriores. O legado infeliz do governo de Ceausescu ofereceu a oportunidade de examinar, com maior rigor científico do que em qualquer pesquisa anterior, os efeitos da assistência institucionalizada no desenvolvimento neurológico e emocional de lactentes e crianças pequenas. O estudo foi o primeiro randomizado e controlado que comparou um grupo de bebês colocados em lares de acolhimento com outro formado por crianças educadas em instituições, o que possibilitou um nível de precisão experimental até então indisponível.
Das seis instituições para bebês e crianças até os 3 anos em Bucareste, recrutamos um grupo de 136, consideradas saudáveis, sem problemas neurológicos, genéticos e congênitos. A escolha foi feita com base em exames pediátricos realizados por um membro da equipe de estudo. Todos os pequenos “voluntários” haviam sido abandonados nas primeiras semanas ou meses de vida. No início do estudo, tinham em média 22 meses, e a faixa etária variava de 6 a 31 meses.
Após avaliações físicas e psicológicas básicas, metade das crianças foi aleatoriamente destinada a uma intervenção de acolhimento familiar desenvolvida, mantida e financiada por nossa equipe. A outra metade – a que chamamos de grupo com “cuidados usuais” – permaneceu em instituições. Recrutamos também um terceiro grupo em desenvolvimento típico que nunca foi institucionalizado e vivia com suas famílias em Bucareste. Esses três grupos foram acompanhados por mais de dez anos. Como as crianças foram aleatoriamente designadas para acolhimento familiar ou para a instituição, diferentemente de estudos anteriores, foi possível mostrar que as eventuais diferenças de desenvolvimento ou de comportamento entre os dois grupos poderiam ser atribuídas ao local onde foram criadas.
Como, ao começarmos, não havia praticamente nenhum lar de acolhimento disponível para os pequenos rejeitados em Bucareste, ficamos na posição privilegiada de ter de construir nossa própria rede. Após ampla publicidade e verificação de antecedentes, recrutamos 53 famílias para criar 68 crianças (mantivemos irmãos juntos).
É claro que havia muitas questões éticas envolvidas em um experimento científico com crianças no qual apenas metade dos participantes foi inicialmente retirada de instituições. O projeto comparou a intervenção-padrão com o acolhimento familiar, uma intervenção que nunca fora disponível para essas crianças. Proteções éticas postas em prática incluíam a supervisão por várias instituições romenas e americanas, medidas de “risco mínimo” (rotineiramente usadas para proteger crianças) e a não interferência em decisões do governo sobre mudanças de local (casos em que crianças foram adotadas, devolvidas a pais biológicos ou mais tarde colocadas em lares de acolhimento governa mentais ausentes no início).
Além disso, nenhuma criança foi transferida do acolhimento familiar para uma instituição no final do estudo. Assim que os primeiros resultados se tornaram disponíveis, comunicamos as descobertas ao governo romeno em uma entrevista coletiva. Para garantir a boa qualidade dos cuidados que os pequenos receberiam nas famílias, criamos um programa para incorporar a participação regular de uma equipe de serviço social e fornecemos subsídios modestos às famílias para despesas da criança, além de um pequeno salário. Todos os pais adotivos foram treinados e incentivados a ter compromisso psicológico total para seus filhos adotivos.
O estudo se propõe a explorar a premissa de que a experiência precoce muitas vezes exerce uma influência muito forte na formação do cérebro imaturo. Para certos comportamentos, conexões neurais se formam nos primeiros anos em resposta a influências ambientais durante os chamados “períodos críticos”. Uma criança que ouve a língua falada ou simplesmente olha ao redor recebe estímulos sonoros e visuais que formam conexões neurais em momentos específicos de desenvolvimento. Os resultados do estudo apoiam essa premissa inicial de um período especialmente crítico: a diferença entre uma vida precoce passada em uma instituição em comparação com o acolhimento familiar foi dramática.
Aos 30, 40 e 52 meses, o quociente intelectual (QI) médio do grupo institucionalizado apresentou pontuação entre 70 e 75, enquanto crianças adotadas mostraram cerca de 10 pontos a mais. Não foi surpresa que o QI de cerca de 100 foi o padrão médio para o grupo que nunca ficou em instituições. Descobrimos também um período crítico para uma criança obter ganho máximo em QI: as que foram acolhidas em um lar por volta dos 2 anos tiveram um índice significativamente maior que alguém que passou a viver com uma família após essa idade.
PARA MEDIR O VÍNCULO
As descobertas demonstram claramente o impacto devastado r sobre a mente e o cérebro da experiência de passar os dois primeiros anos de vida dentro dos limites impessoais de uma instituição. As crianças romenas são a melhor evidência até agora de que os dois anos iniciais da vida constituem período crítico em que o contato emocional e físico é imprescindível para o bom desenvolvimento.
Os bebês que têm cuidadores constantes e afetivamente significativos – sejam eles pais biológicos ou adotivos – aprendem a buscar apoio, conforto e proteção. Observamos essa dinâmica, decidimos mensurar esse vínculo. Apenas condições extremas que limitem oportunidades de uma criança para formar ligações afetivas podem interferir no processo que é a base para o desenvolvimento social normal. Quando medimos essa variável em bebês institucionalizados, descobrimos que a maioria exibia relações frágeis com seus cuidadores.
Quando tinham 42 meses, fizemos outra avaliação e descobrimos que meninos e meninas que viviam em uma família apresentaram melhorias drásticas na criação de vínculos emocionais. Quase metade estabeleceu conexões seguras com outra pessoa, enquanto isso ocorreu com apenas 18% dos bebês que viviam em instituições. Entre as crianças que nunca foram institucionalizadas, 65% tinham vínculos seguros. E as que viviam com famílias antes do fim do período crítico de 24 meses eram mais propensas a formar vínculos seguros, em comparação a crianças acolhidas após esse período.
Esses números são muito mais que meras disparidades estatísticas que separam os grupos de institucionalizados e de acolhi mento. São experiências bem reais tanto de angústia quanto de esperança. Sebastian (*), de 12 anos, passou praticamente a vida toda em um orfanato e teve uma diminuição de 20 pontos em seu QI (medido inicialmente quando tinha 5 anos), para o nível ínfimo de 64. Tornou-se um adolescente instável e afeito a comportamentos de risco. Durante uma entrevista conosco, ficou irritado e teve explosões de raiva.
Bogdan, também de 12 anos, ilustra bem a diferença de receber atenção individual de um adulto. Abandonado ao nascer, viveu em uma maternidade até os 2 meses, depois foi para uma instituição por nove meses. Foi então recrutado para o projeto e entrou no grupo de acolhimento, sendo encaminhado para a família de uma mãe solteira e sua filha adolescente. Bogdan começou a se recuperar rapidamente e superou leves atrasos de desenvolvimento em poucos meses. Embora tenha apresentado alguns problemas de comportamento, os membros da equipe do projeto trabalharam com a família, e no seu quinto aniversário a mãe adotiva decidiu adotá-lo. Aos 12 anos, o QI de Bogdan continua a marcar um nível acima da média, ele frequenta uma das melhores escolas públicas de Bucareste e obtém ótimas notas.
Como crianças criadas em instituições não parecem receber muita atenção individual, estávamos interessados em saber se escassez de exposição à língua teria algum efeito sobre elas. Observamos atrasos no desenvolvimento da linguagem, mas, se os pequenos chegavam a um lar de acolhimento antes de atingir 15 ou 16 meses, essa capacidade parecia preservada. Porém, quanto mais tardia a inserção, maior o atraso.
Comparamos também a prevalência de problemas de saúde mental entre todos que já haviam sido institucionalizados com os que não tinham essa experiência. Descobrimos que 53% das crianças que já viveram em instituição receberam um diagnóstico psiquiátrico até os 4 anos e meio, em comparação com 20% em grupos das que nunca foram institucionalizadas. De fato, 62% das crianças com idade por volta dos 5 anos que viveram sob a custódia do governo foram diagnosticadas principalmente com distúrbios de ansiedade, 23%, com transtorno de atenção e hiperatividade (TDAH).
PALAVRA E AFETO
Os cuidados em um lar de acolhimento exerceram grande influência sobre níveis de ansiedade e depressão, reduzindo a incidência à metade, mas não afetaram diagnósticos comportamentais (TDAH e transtornos de conduta). Não foi possível detectar nenhum período sensível para a saúde mental, mas o relacionamento foi importante para garantir um bom desenvolvimento psicológico. Quando exploramos o mecanismo para explicar a redução de distúrbios emocionais, como a depressão, descobrimos que, quanto mais firme a ligação entre uma criança e a mãe e/ou pai adotivos, maior a probabilidade de amenização dos sintomas da criança. Ou seja: do ponto de vista científico, o afeto tem amplos efeitos terapêuticos.
Queríamos saber também se os primeiros anos em acolhimento familiar afetavam o desenvolvimento do cérebro de modo diferente da vida em um abrigo. Uma avaliação da atividade cerebral com eletroencefalografia (EEG), que registra sinais elétricos, mostrou que bebês que viviam em instituições tiveram reduções significativas em um componente da atividade na EEG e nível elevado em outra (menos ondas alfa e mais teta), padrão que pode refletir atraso da maturidade neurológica. Ao avaliarmos as mesmas crianças aos 8 anos, voltamos a registrar exames de EEG. Constatamos que o padrão de atividade elétrica em crianças colocadas em lares adotivos antes de 2 anos não era diferente do daquelas que nunca haviam passado por uma instituição. Tanto as que foram retiradas de abrigos após os 2 anos quanto as que nunca deixaram o local mostraram um padrão menos maduro de atividade cerebral.
A diminuição perceptível na atividade de EEG entre crianças dos abrigos foi desconcertante. Para interpretar esse resultado, usamos imagens de ressonância magnética, capazes de revelar estruturas cerebrais, e observamos que as crianças institucionalizadas mostraram uma grande redução no volume de massa cinzenta (corpos celulares de neurônios e outras células) e de massa branca (coloração devida à mielina, substância isolante que recobre as extensões de neurônios). Em geral, todos os meninos e meninas abrigados apresentaram volume cerebral reduzido. Porém, inserir crianças de qualquer idade em núcleos familiares não exerceu efeito sobre o aumento da massa cinzenta – o grupo em lares apresentou níveis de massa cinzenta comparáveis aos de crianças institucionalizadas. No entanto, crianças em lares de acolhimento demonstraram maior volume de massa branca, o que pode explicar as mudanças na atividade de EEG.
Para examinar melhor o prejuízo biológico da institucionalização precoce, concentramos a atenção em uma área crucial do genoma, os telômeros. Essas áreas, localizadas nas extremidades dos cromossomos, oferecem proteção contra as tensões da divisão celular. São mais curtas em adultos que sofrem extremos estresses psicológicos e podem ser uma marca de envelhecimento celular acelerado. Quando examinamos o comprimento dos telômeros nas crianças de nosso estudo, observamos que, em geral, as que haviam passado algum tempo em uma instituição tinham telômeros mais curtos do que os das outras.
LIÇÕES PARA TODOS
O projeto de intervenção precoce de Bucareste demonstra os efeitos profundos que a experiência exerce sobre o desenvolvimento do cérebro. Cuidados em acolhimento familiar não remediaram totalmente as anomalias profundas de desenvolvimento ligadas à criação institucional, mas principalmente mudaram o desenvolvimento de crianças, possibilitando uma trajetória mais saudável.
A identificação dos períodos críticos – momentos mais propícios para superar a privação – pode ser uma das descobertas mais significativas de nosso projeto. Essa observação tem implicações que vão além dos milhões de crianças em instituições, estendendo-se a milhões de outras crianças maltratadas. Cabe, porém, um alerta: é fundamental não concluir que 2 anos podem ser rigidamente definidos como período crítico para o desenvolvimento. O mais importante parece ser levar em conta a evidência de que, quanto antes crianças forem cuidadas por pais dedicados e estáveis emocionalmente, melhores suas chances de um desenvolvimento mais equilibrado.
Atualmente continuamos a acompanhar essas crianças até a adolescência para observar se há “efeito retardado”, isto é, diferenças comportamentais ou neurológicas significativas que surgem apenas mais tarde, na juventude ou até na idade adulta. Além disso, a proposta é determinar se os efeitos de um período crítico foram observados em idades mais precoces ainda, a serem vistos assim que as crianças entram na adolescência. Se forem, reforçarão uma crescente corrente que fala sobre o papel das experiências iniciais de vida na formação de desenvolvimento em toda a vida.
Nossa esperança é que esses conhecimentos exerçam pressão sobre governos do mundo todo para que prestem mais atenção ao preço que a adversidade e a institucionalização precoces assumem na capacidade de uma criança para atravessar os perigos emocionais da adolescência e adquirir a resiliência necessária para lidar com os desafios da vida adulta.
ALGUÉM PARA CUIDAR DE VOCÊ
A tragédia da política do líder comunista Nicolae Ceausescu de aumentar a taxa de natalidade nacional levou a mais de 100 mil crianças abandonadas na Romênia em 1999 – e a uma oportunidade sem precedentes para avaliar o impacto psicológico e neurológico do início da vida em uma instituição estatal. Um experimento, conduzido sob supervisão ética, acompanhou o destino das crianças de uma instituição em relação às colocadas em acolhimento familiar e outras que nunca foram institucionalizadas. As crianças encaminhadas a acolhimento familiar antes do fim do período crítico de dois anos se saíram muito melhor que as que permaneceram em uma instituição quando testadas mais tarde (aos 42 meses) em quociente de desenvolvimento (QD), medida de inteligência equivalente ao QI, e na atividade elétrica cerebral, conforme avaliação por eletroencefalogramas (EEGs). Entrar em acolhimento familiar após os dois anos produziu EEGs que lembravam os de crianças institucionalizadas.
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