O ENIGMA DA FIBROMIALGIA
Novas pistas sobre as origens dessa síndrome de dor crônica sem causa aparente, que atinge principalmente as articulações e os músculos, podem ajudar a desvendar o desconforto que em 90% dos casos afeta mulheres de 35 a 50 anos.
A professora Débora R., de 39 anos, mãe de dois meninos, desenvolveu dor e fadiga muscular profunda, aparentemente do nada. “Eu me lembro do momento em que subia as escadas de madeira para o meu quarto no segundo andar, angustiante”, recorda. Ela chegou a passar dias inteiros na cama, levantando-se apenas para ir ao banheiro. Numa das piores crises, ficou dez dias sem sair do quarto.
O médico suspeitava de depressão e dizia que, em alguns casos, o incômodo poderia ser explicado pelo distúrbio de humor. Mas isso não convencia a paciente nem seu marido. Além do desconforto muscular generalizado, Débora sentia formigamento e queimação nas mãos e nos pés, dores de cabeça e sensibilidade à temperatura e a toques leves. Especialistas procuraram sem sucesso sinais de esclerose múltipla, artrite, câncer, lúpus, doença de Lyme e diversas patologias autoimunes. Após dois anos de avaliação, um reumatologista finalmente deu um diagnóstico: fibromialgia.
Isso, porém, a deixou muitas perguntas sem resposta. Estima-se que possivelmente mais de 4 milhões de brasileiros sofram de fibromialgia, a grande maioria mulheres. A síndrome é diagnosticada quando os especialistas deparam com diversos sintomas de dor que excluem todas as outras causas potenciais. Na maioria dos casos, as sensações incluem fadiga, desconforto crônico e profundo incômodo muscular que afeta todo o corpo, semelhante ao que sentimos quando temos gripe.
Os médicos identificaram esse conjunto de sinais pela primeira vez há mais de um século, mas pouco se pesquisou sobre o problema até 1977. Nessa época, cientistas da Universidade de Toronto descreveram esses dolorosos sintomas mais formalmente, o que reacendeu o interesse científico. Em 1990, o Colégio Americano de Reumatologia definiu o termo “fibromialgia” e desenvolveu orientações para um diagnóstico consistente.
A partir daí, reumatologistas começaram a buscar indícios de inflamação ou lesões nas articulações e nos músculos. Afinal, a dor da A fibromialgia parecia se originar nessas áreas. No entanto, não encontraram nada sólido. Nos últimos dez anos, os cientistas se concentraram basicamente no cérebro. Hoje em dia, porém, alguns pesquisadores começam a suspeitar que a busca de sinais de lesão no corpo foi abandonada muito cedo. Novos estudos feitos por neurologistas de várias partes do mundo sugerem que a inexplicável sensação dolorosa pode ser explicada, pelo menos em parte, pela deterioração de nervos. Se for possível interromper os danos e curar as feridas, também será possível cessar a dor.
COMO ANDAR DE BICICLETA
Apesar de milhares de estudos acumulados em mais de 30 anos, a fibromialgia permanece notavelmente misteriosa, mesmo para os profissionais da saúde. A variação de intensidade de sintomas de uma pessoa para outra – sem motivo aparente – parece delinear a síndrome: enquanto alguns experimentam apenas leve desconforto ou fadiga, outros se tornam incapacitados.
A fibromialgia é uma das muitas formas reconhecidas de dor persistente. A maioria é considerada inflamatória, como alguns tipos de artrite, ou neuropática, que frequentemente é provocada por lesão do nervo. No caso da fibromialgia, porém, até agora os cientistas não encontraram evidências consistentes de inflamação ou dano.
Pesquisadores cogitam que o quadro esteja associado a aspectos hereditários. Há indícios de que os genes são responsáveis por até 50% do risco de desenvolver a síndrome. Hoje, os especialistas concordam que algumas pessoas apresentam predisposição à dor crônica, que surge de alterações em genes que codificam moléculas-chave de sinalização de incômodo. No entanto, neste caso, os fatores de risco genéticos não estão limitados a um circuito associado à dor. Algumas dessas mesmas peculiaridades do código genético também podem ser verificadas na depressão e nos transtornos de ansiedade.
O histórico de dificuldades psicológicas dos pacientes com a síndrome lança ainda mais dúvidas. Muitos a desenvolvem após um trauma físico ou emocional. Pesquisadores suspeitam que a fibromialgia seja deflagrada quando um indivíduo com propensão genética é exposto a um gatilho fisiológico, como doença, lesão ou crise emocional. “É possível pensar numa combinação de pré-determinantes hereditários”, afirma a neurologista Claudia Sommer, da Universidade de Würzburg, na Alemanha. “Quem vive os desafios da vida de forma equilibrada costuma ter mais chances de tolerar o desconforto; mas quando um trauma, uma doença ou perda não são elaborados psiquicamente, esse excesso pode se manifestar no corpo, em forma de dor crônica.”
Alguns especialistas suspeitam que o fenômeno fibromiálgico resulte da junção de diversas doenças distintas, mas semelhantes. E apesar das incógnitas que ainda prevalecem, o diagnóstico traz algum conforto para pacientes que acham extremamente útil nomear sua dor, descobrir pessoas com sintomas parecidos e ser levados a sério por seu médico.
Para compreenderem com base no sistema nervoso central alguns dos sintomas frequentes, como fadiga, problemas de memória e distúrbios do sono, cientistas utilizaram exames de imagem com o intuito de observar se pacientes com a síndrome processavam a dor de maneira diferente das outras pessoas. Os pesquisadores descobriram que indivíduos com essa condição parecem ter menos volume cerebral no córtex cingulado e no córtex frontal medial – áreas consideradas essenciais para a experiência global da dor. Outro estudo aponta para a alteração da atividade cerebral em áreas relacionadas à atenção e ao processamento da entrada sensorial, como o som. Alguns cientistas levantam a hipótese de um desequilíbrio no “controle do volume” do cérebro para essas sensações, o que poderia ampliar o desconforto.
Essa compreensão sobre o fenômeno ajuda a moldar a abordagem terapêutica para o tratamento da fibromialgia, que tem se concentrado principalmente no cérebro. Os três únicos medicamentos aprovados pela Administração de Drogas e Alimentos (FDA, na sigla em inglês) para tratar a síndrome são um anticonvulsivo e dois medicamentos antidepressivos. Esses inibidores seletivos da recaptação de serotonina e noradrenalina, ou ISRSN, ajudam a atenuar no cérebro e na medula espinhal os sinais de incômodo.
O problema é que essas drogas não são efetivas para a maioria dos pacientes. Estudos de revisão publicados em 2012 e 2013 apontam que os medicamentos proporcionam certo alívio para alguns, mas não melhoram o sono ou a qualidade de vida global. Além disso, até agora, nenhuma pesquisa esclareceu se a fibromialgia altera o cérebro ou se o sistema nervoso central de alguns tem pré-disposição para a dor persistente. Embora os padrões neurais observados nos pacientes tenham sido inicialmente considerados características da síndrome, foi constatado posteriormente que eram comuns em qualquer problema de saúde relacionado à dor crônica. Os cientistas suspeitam que esse padrão remodele a arquitetura cerebral e os padrões de atividade neural da mesma maneira que aprender a andar de bicicleta ou falar uma nova língua.
SENSÍVEIS DEMAIS
Enquanto isso, neurologistas alemães, americanos e espanhóis identificaram um padrão peculiar em pacientes com polineuropatia das pequenas fibras (PNPF), um distúrbio que provoca dores e danos nos nervos periféricos. Desses, muitos haviam sido diagnosticados com fibromialgia.
A neurologista Anne Louise Oaklander, do Hospital Geral de Massachusetts, convidou alguns especialistas para colaborar com suas investigações sobre essa relação, mas não encontrou nenhum reumatologista disposto a entrar em um projeto tão especulativo e interdisciplinar. Ela, então, decidiu assumir o estudo. Para procurar sinais de danos nos nervos de pessoas com fibromialgia, a médica e sua equipe utilizaram vários testes, como biópsia da pele (em que minúsculas fibras nervosas de uma pequena amostra de tecido da mão ou da perna são examinadas no microscópio). “Optamos por esse método porque, até então, ninguém havia observado os nervos adequadamente”, diz a pesquisadora.
Os resultados publicados em 2013 revelaram que 41% dos 27 pacientes com a síndrome não apresentavam terminações nervosas. O mesmo pode ser observado nos casos de PNPF, em que há desgaste dos nervos até o ressecamento de suas extremidades. No mesmo ano, Claudia Sommer encontrou resultados semelhantes. As surpreendentes descobertas sugerem que, em alguns casos, a neuropatia periférica pode contribuir para a fibromialgia.
A síndrome é heterogênea. As cientistas, portanto, não esperavam encontrar prejuízos compatíveis nos nervos. Pelo contrário: os resultados sugerem que a neuropatia é uma variante da fibromialgia. Talvez os danos causados nos nervos da superfície deflagrem os sintomas da síndrome ou indique maior comprometimento das fibras nervosas que sustentam os músculos e tendões. Em 2014, outras duas publicações apontaram deterioração do nervo periférico em pacientes com fibromialgia – o que reforça a hipótese de que os danos poderiam desempenhar um papel importante.
Estudos com biópsia confirmaram indícios da neuropatia, mas não revelaram a atividade dos nervos. O neurologista Jordi Serra, da MC Mutua e da Tecnologias Neurocientíficas, ambas na Espanha, abordou a questão com uma complexa técnica chamada microneurografia, na qual um eletrodo em forma de agulha é inserido em um nervo da pele para gravar seus impulsos elétricos. A equipe de Serra comparou os resultados de indivíduos sadios com aqueles com PNPF ou fibromialgia e descobriu que os nervos sensíveis à dor de um terço dos pacientes mostraram atividade alterada espontaneamente, o que não foi observado em nenhum dos voluntários do grupo de controle.
Os resultados, publicados no ano passado na revista Annais of Neurology, sugerem que os nervos de alguns pacientes com PNPF ou fibromialgia disparam excessivamente. “Normalmente, essas fibras permanecem imóveis, esperando, por exemplo, um sinal de uma queimadura ou um beliscão”, diz Serra. Em pessoas com essas síndromes, porém, os detectores de dor parecem hiperativos ou extrassensíveis. É possível que o mesmo problema que afeta as terminações nervosas também altere a sensibilidade dos nervos. O excesso de atividade poderia explicar o desconforto. “A hiperexcitação dos nervos favorece a descarga espontânea de sinais que correm até o cérebro, o que sustenta a dor contínua”, explica o neurologista.
Os especialistas sabem que a PNPF pode ser causada por lesões, diabetes, mutações genéticas ou ataque do sistema imunitário. Portanto, acreditam que processos semelhantes poderiam estar na base da perda de nervos em alguns casos de fibromialgia. O sinal persistente de incômodo, então, reconectaria o sistema nervoso de forma gradual, preparando o corpo para a dor.
O PERIGO DA CHUVA
A semelhança com a PNPF traz a esperança de que ao tratar o problema subjacente, como um distúrbio autoimune, os médicos possam amenizar ou até mesmo curar alguns casos de fibromialgia. A mudança climática costuma funcionar como um gatilho para o desconforto. Muitos pacientes com fibromialgia percebem claramente que quando a temperatura cai e os dias se tornam chuvosos a sensação dolorosa aumenta. Essa sensibilidade em relação ao clima também pode estar associada a anomalias nervosas. Em 2013, o neurocientista Frank Rice, então da Escola Médica Albany, e seus colegas estudaram minuciosamente nervos que terminam em pequenos vasos sanguíneos, os desvios arteríola-venule. Localizados próximos à superfície das palmas das mãos, aumentam e diminuem a quantidade de sangue para regular a temperatura corporal. Também controlam o fluxo para tecidos mais profundos, permitindo o funcionamento de músculos e órgãos durante exercícios físicos. Rice descobriu que, comparados com indivíduos sadios, aqueles com fibromialgia apresentavam significativamente mais terminações nervosas nos desvios que têm como função expandir os vasos sanguíneos.
Rice acredita que isso poderia alterar sua contração e expansão, dificultando a troca regular de calor, o que causaria interferência no fluxo sanguíneo de músculos profundos e de órgãos. Tecidos privados de sangue rico em oxigênio também poderiam contribuir para a fadiga, uma das principais características da fibromialgia. Por enquanto, o neurocientista admite que não é possível definir o papel dos desvios na síndrome, mas destaca a necessidade de investigação mais aprofundada.
As evidências apontadas por Rice e outros cientistas sugerem fortemente que a fibromialgia está relacionada a danos físicos ou alterações nos nervos num subconjunto substancial de pacientes. Os estudos recentes não invalidam a ideia de que o quadro envolva mudanças no sistema nervoso central (SNC). Pelo contrário, reforçam que os pesquisadores podem compreender melhor o problema (e oferecer tratamentos mais efetivos) considerando os elementos centrais e periféricos.
CAUSA OU CONSEQUÊNCIA?
Mas nem todos concordam com os resultados das novas pesquisas sobre os nervos periféricos. Alguns, como o reumatologista Daniel Clauw, da Universidade de Michigan, acreditam que as anormalidades nervosas recém-descritas são apenas subproduto de um sistema nervoso hiperativo. “Sabemos que há remodelação do SNC nos estados de dor”, diz. Ele destaca que, assim como o aprendizado, o incômodo persistente provoca alterações na arquitetura cerebral. “Então, por que não aconteceria o mesmo no sistema nervoso periférico?”, questiona.
Outros médicos e pesquisadores, no entanto, estão mais otimistas. Na opinião do reumatologista Roland Staud, especialista em fibromialgia e pesquisador da Universidade da Flórida, a estratégia mais eficaz é tratar o corpo e a mente. Para lidar com a dor, ele recomenda exercícios físicos, hábitos saudáveis de sono e alimentação, além do aprendizado de estratégias mentais práticas, como técnicas de respiração para diminuir o estresse. A meditação costuma trazer excelentes resulta dos e a psicoterapia tem extrema importância no sucesso terapêutico.
Staud acredita que é possível tratar as fibras nervosas para aliviar os sintomas mais amplos da fibromialgia. Em outras condições de dor neuropática, os pesquisadores constataram experimentalmente que o bloqueio com anestésicos da sinalização hiperativa aberrante do nervo pode diminuir até os sintomas enraizados no SNC. Além disso, o tratamento de possíveis fontes de lesão das fibras nervosas, como diabetes ou distúrbios imunitários, ajuda pacientes com PNPF. Abordagens semelhantes também podem funcionar para pessoas com fibromialgia.
Em última análise, a experiência da dor culmina no cérebro, mas pode ter origem em qualquer lugar, da pele do dedão do pé até o córtex. As chances de amenizar os sinais de desconforto em qualquer ponto ao longo do percurso traz alívio – e esperança para milhões de pessoas em todo o planeta.
PSICOTERAPIA É FUNDAMENTAL
Embora a síndrome não tenha cura, pode ser controlada de forma eficiente com uma combinação de cuidados. Na prática, é recomendado que a pessoa evite carregar peso, desenvolva rotinas para manter a qualidade de sono e procure preservar-se ao máximo de situações que aumentem o estresse. Mas, na base dessas providências, um dos maiores desafios do paciente com fibromialgia é aprender a cuidar de si mesmo, sem permitir que a síndrome se torne o centro de sua existência. O apoio de vários profissionais é importante, mas para que seja possível a articulação entre as várias experiências, terapêuticas e pessoais, é indispensável que a pessoa tenha um espaço seguro que lhe permita elaborações e construção de sentidos em relação ao que vive. No processo psicoterápico, deve haver espaço não apenas para tratar da dor, propriamente dita, mas também de conteúdos – medos, angústias, desejos e fantasias – que estão além e aquém dela.
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