OS RESTOS DO AMOR NO TRIBUNAL
Muito se fala e se espera de viver boas relações, como se, uma vez consolidadas, não precisassem de investimento e manutenção, e ainda assim não ter garantia de sucesso.
E viveram felizes para sempre! Só essa frase já dá “pano pra manga”. A experiência em perícia psicológica demonstra que uma das principais queixas observadas nos estudos psicológicos nos processos de separação é a falta de diálogo e entendimento acerca do que é e do que se espera individualmente de uma relação. Normalmente, esses assuntos não são conversados pelo casal, são demandas e expectativas ao outro que surgem em meio às discussões como exigências sem nunca terem sido ditas.
No divórcio, os envolvidos desejam recuperar seus sentimentos como moedas investidas e corrigidas com juros numa relação que ruiu.
Talvez se pudermos pensar que um “para sempre” exige um dia de cada vez, e que relacionamento não é algo estagnado, fique mais palatável compreender por que o fim de um casal pode ser tão dolorido. E vamos mais adiante: por que os restos do amor vão parar no Tribunal de Justiça e não em um consultório psicológico, que seria o lugar mais adequado para discutir os fantasmas da relação, as dificuldades e restos do casal, a reorganização de uma identidade e as questões familiares?
Seria importante que a Vara de Família pudesse ser utilizada para homologar os acordos já elaborados psiquicamente e outrora estabelecidos em termos da lei, entre sujeitos emocionalmente conscientes e responsáveis, todavia não funciona assim, porque estamos falando de seres humanos com sentimentos e emoções. Essa noção de que a soma de dois mais dois em Psicanálise pode dar qualquer resultado é a grande ajuda que o corpo de psicólogos e psicanalistas oferece aos magistrados. Que é a noção do conflito psíquico.
Muitas vezes é de fato necessário um processo judicial, mas em outras não. Distinguir uma necessidade da outra é um trabalho delicado que vai exigir habilidade em lidar com perdas, sensibilidade e maturidade. Sabemos que, em muitos casos, somente com a intervenção jurídica será possível um divórcio em termos da lei. Digo em termos da lei porque é muito comum observar sujeitos que se divorciam no papel, mas continuam vinculados psiquicamente, demonstrando que a separação emocional ainda não ocorreu e que pode não ocorrer se não existir um acompanhamento psicológico.
Quando se trata de uma relação que se rompeu, e pensar o que será feito com os restos do amor. É comum notar nas perícias psicológicas dos processos judiciais a transformação do amor em ódio, que passa a governar a vida de muitos sujeitos, fazendo com que a elaboração do luto seja difícil de ocorrer. Se antes eram vinculados/ligados pelo amor, agora passaram a se vincular através do ódio, tornando complicada a separação. Misturado a isso, tem a relação com os filhos, que embolados nessa situação dos pais se deparam com uma quebra de continuidade na preservação e apoio no desenvolvimento emocional.
Não tem mágica, falar em separação e viver a separação são formas de deparar-se com a travessia do sofrimento, da angústia, do medo, da solidão, da ansiedade e muitos outros sentimentos que ficam mais aflorados. Esses sentimentos precisarão ser encarados um a um na elaboração do luto. E nesse ponto que se observa que o Judiciário, que não é uma instituição de saúde mental, não é o melhor lugar para tratar desses assuntos. Entretanto, esses quesitos surgem no Tribunal de Justiça misturados às disputas judiciais justamente porque foi o único lugar que conseguiram para falar a respeito dessas dores – ainda que mescladas às questões jurídicas. Separar essas demandas e observar o lugar de cada um na trama psicológica daquela composição familiar serão atribuições do perito psicólogo.
Diante da possibilidade de separação do casal observa-se que são arremessados no Tribunal de Justiça as queixas e os ressentimentos acerca de um projeto ou de uma idealização fracassada. Ora, idealizações são sempre um convite ao fracasso.
É naturalmente compreensível que o magistrado seja convidado a ocupar um lugar de pai organizador na função de devolução ao casal de determinado equilíbrio, que por qualquer motivo deixou de existir. Esse não é exatamente o lugar do magistrado, mas de algum modo é nele que é depositado esse papel subjetivo.
E fica ainda mais complexo quando dessa relação existem filhos. Nota-se que o grau de dificuldade na elaboração de todo esse contexto é maior. Justamente porque aquele casal conjugal terá que passar por uma nova reorganização, criando se tão somente um casal parental, e, se tudo der certo, um casal parental cordial em benefício da prole.
É observado com grande frequência o entrave na comunicação e na qualidade desta entre o antigo casal. Ambos se perdem em meio às brigas, confundem questões relacionadas à situação econômica com questões acerca dos filhos, se maltratam muitas vezes com agressões verbais e físicas.
Nas perícias psicológicas são notórias a necessidade que os envolvidos têm de estarem certos a respeito de suas posições e a pouca abertura para escutar a versão do outro. Não há dúvida de que ao falarmos em separação haverá perdas econômicas e emocionais, renúncias e ganhos.
Ao se deparar com a separação estamos diante de um novo cenário com aspectos positivos e negativos que deverão ser avaliados com cautela, maturidade e preservação emocional dos filhos dentro do lugar que compete a eles, e não misturados aos pais. E de uma manutenção segura dos vínculos parentais que as crianças precisam para seu desenvolvimento emocional.
As dificuldades existem, mas com calma, disposição e orientação adequada e profissional é possível administrá-las e viver feliz.