A ILUSÃO DA MÃO DE BORRACHA
Considerada um marco na história das neurociências, a experiência que “engana” o cérebro demonstrou pela primeira vez que é possível romper a barreira entre a consciência que temos de nós mesmos e objetos que nos circundam.
Onde estão os seus pés? A pergunta pode parecer absurda, mas, se você está lendo este artigo, é provável que não os tenha exatamente diante dos olhos. Mesmo assim, é bem provável que saiba exatamente onde eles estão. Pode “sentir” a sua posição, perceber sua postura: essa habilidade, a propriocepção, ou percepção de si, é uma das capacidades menos evidentes, porém mais surpreendentes do nosso sistema nervoso. Na realidade, reconhecer as partes do corpo como “próprias” é resultado de um sistema complexo que integra informações visuais, proprioceptivas (os impulsos provenientes de fibras nervosas destinadas exatamente a essa tarefa) e sensitivas (por exemplo, a pressão do sapato sobre o seu pé).
Até mais ou menos 20 anos atrás, os neurologistas estavam certos de que todos esses elementos eram necessários para construir a consciência do próprio corpo e, sobretudo, de que não era possível enganar o sistema. No entanto, depois veio a mão de borracha e tudo mudou.
O ano é 1998, quando saiu na Nature, uma das mais prestigiadas revistas de ciência, a descrição de um experimento aparentemente simples, para o qual uma pequena página de texto é suficiente. Os autores são dois neurocientistas do Departamento de Psiquiatria e Psicologia da Carnegie Mellon, a famosa Universidade de Pittsburgh, na Pensilvânia. Chamam-se Matthew Botvinick e Jonathan Cohen e eram, na época, muito jovens, mas tiveram uma grande ideia: utilizar a capacidade do nosso cérebro de deixar-se enganar para entender um pouco mais a fundo como isso funciona. “No passado, as ilusões foram muito usadas em psicologia, por isso podem revelar coisas sobre os processos perceptivos”, escrevem no trabalho. “Com base nisso, desenvolvemos uma ilusão na qual a sensação tátil é destinada a uma mão que não pertence ao sujeito, uma mão estranha. O efeito gerado revela que existe uma interação em três vias entre visão, propriocepção e tato e nos dá, portanto, uma demonstração das bases da identificação do próprio corpo.”
Botvinick e Cohen selecionaram inicialmente dez voluntários que foram colocados sentados de frente para uma mesa. O braço esquerdo da pessoa era escondido por uma tela, enquanto à sua frente era colocado um braço de borracha de dimensões semelhantes às do braço real. Os experimentadores pediram aos participantes que mantivessem os olhos fixos no braço de borracha, enquanto, com dois pequenos pincéis, em perfeita sincronia, tocavam simultaneamente o braço real e o falso. Importante: as pessoas sentiram o pincel sobre a pele do braço que não viam, mas viam o pincel que se movia, com o mesmo ritmo, no braço de borracha.
Após dez minutos de estimulação, foi pedido aos indivíduos submetidos ao experimento que respondessem a um questionário sobre a sua experiência e sobre as sensações que experimentaram. O resultado foi surpreendente: quase todos os voluntários afirmaram ter tido a percepção da ilusão do braço de borracha como uma continuidade de seu corpo. Um número de indivíduos estatisticamente não significativo na época – mas sucessivamente ampliado com outros experimentos idênticos ou similares – afirmou também ter provado sensações estranhas, como uma perda do sentido de posse do próprio braço real e até mesmo a percepção de que a própria mão estivesse ficando “emborrachada”.
“A nossa hipótese é que essa ilusão seja fruto de uma conciliação operada pelo nosso cérebro entre estímulos aparentemente discordantes, nos quais estímulos visuais e táteis sejam integrados à custa da propriocepção verdadeira e própria, levando a uma distorção do senso da posição do corpo”, escreveram ainda Botvinick e Cohen.
Para confirmar essa interpretação, os dois pesquisadores realizaram então um segundo experimento: prolongaram os tempos da estimulação e pediram aos participantes que fechassem os olhos e tocassem, com a mão direita, a própria mão esquerda. Também nesse caso, os indivíduos agarraram a mão de borracha ou, de qualquer forma, erraram ao tentar alcançar a própria mão, ficando no meio do caminho entre a verdadeira e a falsa. Tratou-se, nesse ponto, de avaliar quão precisa deveria ser a estimulação para produzir efeito: um grupo de controle foi “pincelado” de modo assíncrono, e a ilusão apareceu somente em 7% dos casos, contra os 42% dos indivíduos cujos estímulos na mão verdadeira e na falsa foram sincronizados.
JOGO DE ESPELHOS
O trabalho de Botvinick e Cohen não nasceu do nada: poucos anos antes, o neurocientista de origem indiana, estabelecido nos Estados Unidos, Vilayanur Ramachandran havia publicado um estudo no qual tinha conseguido gerar, num grupo de pessoas amputadas de um membro, a sensação de que o braço havia reaparecido, projetando, graças a um simples jogo de espelhos, o braço íntegro no lugar onde deveria estar aquele que faltava. E muitos dos seus pacientes diziam ter tido a sensação de serem tocados no “braço fantasma” quando o braço existente era tocado.
Também havia alguns estudos, conduzidos em macacos, que demonstravam a existência, no nível do córtex pré- motor, de áreas em condições de integrar estímulos táteis e visuais em relação ao mapa corporal.
O efeito dessa integração é tão intenso que, no experimento dos dois psicólogos da Carnegie Mellon, oito em cada dez voluntários, ainda antes de serem submetidos ao questionário, relataram que olharam para o braço de borracha pensando “é o meu braço”, mesmo sabendo não ser.
A ilusão da mão de borracha, ou rubber hand illusion, representa a primeira demonstração neurocientífica, feita com um experimento claro, de que é possível romper a barreira entre o eu e os objetos que nos circundam. E se, no início, despertou o interesse principalmente dos neurofisiologistas, porque parecia demonstrar uma prevalência do sentido da visão sobre todos os outros na construção da identidade corporal, com o tempo tornouse um paradigma importante para estudar a consciência do eu, os seus limites e, sobretudo, os mecanismos pelos quais ela se constrói.
FUGINDO DE ERROS
O mesmo protocolo da mão de borracha foi empregado para examinar grupos de pacientes com percepções distorcidas do próprio corpo por causa de patologias como a esquizofrenia ou a anorexia. Os estudos nessas pessoas demonstraram que existe provavelmente um “defeito” de integração multissensorial que as torna mais suscetíveis a erros de avaliação. Foi assim que a rubber hand illusion tornou-se um instrumento para medir a maleabilidade da representação corporal: quanto mais instável é a representação do eu no cérebro, mais fácil é para a doença jogar com todos os mecanismos de correções interiores, em parte conscientes e em parte inconscientes, que nos permitem não incorrer em erros o tempo todo.
Também o conceito de maleabilidade da imagem do eu ainda é objeto de discussão, porque nem todos os estudos convergem entre si – como é compreensível se pensarmos que se trata de fenômenos estudados há menos de duas décadas – mas, para o momento, se sustenta e parece ser o mais plausível.
Existem, de fato, pesquisas que completaram o quadro descrito pela primeira vez em 1998. Por exemplo, G. Lorimer Mosely e Charles Spencer, da Universidade de Oxford, demonstraram em 2008 que o braço verdadeiro de quem vive a ilusão se torna meio grau mais frio durante o experimento: uma resposta fisiológica à sua “alienação” do esquema corporal a favor do seu substituto artificial.
Outros experimentos demonstraram quão real é a integração submetendo a mão de borracha a uma série de manifestações dolorosas: alguns a tiveram apunhalada, outros “luxada” ao dobrá-la de forma não natural. Em todos os casos, o indivíduo submetido ao experimento sentiu-se mal, começou a suar e manifestou todos os sintomas do medo.
No entanto, os limites entre o eu e os outros podem ser ainda mais instáveis do que acreditamos: em 2010, Maria Paola Paladino e seus colaboradores da Universidade de Trento, inspirados pela rubber hand illusion, desenvolveram um experimento semelhante com rostos. Pediram aos voluntários que olhassem para um vídeo no qual estava enquadrado o rosto de um desconhecido que era tocado com um pincel, no mesmo ponto e na mesma frequência com que eles mesmos eram tocados, na realidade. Os voluntários submetidos ao teste declararam que experimentaram um senso crescente de familiaridade com relação ao rosto do vídeo: “Foi ficando cada vez mais parecido comigo mesma”, declarou uma das voluntárias.
COISAS DE LOUCO
Henrik Ehrosson, do Karolinska lnstitut, de Estocolmo, foi além e, partindo sempre do mesmo paradigma experimental, usou a realidade virtual para criar diversas ilusões relativas à percepção de si mesmo. “Podemos fazer coisas malucas”, declarou, de forma divertida. E realmente conseguiu integrar no esquema corporal das pessoas, graças ao seu vídeo em 3D, todo tipo de objeto, de bastões a espadas. Conseguiu fazer homens grandes e gordos acreditarem ser pequenos como crianças, ou então que tinham um corpo feminino ou até possuir um terceiro braço, invisível. “De uma simples ilusão perceptiva nasceu um filão inteiro de pesquisa que nos permitiu compreender como construímos a nossa identidade corporal, que é uma parte importante na consciência do eu”, explica Patrick Haggard, neurocientista do Institute for Cognitive Neuroscience de Londres, que contribuiu com muitos estudos para o desenvolvimento desse campo de pesquisa. “Agora que compreendemos como funciona a integração multissensorial e, principalmente, agora que temos também uma hipótese sólida sobre as estruturas anatômicas que, no cérebro, mantêm ativo esse sistema, podemos nos concentrar sobre os detalhes finos e avançar além, para elaborar hipóteses sobre as conexões entre o corpo e a mente. O certo é que compreendemos que a consciência não é um fenômeno exclusivamente central, ligado ao encéfalo e ao córtex, mas que depende também do corpo e daquilo que vem da periferia.”
O QUE É A INTEGRAÇÃO MULTISSENSORIAL?
O mecanismo de integração multimodal, ou sensorial, é usado pelo nosso cérebro para juntar as informações sobre um mesmo objeto que provê de diferentes canais, como a visão, a audição, o tato, o movimento, o paladar, e assim por diante. Para representar de maneira coerente a natureza de um objeto, o cérebro junta aquilo que vem da periferia de modo atento e preciso. Basta imaginar o que acontece quando colocamos a boca uma garfada de comida: vemos o que temos no prato e depois, quando introduzimos o bocado, temo condições de distinguir a diferente consistência e o sabor da comida daquele garfo e de seu eventual sabor metálico. A visão parece ter uma predominância sobre os outros sentidos, ainda que sobre esse ponto a discussão ainda permaneça aberta.
É exatamente a complexidade a integração multimodal que leva, às vezes, a “erro” na sobreposição das informações que estão na origem de diversas curiosas ilusões corpóreas, mas também e sintomas como as alucinações nas psicoses. Essa hipótese foi confirmada também por um modelo computacional (ou seja, uma simulação no computador do fenômeno completo) que demonstrou como o cérebro humano usa a inferência bayesiana, um método estatístico, para calcular a probabilidade de um evento. Nesse caso, para avaliar a possibilidade de que aquilo que estamos vendo e aquilo que estamos experimentando se refiram ao mesmo objeto.