ESPAÇO URBANO, ESPAÇO PSÍQUICO
Há um caráter de idealização e criação imaginária na relação que mantemos com as cidades que amamos e habitamos; os lugares assumem o papel de extensões do próprio eu, investimos afetivamente neles a ponto de nos tornarmos parte deles e eles, parte de nossa subjetividade.
Recentemente, conversando com um motorista de táxi que não parava de reclamar dos problemas de Recife, o surpreendi com uma pergunta: “Diante de tanta dificuldade, o senhor gosta de morar aqui?”. Ele me respondeu: “Claro, não há cidade melhor para viver”. De novo indaguei: “Por que gostamos de morar em lugares que maltratam tanto nossa dignidade?”. Ele apenas comentou pensativo: “É uma boa pergunta”.
Quando falamos de nossas cidades, falamos de nós mesmos. Usamos a linguagem do afeto, que nos faz negar parte da experiência, para sustentar uma posição subjetiva que nos favorece; sem tal negação seríamos obrigados a reconhecer nossas precariedades. Isso fica bem claro quando indagamos a respeito do ufanismo de certas pessoas quando tratam suas cidades como extensões do próprio eu.
De modo geral, o espaço que ocupamos e no qual transitamos nos proporciona a sensação de pertencimento e a circulação. Fazer parte de um lugar é adquirir a possibilidade de transitar e, consequentemente, de estender o nosso espaço vital. A cidade tem caráter transicional, na medida em que se situa entre o indivíduo e a sociedade, possibilitando o trânsito entre o público e o privado, o fora e o dentro.
Com base nessa dinâmica interior/exterior, nos inserimos em vários lugares, passamos a fazer parte deles, assim como também os internalizamos. Essa vinculação se dá por meio de um trabalho psíquico e depende do tipo de investimento que fazemos em relação ao local que habitamos, às cidades que amamos ou apenas admiramos. Investir afetivamente em um lugar depende das identificações – significa que a cidade nos representa, configurando-se como uma extensão de nós, se afina com nossas singularidades e demandas, embora nem sempre essa sintonia se revele concretamente. Há um aspecto de idealização, de criação imaginária, na relação que mantemos com nossas cidades.
A MÃE-AMBIENTE
Em uma acepção mais geral, o ambiente nos envolve e nos transmite as bases de uma dada cultura, assim como a mãe, primariamente, nos oferece, por meio da linguagem e de sua postura subjetiva, os valores primários do lar e da família. Essas bases permitem a ampliação do mundo por meio da constituição psíquica e dos processos de socialização em curso desde nosso nascimento.
Na concepção do psicanalista inglês Donald Winnicott, o espaço simbólico é representado pela mãe (ou substituta) que acolhe o bebê quando nasce, que deflagra seu processo de amadurecimento. Desde essa origem o bebê desenvolve condições de autonomia para construir e transitar por diferentes lugares ao longo da vida. O modo como a criança é inserida nesse ambiente primário marca suas relações com o outro singular, mas também com uma coletividade que se organiza e se sustenta no espaço mais amplo da cidade. Nos primeiros momentos de vida do bebê, ele e a mãe-ambiente estão fusionados, mas, paradoxalmente, iniciam também, nos primeiros meses, o processo de separação, que vai marcar as singularidades de cada membro da díade.
O ambiente “recepciona” o bebê por meio das trocas sensoriais, permitindo a fusão com a mãe. Paulatinamente, o mundo do bebê se amplia e ele consegue se diferenciar. É, portanto, a experiência de estar colado à mãe que enseja outra, fundamental, que é a progressiva separação, indicando que o processo de amadurecimento está em curso. Se a criança é bem recebida e reconhecida por um “ambiente mãe”, essa experiência vai possibilitar a criação de novos laços, base para a criação de novos ambientes, nos quais a criança se diferencia a partir do olhar do outro e dá continuidade a um processo contínuo de busca da autonomia no qual ela cria o próprio lugar no mundo.
Na concepção de Winnicott, o ambiente é, antes de tudo, a mãe. Ela é não só uma metáfora como o ambiente em si, na medida em que ampara, sustenta e acolhe o bebê, levando-o a reconhecer progressivamente um espaço que vai além dela e que se torna a matriz de todos os demais lugares que ocupará na vida. Poderíamos supor que a cidade representa, na vida adulta, parte desse espaço de acolhimento, pertencimento e reconhecimento.
Para Winnicott, a constituição do psiquismo e seu amadurecimento dependem de uma provisão ambiental na qual estão contidos os investimentos de afeto, base para que o sujeito siga criando uma espacialização da vida. Nesse sentido é que sujeito-espaço-cultura fazem parte de um mesmo encaixe que é ressignificado nas diferentes etapas da vida. Assim, à medida que a criança vai se separando da mãe, o ambiente vai sendo ampliado e ocupado por outros personagens significativos, como pai, irmãos, família etc. Prosseguirá, desse modo, como esteio de outros laços de afeto que não se restringem a uma dimensão singular, mas se estende ao coletivo, dimensionando simultaneamente um voltar-se para si e para o outro, que evidencia, de certo modo, a função ambiente exercida pela mãe.
Nos primeiros tempos de vida, é fundamental que o ambiente seja apresentado à criança de forma segura, de modo que no futuro o externo possa parecer confiável. A partir dessa condição, o sujeito poderá enfrentar os conflitos e paradoxos da vida relacional. A confiança no ambiente se constitui com base em algumas condições importantes: além do acolhimento, é preciso destacar a forma como o cuidado é oferecido e a constância da presença da mãe. A partir dessa experiência seguimos enfrentando nossas vulnerabilidades com mais segurança, em direção a certa autonomia em relação ao lugar que habitamos. A confiabilidade inicial enseja outra experiência importante, que é a circulação em um lugar que Winnicott denominou de espaço potencial. Aí, sim, trata-se de uma metáfora que expressa o movimento da criança que transita entre o mundo interno e o mundo externo, em um processo que pode lhe assegurar um funcionamento entre esses dois universos. Por meio da concepção de “espaço potencial”, é possível verificar como a criança, desde muito cedo, é levada a se movimentar em um lugar intermediário entre seu mundo interno e externo, entre ela e sua mãe, de modo a criar uma vida na qual os opostos não se excluem, mas são tensionados, incitando-a a desenvolver um espaço psíquico entre esses dois elementos e ter condições de viver criativamente.
Entendemos que esse espaço intermediário nos permite compreender a relação que o indivíduo desenvolve com a sociedade e, de modo mais específico, com a casa que habita e com sua cidade. Dessa forma, o indivíduo e o espaço vivido se refletem mutuamente, e nele há compartilhamentos tanto com uma coletividade mais ampla como com distintos grupos.
A confiança na mãe-ambiente pode ser assim considerada a matriz para a confiança nos demais ambientes a serem conquistados e é a base para um viver criativo. De acordo com Winnicott, a criatividade está relacionada às primeiras experiências do bebê, no momento em que ele acredita que criou tudo que está ao seu alcance. Mais adiante ele passa a dimensionar melhor a si mesmo e o outro, podendo então assumir os gestos compartilhados com o outro, mas originado em si mesmo. Isso significa que adquirimos por meio da criatividade os meios para criar nossa própria existência e nos vincular a pessoas e lugares, que, embora tenham realidades próprias, podem ser subjetivamente percebidos.
Tendo, assim, experimentado esse espaço, a criança terá condições de prosseguir em direção a uma autonomia que implica a aproximação do outro, sem perder a si mesma, de conceber relações intersubjetivas e coletivas que lhe permitem ampliar seu universo relacional e constituir uma ética da aproximação como condição indispensável à vida nas cidades.
PORTAS PARA O MUNDO
Os vínculos estão diretamente associados ao pertencer a um lugar, à criação de um hábitat. Constituímos laços primários quando somos acolhidos e há o reconhecimento como possibilidade de habitar determinado lugar. Assim, nos inserimos simbolicamente numa cadeia geracional a partir da qual respondemos às diferentes demandas de relação com indivíduos, grupos, coletividades etc. Essa inserção tem caráter dinâmico e muda permanentemente. Talvez seja isso que precisamos para nos reinventar a nós mesmos e, ao mesmo tempo, nosso hábitat, nossas cidades.
Assim como o espaço entre o corpo materno e o da criança é vivido como espaço transicional, outros espaços adquirem essa qualidade e nos permitem recriar sempre os diversos tipos de espaços existentes no mundo. É essa flexibilidade que abre a porta de entrada para o espaço pessoal e, ao mesmo tempo, nos conduz às experiências que temos com cidades e países. Afinal, percorrer os territórios do mundo é desconstruí-los- e apropriar-se deles.
“DETALHES” ESQUECIDOS
Há um caráter narcísico na maneira como nos situamos no próprio hábitat. Se ele é parte de nós, evidentemente, seu reflexo aparece em nossas ações, em nossa estética, na forma como transitamos, no prazer que sentimos em desbravá-lo e no tipo de interpretação que fazemos de sua geografia e de suas expressões culturais. Nesse sentido, tanto o sujeito quanto o espaço se refazem no dia a dia, à medida que a cidade se transforma e surgem novas construções, como equipamentos culturais, educacionais e de saúde; ou a destruição se impõe não só nos edifícios, mas sob a forma de diferentes tipos de violência.
Se a relação que mantemos com a cidade é narcísica, é preciso considerar os conflitos que advêm daí. Não raro, parece haver certa irracionalidade nas avaliações que fazemos dos lugares onde vivemos. Há, com frequência, falta de dissintonia entre o que dizemos, a forma como expressamos o viver na cidade, e o que ela concretamente nos oferece. Se cada um pensar nos desconfortos cotidianos causados pela precariedade dos espaços e equipamentos públicos, dos maus-tratos das ruas e vias públicas das cidades brasileiras, certamente elas seriam muito mal avaliadas. Entretanto, quando as descrevemos, frequentemente nos esquecemos de “detalhes”, como o trânsito infernal que nos faz perder boa parte de nossa vida, ameaça de violência em cada esquina, precariedade nos sistemas de saúde, educação, escassez de opções de lazer e de ofertas culturais em grande parte das grandes cidades brasileiras.
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