O ESTRANHO CASO DO GORILA INVISÍVEL
Estudo realizado há 19 anos aborda cegueira por desatenção ou inatencional, que nos impede de reconhecer mudanças no ambiente.
Verão de 1999 nos Estados Unidos. Numa sala de aula, os professores Christopher F. Chabris, da Universidade Harvard, e Daniel J. Simons, da Universidade de Illinois, estão prestes a fazer uma pequena experiência muito curiosa com seus alunos do curso de psicologia.
“Por favor, assistam ao vídeo que vou projetar agora”, diz Chabris. “Vocês vão ver dois times jogando basquete, um de camisa branca e outro de camisa preta. Por favor, concentrem-se nos jogadores de camisa branca e contem os passes. Os estudantes acompanham o filme: não é fácil fixar-se na bola que quica de um lado para o outro da tela, mas ao fim da projeção a maior parte dos jovens acredita ter conseguido contar todos os passes.
“O que vocês acharam do gorila?”, pergunta Chabris em seguida. A plateia olha para ele com cara de espanto. Os dois professores de psicologia conduziam um estudo sobre um fenômeno já conhecido em neuropsicologia, mas até então nunca investigado a fundo: a cegueira por desatenção, chamada também de inatencional ou para mudanças.
Revendo o filme sem a missão de contar os passes, os estudantes percebem, estupefatos, que no meio dos jogadores, mais ou menos na metade da gravação, passa um indivíduo fantasiado de gorila, que para no meio da quadra onde acontece a partida, bate no peito e continua andando, saindo da cena.
Com diversas variantes, o experimento do gorila, um dos mais notórios dos últimos anos na área da psicologia, (o vídeo está disponível em youtu.be/vjG698U2Mvo). De acordo com os mesmos pesquisadores, vários estudos similares com pessoas de todas as idades mostraram que cerca da metade daqueles que assistem às cenas de fato não notam a presença do animal, embora se trate de uma presença nada marginal. Como é isso possível?
ANTES DA PERCEPÇÃO
O fenômeno da cegueira por desatenção, que está por trás dos resultados obtidos com o experimento do gorila, consiste na incapacidade de perceber um estímulo inesperado presente no campo de visão quando estamos ocupados com outras tarefas que requerem maior concentração. Uma variante da cegueira inatencional é o túnel cognitivo, que se observa quando uma pessoa está muito focada em uma ação manual ou em seus próprios pensamentos e, assim, não presta atenção suficiente no ambiente à sua volta. Segundo alguns neurocientistas, esses direcionamentos da capacidade de apreensão são responsáveis por incidentes graves, incluindo os casos de abandono de bebês em carros devido a sobrecargas cognitivas que não permitem ao cérebro processar todas as informações em determinado intervalo.
Antes de ser adotado por Simons e Chabris, o termo “cegueira por desatenção” foi usado pelos psicólogos Arien Mack e Irvin Rock, pesquisadores da Universidade da Califórnia, em um livro publicado em 1998. O experimento do gorila também é uma releitura, tecnologicamente mais avançada, de um experimento conduzido em 1975 pelo um psicólogo cognitivista Ulric Neisser. Ele havia proposto um modelo cognitivo, o Human lnformation Processing, ou HIP, que considerava a mente como um processador de informações e o ser humano, como um sujeito ativo na seleção daquilo que vem passivamente do ambiente.
Segundo esse modelo, sucessivamente elaborado e aprofundado por outros cientistas, os estímulos externos capturam a atenção e atingem o nível de conhecimento ou percepção (do inglês, awareness) em dois estados de elaboração. No primeiro, a atenção é capturada, por exemplo, porque o estimulo externo é peculiar ou inesperado; já a awareness é alcançada quando o estímulo chega à consciência do observador. Tomando por base esse modelo, a cegueira inatencional acontece quando algo interfere na passagem de um nível ao outro.
Isso pode ocorrer porque existe no ambiente alguma coisa que atrai a atenção na direção do estimulo, mas não é suficiente para trazê-lo ao nível consciente, ou então porque falta o esforço sustentado necessário para que uma percepção chegue ao âmbito do conhecimento. Há casos em que uma memória implícita, uma recordação de situações semelhantes, pode preceder a percepção consciente e interferir no estímulo real (é o que acontece, por exemplo, quando realizamos alguns gestos habituais, mesmo se no ambiente existe algo que deveria nos induzir a um comportamento diferente). Ou seja: um estimulo inesperado pode não ser percebido, assim como ocorre no experimento do gorila.
BASES NEUROFISIOLÓGICAS
Há muito tempo psicólogos se perguntam se as nossas intenções, necessidades e expectativas influenciam o que percebemos. O tema é importante não apenas para entender a maneira como exploramos o mundo interagimos com o ambiente, mas também para compreender, por exemplo, o quanto podemos confiar na nossa memória, especialmente quando se trata de um evento que presenciamos.
Em 1890, o filósofo e psicólogo William James escreveu no seu Princípios de psicologia que a capacidade da nossa consciência é limitada porque não podemos prestar atenção em tudo aquilo que acontece ao nosso redor. O próprio James já havia distinguido, muito antes de ser possível estudar as áreas cerebrais envolvidas nos processos atencionais, uma atenção “autogerada” (por exemplo, no caso de odores penetrantes ou de estímulos que sobres saem ao fundo, como uma mulher vestida de vermelho em meio a uma multidão de homens de preto) e uma atenção induzida, como aquela que alcançamos nos concentrando voluntariamente em determinado estímulo. No primeiro caso, trata-se de um fenômeno que nasce “de baixo”, porque o estímulo é tão saliente que sobressai aos outros. No segundo, o processo e induzido “do alto” e estão envolvidas regiões cerebrais mais específicas e complexas. Em 1985, um grupo de pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde Mental, dirigido por Robert Desimone, nos Estados Unidos, descobriu que no córtex visual de macacos, sobretudo na área V4, destinada à percepção da cor, alguns neurônios são mais ativos quando o animal fixa o olhar sobre o objeto colorido, mas são muito menos ativos quando o animal nota o objeto, mas não se concentra nele. Com humanos o funcionamento parece ser bastante similar. Consequentemente, a atenção que colocamos em um estímulo influencia a maneira como o percebemos, inclusive em relação a suas características básicas, como forma ou cor.
ASSEMBLEIAS DE NEURÔNIOS
Outro problema que a neurociência resolveu, e que explica em parte o fenômeno da cegueira inatencional, diz respeito à percepção do objeto como um todo. Cor, forma e tamanho de um objeto são apreendidos em áreas diferentes do córtex: para que o reconhecimento ocorra em nível consciente, é necessário que todas essas informações sejam integradas. Como acontece esse processo?
Uma possível explicação deriva dos estudos de Christoph van der Maisburg, da Universidade do Ruhr, na Alemanha, que formulou a hipótese da existência de uma atividade sincronizada entre os neurônios que percebem o mesmo estímulo: essencialmente, as células formam “assembleias de neurônios, cuja importância foi demonstrada sucessivamente por outros experimentos. O ganhador do Nobel Francis Cricke e o neurocientista Christof Koch afirmaram, no início dos anos 90, que somente os sinais que provêm de assembleias de neurônios são suficientemente potentes para chegar até a consciência; todos os outros são percebidos apenas de modo fragmentado.
A expectativa também ajuda o surgimento da awareness, como demonstraram alguns estudos de estímulos acústicos. Quando uma pessoa se concentra nos sons em determinada faixa de altura, os neurônios predispostos a perceber sons daquela altura são mais ativos do que os outros. É graças a esse mecanismo que conseguimos, por exemplo, acompanhar uma conversa num ambiente muito barulhento: aquilo que esperamos ouvir influencia o que realmente ouvimos e exclui em parte os outros sons.
O fenômeno do gorila invisível se manifesta, portanto, em todas as outras modalidades de percepção, da sonora à tátil. Existe também um fenômeno, chamado “piscar atencional”, que faz com que um indivíduo que realiza duas tarefas perceptivas (por exemplo, deve identificar as bolinhas verdes e os X pretos que aparecem aleatoriamente numa tela em meio a outras letras) tenderá a não perceber o segundo estímulo-alvo se ele aparecer muito precocemente. Por exemplo, se os X pretos aparecem entre 200 e 300 milésimos de segundo depois da bolinha verde, não são de fato percebidos completamente, mesmo que, obviamente, tenham sido vistos. Esse hiato de atenção é muito importante em situações de sobrecarga no ambiente e “apaga” de fato uma parte da realidade percebida.
A COR DA EMOÇÃO
Ainda que a consciência requeira atividade de numerosas regiões cerebrais, são poucas as responsáveis pela cegueira inatencional. Segundo alguns estudos, trata-se de uma rede que compreende parte do córtex frontal e das regiões parietais, além da amígdala. Esta última estrutura, que é como uma pequena central das emoções, fornece uma base anatômica para a influência que o estado emotivo exerce sobre as percepções. É provável que tanto o córtex frontal quanto a amígdala possam facilitar ou interferir nos fenômenos de sincronização dos neurônios.
Se um estímulo corresponde àquilo que esperamos ver, os sinais na entrada são reforçados. E vice-versa, se o estímulo é inesperado no meio de estímulos esperados, ele é suspenso, exatamente como acontece com o gorila. A sincronização neuronal é, portanto, um instrumento essencial para pôr em ordem os milhares de informações às quais o cérebro é exposto e que, se chegassem todas à consciência, provocariam rapidamente um colapso. Ao mesmo tempo, o experimento do gorila e, sobretudo, as sucessivas análises dos mecanismos neurofisiológicos na base do fenômeno, demonstram que o cérebro é tudo menos passivo nas relações com o ambiente: ele seleciona, escolhe e reforça apenas aquilo que quer.
EU NÃO VI!
Numa noite de janeiro de 1995, a central de polícia de Boston recebeu uma chamada de rádio: quatro rapazes negros haviam atirado num oficial de polícia e estavam fugindo de carro. Entre os perseguidores estava Michael Cox, um policial negro à paisana, especializado em seguir membros das gangues.
Na perseguição, Cox foi confundido com um dos fugitivos, parado por quatro colegas e espancado. Durante a agressão, outro policial, Kenneth Conte, passou a metros enquanto tentava alcançar outro suspeito. Ele não só não parou para prestar socorro ao colega como afirmou várias vezes não haver sequer notado o espancamento, mesmo sendo o único a admitir que se encontrava na vizinhança. Durante a ação, os colegas perceberam o terrível engano, mas, amedrontados, deixaram Cox caído no chão, ferido, com lesões graves que levaram seis meses para serem curadas.
Foi um escândalo: Conley foi acusado de falso testemunho por não querer (ou não poder) indicar os responsáveis. Levado aos tribunais, defendeu-se e continuou a afirmar que não tinha visto nada. Como seria possível não se dar conta de um espancamento tendo passado a poucos metros da vítima? O caso, que despertou imediatamente a curiosidade de Chabris e Simons, originou o vídeo do gorila e uma série de experimentos sucessivos, um dos quais, publicado em 2011 no periódico científico i-Perception, fornece provas que dão suporte à versão de Conley. Durante uma simulação dos acontecimentos (uma corrida noturna, com a tarefa de atenção sustentada de fixar e seguir um sujeito em fuga, e a encenação de um espancamento à margem da rua), apenas 35% dos participantes recrutados para o estudo notaram a vítima e os agressores. A mesma situação reproduzida à luz do dia induz a um fenômeno de cegueira inatencional na metade das pessoas. Diante disso, Kenny Conley, condenado em primeiro grau por falso testemunho, venceu a apelação contra o estado de Massachusetts.
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