“SINTO TUDO, MAS NÃO TENHO NADA…”
O sofrimento físico e mental marca o fenômeno psicossomático, convocando profissionais da saúde a considerar suas implicações, o papel do paciente no processo de adoecimento e eventuais desdobramentos. A própria clínica abre e amplia essa discussão.
Sofro com intestino preso e com essas dores há mais de 20 anos. É como se tivesse algo se movimentando dentro de mim, querendo sair, mas não sai. Minha barriga fica estufada, cheia de gases… Não aguento mais. Isso está acabando comigo, afeta toda a minha vida!” Essas palavras, em tom de desabafo, são ditas por Maura, no desenrolar de sua primeira consulta comigo. Visivelmente desgastada, a advogada elegante, de 41 anos, confessa estar cansada de fazer exames, procurar inúmeros especialistas, seguir todas as prescrições e continuar sofrendo e ouvindo as mesmas coisas: “Você não tem nada sério”; “A síndrome do intestino irritável (SII) é assim mesmo, de difícil tratamento”; “É apenas uma disfunção, nada mais que isso”. Por fim, ela me questiona: Terei que simplesmente aceitar e me conformar? Sinto tudo e não tenho nada? Como assim, doutora?”.
Casos como esse exemplificam os desafios cada vez mais frequentes com os quais deparamos na prática clínica diária. Diante desses questionamentos, o que responder? Como abordar o dilema da ambivalência do “sentir tudo e não ter nada”? Maura me fez pensar, especialmente nos possíveis significados de palavras como apenas, nada, tudo.
Ao afirmar que o paciente apresenta alterações funcionais, o médico se refere à exclusão de doença orgânica, após extensa investigação diagnóstica. Ao dizer “é apenas uma disfunção, “nada sério”, a referência é o campo biológico. Entretanto, a exclusão de lesões dos órgãos e sistemas orgânicos não deve implicar um reducionismo na concepção da desorganização somática – na verdade, psicossomática. Tampouco minimizar a complexidade da condição clínica de pacientes como Maura. Tais situações demandam a revisão de conceitos e perspectivas de abordagem clínica e terapêutica envolvidos no processo do adoecimento, com a inclusão da subjetividade, que ultrapassa as fronteiras do clássico modelo biomédico cartesiano (marcado pela dicotomia mente-corpo)
Sabe-se que a maior parte dos quadros disfuncionais não apresenta uma causa claramente definida. Múltiplos fatores estão envolvidos na fisiopatologia desses distúrbios, inclusive aspectos psicossociais. Nesse sentido, o desenvolvimento tecnológico e das pesquisas em neurociência permitiu avanços no campo da psiconeuroimunologia, com grande contribuição à compreensão das íntimas e reciprocas associações entre mente e corpo. As vertentes psicofisiológicas, ainda que fundamentadas em evidências biológicas, abrem caminho para uma interlocução entre profissionais da medicina, psicologia, psicanálise. Muitas vezes, é útil e precioso informar o paciente a respeito da plasticidade do cérebro, de suas conexões com órgãos e sistemas do corpo, sobre os registros conscientes e inconscientes da memória, com o intuito de proporcionar relações “demonstráveis” e, então, “aceitáveis”, entre cérebro e organismo, mente e corpo, psiquismo e soma, dor física e psíquica.
No caso da síndrome do intestino irritável, de fato, não se observa alteração metabólica ou estrutural da víscera. O papel do sistema nervoso central e autônomo é preponderante na função intestinal, através de importantes conexões que modulam as atividades motoras e sensoriais do intestino. Diante de alterações nesses sistemas reguladores, ocorrem as disfunções de motilidade, assim como aumento da percepção dos movimentos peristálticos. Por isso, os principais sintomas são dor, desconforto, distensão abdominal, podendo haver constipação, diarreia ou alternância entre ambos, em variados níveis de intensidade e comprometimento da saúde física e mental.
Considerando a situação de Maura, ela acordava de madrugada por causa da dor, sentia algo se movimentando dentro do abdome, sem possibilidade de evacuação, de alívio. Em sua peregrinação pelos consultórios médicos, a dor, “apenas” de caráter funcional, foi se tornando algo sem importância, sem remédio, sem solução, associado ao nada. Como lidar com a sensação de nulidade, coisa nenhuma, quando se sente “tudo”? É possível encontrar alivio e consolo nessa condição, mesmo com a exclusão de algo grave? Como pode haver ausência diante da presença insistente e perturbadora de sintomas que desorientam, desorganizam e assolam o corpo?
Outra paciente, Lídia, de 38 anos, de início se identificava como “um caso difícil e complicado de SII. Ela se mostrava apreensiva e com muito medo do diagnóstico. Pesquisou sobre o assunto e ficou apavorada diante da condição debilitante vivida por muitas pessoas com a síndrome. Lídia contou ter perdido o emprego por causa de sua dificuldade de concentração no trabalho, já que tinha fortes cólicas abdominais que precediam as idas frequentes ao banheiro. Seus sintomas não melhoravam com medicamentos e restrições dietéticas. “Sinto-me num beco sem salda, a caminho do caos. Eu sei que isso tudo tem a ver com meu emocional, sou muito nervosa, tudo que eu tenho é por causa da minha ansiedade. E, por fim, disse: “Sou a responsável por estar assim, toda estragada!”. Fiquei impactada e perguntei o porquê de uma afirmação tão contundente. Ela disse que sempre ouviu de todos à sua volta – parentes, colegas, médicos, psicólogos – que “isso é psicológico, emocional, psicossomático: isso é por causa do seu estresse, de sua ansiedade”. Eu me pergunto: isso o quê? Ou o que é isso? Percebo que saber disso não a ajudou a compreender o que isso significa.
O caso de Lídia aponta o surgimento de outro sintoma: se sentir responsável por estar “toda estragada” – a opressão da culpa, que adoece ainda mais o corpo e a alma. Esse é um aspecto que demanda atenção e cuidado. Lídia carregava um rótulo, o estigma de ser um caso difícil e complicado, uma pessoa problemática, doente, mas sem doença alguma, “apenas” com distúrbio funcional, “nada ” além disso. Há mais angústia e sofrimento a medida que as possibilidades de extirpação da causa e da tão esperada cura se tornam cada vez menos tangíveis.
Na verdade, muitas pessoas sofrem com a cronicidade de suas dores, seus desarranjos e disfunções e vivem a procura do porquê de seus transtornos. Quando o médico se dá conta do esgotamento de suas possibilidades terapêuticas e da provável influência de fatores psíquicos, é possível que faça encaminhamentos para profissionais da saúde mental. A questão é como o próprio médico concebe a necessidade e o papel do acompanhamento psicológico.
Como o foco é buscar tratar “a causa”, muitos encaminhamentos se resumem à indicações para esse fim, sem que se compreenda ao certo como a psicoterapia pode ajudar a combater a dor “no corpo”, que não é “do corpo”. Não raramente há a crença de que, se a então procurada e misteriosa causa é psicológica, já não é do físico, é “da cabeça”; não é somático, é psíquico; não é do corpo, é da mente; não é do médico, é do psicólogo! Permanece a dicotomia, a cisão com a mesma sutileza que diferencia os conteúdos dos termos psico-soma e psicossoma. A presença do hífen traz apenas associação, enquanto sua ausência, integração. Sem dúvida, no caminho da compreensão do fenômeno psicossomático importa inicialmente associar psique e soma, para que se possa ligar, integrar, constituir a unidade psicossomática, representativa do que possa ser humano, ainda que disfuncional.
Georg Groddeck, médico contemporâneo de Freud, profundamente interessado na teoria psicanalítica e em suas implicações terapêuticas também nas doenças orgânicas, já apontava de forma crítica os impasses do pensamento causalista, à procura de causas internas ou externas. “Após uma divisão assim tão nítida, nos jogamos com verdadeira fúria sobre as causas externas, isto é: os bacilos, os resfriamentos, o excesso de comida, de bebida, os acidentes de trabalho e sabe-se lá mais o quê. E a causa interna foi completamente esquecida! Por quê? Porque é muito desagradável olhar para dentro de si mesmo – e é apenas em si mesmo que encontramos as poucas fagulhas que iluminam as trevas da causa interna.”
De fato, não é fácil nem simples acessar causas internas. Apesar de todas as dificuldades, esforços e do valor inerentes à formação e capacitação do profissional médico, se prepara mais para conhecer, acessar, interpretar, tratar, extirpar o que está fora do que o que está dentro. Nesse contexto, é perceptível uma contradição no discurso de muitos pacientes: falam de seus órgãos como algo que está dentro, mas é de fora. É comum ouvir “meu intestino é preguiçoso e indisciplinado; não me obedece; não sei o que fazer com ele!”. Apesar de a referência ser a um órgão interno, é como se representasse um objeto externo, uma peça do organismo, que requer avaliação e conserto. E, quando o problema é constatado, a “causa externa” está assegurada. Talvez por essa razão, o encontro de uma doença orgânica, que legitima o sofrimento no corpo, pode parecer mais confortante do que sua exclusão. A exclusão simplifica por um lado e complica por outro: expõe a sensação de vazio e insegurança quando a esperada primazia da “causa externa” é descartada.
Considerando esses aspectos, como podemos compreender a demanda e o conteúdo do apelo implícitos no desabafo de Maura ao dizer “sinto tudo e não tenho nada?”. Creio que o seu verdadeiro anseio por ajuda tinha uma relação muito estreita com essa frase, tão enigmática e desafiadora para um médico. Trata-se de uma pergunta ou de uma afirmação? A exclusão da causa externa reduz a nada o tudo que é sentido no corpo? Entendo haver um clamor pelo sentido intensamente contraditório de nada – e “tudo”, pelo significado de tamanha desorganização, de um existir (ou não existir) caótico. Na verdade, algo circula por todo o seu corpo e o desorganiza: uma excitação sem destino, sem nome, sem reconhecimento, sem fim. Será essa excitação o tudo irrepresentável, oculto e inominado, que se expressa como “nada” no corpo?
Pensar essas questões somente se tornou possível com o reconhecimento da necessidade de ajuda por parte do que cuida para compreender e conceber a dimensão do que possa significar ser pessoa. E isso vai se revelando em meu percurso pessoal profissional através do encontro com os conteúdos da psicossomática psicanalítica, que mobilizam profundas reflexões.
Na verdade, a obra freudiana proporcionou as bases para o desenvolvimento da escola psicossomática do século 20. O psicanalista Sándor Ferenczi desenvolveu conceitos importantes como patoneurose, neurose de órgão, a pontou as relações entre pensamento e descarga motora e ressaltou a importância da dinâmica psíquica em toda e qualquer doença orgânica. Groddeck estava certo de que não existem doenças orgânicas e doenças psíquicas, pois corpo e alma adoecem simultaneamente. O neurologista Paul Schilder (1886-1849) afirmou: “Utilizei o insight que nos dera a psicanálise com seus mecanismos psíquicos para elucidar problemas da patologia do cérebro”. Segundo Wilhelm Reich (1897-1957), “as relações entre as esferas somática e psíquica são resultantes de um paralelismo psicofísico” – toda experiência psíquica apresenta uma ancoragem fisiológica. Franz Alexander (1891-1964), psicanalista húngaro, representante da escola de psicossomática de Chicago, anunciava que “toda doença é psicossomática, pois os fatores emocionais influenciam todos os processos fisiológicos pelas vias nervosas e humorais”. O consagrado psiquiatra infantil e psicanalista René Spitz postulava que “o organismo opera fisiológica e psicologicamente como um sistema binário”.
Não é mesmo possível separar funcionamento mental de funcionamento orgânico. Os estudos do francês Pierre Marty, morto em 1993, e colaboradores, fundadores da escola de psicossomática de Paris, ampliaram os conceitos psicanalíticos, com ênfase na importância de aspectos do funcionamento mental nos processos de somatização. A manifestação de sintomas somáticos e de doenças se associa aos movimentos de organização e desorganização psíquicas, na dependência da qualidade e quantidade dos recursos presentes e disponíveis. Essas capacidades variam entre as pessoas, assim como em um mesmo indivíduo, dependendo do momento de sua vida. Posteriormente, Michel Fain retoma e salienta a noção de trauma, em que uma sobrecarga de excitação pode exceder os limites de resposta do psiquismo, do ego, e “transbordar” para o corpo. De fato, uma das principais funções do aparelho psíquico é possibilitar a assimilação de traumatismos ao longo da vida, transformar as excitações em representações psíquicas. Essas considerações apontam para a importância do infantil, das vivências primitivas, do acontecer vivenciado no corpo: único, singular.
Neste momento não cabe aprofundar, mas ressaltar a importância das pesquisas realizadas por autores como Splitz, Donald Winnicott, Leon Kreisler, que se dedicaram ao estudo das fases iniciais do desenvolvimento, das funções materna e paterna, fundamentais para a ligação entre psique e soma, para a construção e constituição do self, o verdadeiro eu, que possibilita o reconhecimento de si mesmo. Os estudos evidenciaram a necessidade de equilíbrio do par presença-ausência, da mãe na relação com seu bebe, ou seja, excesso de presença e excesso de ausência são profundamente desorganizadores, com impacto na organização psicossomática de todo indivíduo.
No início deste texto, foi proposta uma reflexão em torno das palavras apenas, nada, tudo, presentes no discurso de Maura. Neste momento, acrescento à lista a palavra excesso. Maura e Lídia sofriam de excessos. Excesso de presença não remete a “tudo”, e excesso de ausência, a “nada”, ambos desorganizadores, com conteúdos difusos, sem possibilidade de nomeação e representação psíquica? Seus distúrbios funcionais são “apenas” disfunções? Do corpo, da mente, ou de ambos?
Para Kreisler, “na histeria, o corpo fala; na clínica psicossomática, o corpo sofre…”, exatamente porque não fala. É necessário que alguém escute e possa compreender o não dito. Por isso, ao que cuida, mais do que informação, é necessário formação, para além da aquisição de saberes específicos dos especialistas, inclusive em psicossomática. Chamo atenção para a possibilidade de um verdadeiro encontro, não mais de um profissional bem informado com um organismo fragmentado, ou partes dele, sem vida. Refiro-me ao precioso e singular encontro de uma pessoa bem formada, constituída na qualidade de sujeito, com outro sujeito, muitas vezes aos pedaços e disfuncional, que carrega no próprio corpo as marcas de sua história. Quem sabe, a partir de então, seja possível o caminhar em um percurso que possibilite a esse outro o encontro de “si mesmo”.
Em 1923, Freud escreveu: “A psicanálise nunca pretendeu ser uma panaceia ou produzir milagres. Para além de seus efeitos de cura, ela pode recompensar os médicos através de uma compreensão insuspeitada sobre as relações entre o psíquico e o somático. Certamente, recompensou.
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