O QUE OS BEBÊS TÊM A DIZER?
Mesmo sem se expressar verbalmente, crianças com pouco tempo de vida podem se beneficiar de trabalhos psicológicos ou psicanalíticos; voltados para as relações primordiais entre pais e filhos, profissionais procuram identificar quanto antes eventuais riscos psíquicos, o que tem propiciado intervenções cada vez mais precoces, levando em conta a capacidade dos pequenos.
Parece desafiador falar em trabalho psíquico com aqueles que estão nas etapas iniciais do processo de subjetivação, já que ainda não falam e aparentemente não sabem tornar inteligíveis suas demandas. É certo que um mediador se faz necessário na relação do bebê com o mundo. Ainda assim, pesquisas e experiências clínicas têm mostrado que os bebês apresentam enorme potencial – até mesmo para responder a psicoterapias. Profissionais da saúde, em especial psicólogos e psicanalistas, têm se voltado cada vez mais à observação das etapas precoces do desenvolvimento, com destaque para a saúde mãe-bebê, buscando formas adequadas de intervenção terapêutica.
Para tanto, é preciso pressupor que o recém-nascido tenha certa sensibilidade para perceber as demandas, tanto da pessoa que dele cuida como do meio, deixando-se inscrever nelas. As práticas de assistência oferecidas a crianças com poucos meses – sejam no campo da medicina, da psicologia ou da psicanálise – se estruturam justamente com base nessa suposição. Pelo viés do psiquismo, destacam-se três tipos de proposta de trabalho: observação de bebês, consultas psicanalíticas mãe-bebê e formação de profissionais de várias áreas para detectar sinais preditivos de risco psíquico. O acesso a tais possibilidades se dá mais facilmente em locais que recebem bebês e suas mães, como hospitais, consultórios pediátricos, de psicologia e de psicanálise, unidades de terapia intensiva (UTIs) neonatais, escolas de educação infantil, creches e organizações não governamentais (ONGs).
A prática de observação de bebês tem o objetivo de mapear seus sistemas cognitivo e afetivo e identificar desajustes em sua formação psíquica, bem como possíveis correlações que deem conta de explicar a causa. Os estudos sobre o psiquismo perinatal ou fetal, por exemplo, que contam hoje com instrumentos tecnológicos capazes de acompanhar o desenvolvimento intrauterino – caso dos equipamentos de ultrassonografia em três dimensões (3D) -, indicam um esboço da função cognitiva já a partir de 15 semanas de gestação, quando o córtex cerebral está bem formado. Com base em constatações como essas, procura-se intervir no ambiente do bebê para facilitar sua relação com o meio. Vários autores consagrados da psicologia do desenvolvimento e da psicanálise dispõem de técnicas para essa prática.
As primeiras obras do pensador suíço Jean Piaget (1896 -1980) sobre o tema – O nascimento da inteligência na criança (1936) e A construção do real na criança (1937) – já marcavam o início do interesse do criador da epistemologia genética pela inteligência dos bebês. Ele buscou relacionar a inteligência dos adultos com sua formação na tenra infância. “Piaget nos mostra um bebê sozinho, que consegue resolver problemas cada vez mais complexos, mas, paradoxalmente, não tem nenhuma representação mental, nem pensamento, antes da idade de 2 anos”, lembra a psicanalista francesa Marie-Claude Fourment-Aptekman, professora titular da Universidade Paris 13. Para o pensador, o bebê é egocêntrico (outra forma de dizer narcísico, auto erótico), e seu mundo, povoado por objetos físicos a serem ou não percebidos por ele.
Já para o pediatra e psicanalista inglês Donald W. Winnicott (1896 – 1971), um bebê sozinho não existe: ele precisa de outro humano para se constituir. Se chora, a mãe lhe oferece alimento. Se resmunga, recebe carinho. Quando percebe que o filho desenvolveu estratégias de apelo, a mãe, aos poucos, vai deixando de responder de imediato a ele, pois passa a acreditar na capacidade da criança de suportar sua ausência e se satisfazer, ainda que por pouco tempo, sozinha. “Para Winnicott, essa capacidade de enfrentar a falta progressiva da mãe já constituiria um esboço de pensamento”, lembra Marie-Claude. Embora o mundo físico esteja a seu dispor, a criança só existe do ponto de vista subjetivo a partir de um outro, caracterizado pela figura materna. A mãe precisará se mostrar progressivamente faltante para que o bebê possa desenvolver curiosidade sobre o mundo em geral. Mas, se as faltas dela forem demasiadas ou insuficientemente progressivas, poderão levar a um “excesso de pensamento”, o que, para Winnicott, se traduz como ausência materna.
Segundo o psicanalista, “inteligência oculta certa privação”, uma vez que o pensamento do bebê seria um substituto materno. Ainda na visão de Marie-Claude, Winnicott indica a possibilidade de as funções de pensamento e de fantasia, abordadas por Freud, caminharem em paralelo. Segundo suas observações, alguns bebês têm aptidão precoce para a fala, chamada por ele de ação de pensar. Outros se especializam nas experiências sensoriais e perceptivas (visão, audição) e criam experiências alucinatórias. Essas duas expressões servem como substitutos da presença da mãe. O bebê recorre a esses recursos para se satisfazer, ao menos temporariamente.
AMBIENTE SEGURO
Winnicott já supunha que tudo o que o bebê registrava “fosse catalogado, categorizado e comparado”. Hoje, técnicas de habituação, provenientes da psicologia do desenvolvimento, comprovam que desde os 2 meses o bebê já é capaz de diferenciar as formas e as cores. “Um pouco mais tarde, também, se torna apto a classificar em duas categorias retratos de homens e de mulheres e consegue encontrar uma matriz idêntica em figuras complexas”, afirma a psicanalista francesa. E mais: logo após o nascimento, o bebê já diferencia fala de ruídos.
Quanto à teoria do apego, do psiquiatra inglês John Bowlby, esta não supõe fenômenos inconscientes na gênese do pensamento. Traz uma concepção desenvolvimentista em termos de segurança e autonomia; quanto maior o estado de segurança, mais disponibilidade a criança tem para descobrir o mundo – o que exige um afastamento gradual da figura materna, tendo em vista a autonomia do filho. Baseados nisso, autores da psicologia do desenvolvimento descrevem tipologias da dupla mãe-criança em função da qualidade do apego (seguro, evitante, ambivalente ou desorganizado) para compreensão de transtornos e psicopatologias infantis. Se há boa interação entre mãe e bebê, ou apego saudável, a criança adquire progressivamente a capacidade de adaptar-se a situações novas, estressoras ou adversas. Caso contrário, torna-se vulnerável às adversidades da vida, sem condições de enfrentamento. Segundo Marie-Claude, essa teoria comportamental encontra-se “longe da sobredeterminação freudiana que nos ensina a prudência, indicando-nos que a fragilidade psíquica nunca pode vir de uma única causa”. E acrescenta: ainda que os critérios comportamentais pudessem fornecer “boa preditividade dos sujeitos vulneráveis”, “não nos ajudam em nada a compreender por que, em percursos idênticos, alguns conseguem se livrar (da catástrofe) e outros não”.
Ao psicanalista cabe “escutar ” a relação mãe-bebê e traduzi-la como apelo – tanto a fala materna e suas hesitações quanto a manifestação do bebê e seus sintomas -, tornando possível, dessa forma, uma intervenção que se baseia na interpretação do discurso daquele adulto que ocupa a função materna.
POSIÇÃO ESTRATÉGICA
Contemporânea de Jacques Lacan (1901- 1981), com quem trabalhou, a psicanalista francesa Françoise Deito (1908 – 1988) foi uma das pioneiras a propor um estudo preventivo em relação às psicopatologias infantis. Após um longo trabalho com crianças psicóticas e autistas, criou a Maison Vert, espécie de creche que os pais ou acompanhantes podiam frequentar, contando sempre com um psicanalista de plantão para escutá-los e atendê-los.
Também psicanalista, a francesa Marie Christine Laznik, da Universidade Paris 13, defende uma intervenção precoce na díade mãe-bebê quando detectados, por meio da observação e escuta do discurso materno, dois sinais que poderiam apontar para um risco de autismo: “Um não olhar da mãe a seu bebê, sobretudo se esta não se dá conta disso, e a não instauração do terceiro tempo do circuito pulsional”. Acrescenta ela: “Intervir na relação do Outro [daquele que ocupa a função materna) com a criança significa prevenção (..) a síndrome autística clássica é consequência de uma falha no estabelecimento dessa relação, nesse laço sem o qual nenhum sujeito pode advir”.
A psicanalista brasileira Raquel Degenszajn, do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), aponta quanto é importante o médico acompanhar o processo de subjetivação da criança, em especial se as funções materna e paterna estão sendo exercidas, uma vez que o bebê produz respostas que podem ser verificadas pelos indicadores de desenvolvimento. O pediatra é quem está em posição estratégica, visto que oferece acompanhamento clínico periódico durante toda a infância, podendo levantar suspeitas diagnósticas, observar a persistência de alterações psíquicas e até encaminhar a criança no momento oportuno ao profissional especializado.
Tanto para os problemas orgânicos que necessitam de esclarecimento quanto para as perturbações psíquicas (que podem se apresentar sob a forma de manifestações somáticas importantes), é desejável que o pediatra desenvolva instrumentos de leitura que o ajudem não apenas na detecção dos problemas da criança, mas também na orientação à família e no encaminhamento de seus membros a especialistas, cujo êxito depende de um trabalho de base sobre a implicação dos pais no sintoma do bebê.
Trabalhos como o de Raquel Degenszajn – que englobam o ensino na área da saúde mental da criança para residentes do primeiro ano de pediatria comunitária no nível de atenção básica – têm como meta a interlocução entre campos distintos, com o objetivo de articular a subjetividade da criança e da família aos problemas levados ao pediatra, utilizando como eixo a relação médico-paciente. É muito importante, assim, que as pesquisas relacionadas ao atendimento de bebês levem em conta a formação psíquica destes na interação com os adultos cuidadores (sejam eles os pais, sejam os profissionais da saúde e da educação), bem como a qualidade dessa interação. A interlocução entre as diversas áreas que acompanham o desenvolvimento subjetivo dos bebês é fundamental para a construção de uma prática clínica diversa da tradicional, mais condizente com a adoção de políticas públicas de prevenção e intervenção precoce em educação e saúde mental.
QUANDO É HORA DE INTERVIR
O bebê pode se beneficiar de estimulação precoce e de atendimentos que envolvam pais e profissionais da saúde
A falta de autonomia do bebê faz com que ele tenha de “pedir” pela satisfação de suas necessidades. Daí o choro, que deve ser entendido pelos adultos que o cercam como um pedido de amparo, isto é, reconhecido como linguagem, como demanda dirigida a eles.
Uma vez que o bebê é posto nesse circuito da demanda, passa a visar a mãe em primeira instância, em especial a forma como esta lhe responderá: uma sonda oral sacia a fome, mas não o satisfaz, pois ele precisa da presença materna, do olhar e da voz que acompanham a mamada no peito aconchegante. Cria-se uma demanda de amor a esse outro cuidador e uma dependência não apenas física, sobretudo de reconhecimento. A identificação, que nos humanos não é natural como no reino animal.
Toda satisfação o bebê encontra no outro e não no mundo. A mãe, ao responder à demanda do filho, o faz com seu desejo: o modo como interpreta o choro e responde a ele reflete o que ela sente pela criança e o sentido que esta tem em sua vida. Portanto, também ela demanda a seu filho respostas a suas expectativas. Inaugura-se o movimento lógico e fundamental que insere a criança no mundo da cultura.
As trocas afetivas e simbólicas entre mãe e filho, que retiram o foco do organismo a fim de transferi-lo para a relação, iniciam-se assim que o bebê nasce, nas mama das, nas trocas de fralda, nos banhos e nas atividades que a família dispensa a ele. Quando ocorre de um recém-nascido, prematuro ou não, precisar de uma UTI neonatal, submetendo-se às rotinas hospitalares, em que seu organismo é o principal foco de ação, é fundamental, do ponto de vista psíquico, que este não seja o único objeto de atenção. Esse bebê, submetido às medicações e aos procedimentos clínicos, deve ter assegurada a possibilidade de estabelecer o circuito da demanda com seus pais – primeiro passo para deixar de ser só um organismo e tornar-se um corpo desejado e futuramente desejante.
A psicologia intervém nos casos em que detecta, por meio de sinais na relação da criança com o ambiente e com os familiares, que o lugar do bebê no desejo dos pais e no estabelecimento do circuito da demanda está ameaçado. Qualquer que seja o motivo que o tenha levado à internação precoce, o psicólogo deve intervir na equipe, sobre os pais e familiares e sobre o bebê, visando sempre um ato ou uma fala, dos adultos que o cercam, capaz de dar a ele a possibilidade de iniciar sua constituição psíquica.
Ao profissional cabe se posicionar de forma a escutar o discurso familiar sobre a criança. Esse discurso que precede o nascimento dela é enunciado pelos pais e parentes. Ele deve interrogar sobre o lugar do bebê no desejo familiar, isto é, os efeitos que tal desejo tem sobre o corpo da criança. Se em geral não é tão claro para os pais como cuidarão do filho, em uma situação em que ele está fisicamente ameaçado é bem provável que haja de fato uma paralisação. Diante de si, só veem o horror e, nesse horror, o bebê. O que pode reverter tal situação é o desejo dos próprios pais de retirar a criança desse lugar, traçando um futuro para ela.
Com a equipe institucional, o trabalho do psicólogo deve ser de parceria e corresponsabilidade. A ele não cabe apenas se ocupar das urgências, como a agressividade ou a infelicidade de pais e familiares que por vezes perturbam a rotina médica. Mais que isso, deve discutir com estes, buscando intervenções comuns e complementares que visem a relação de cada criança com seus pais. Portanto, o bebê pode ser assistido pelo psicólogo de duas formas: indireta (via trabalho de escuta do discurso dos pais e da equipe sobre a criança) e direta (por meio de estimulação precoce). De uma maneira ou de outra, o profissional tem de assegurar à criança o modo particular e estrutural com que seu corpo figura no desejo dos pais e atentar para que as ações institucionais não recaiam apenas sobre seu organismo.
REFLEXOS DO ESTADO DE HUMOR MATERNO
Alguns trabalhos sugerem que o psiquismo fetal já estaria ao menos esboçado no período uterino e que experiências ocorridas nessa época teriam efeitos emocionais profundos sobre o desenvolvimento infantil. Na década de 90, a pesquisadora e psicanalista italiana Alessandra Piontelli fez um estudo observacional do comportamento fetal e infantil, desde a concepção até os 4 anos de idade. Sua metodologia incluía o acompanhamento regular da gestante no pré-natal, eventualmente do parto, e posterior observação da criança em casa. A partir das ultrassonografias de 11 fetos, sugeriu que suas expressões faciais, motoras e sensoriais poderiam estar relacionadas com o estado de humor materno. Sua investigação não foi conclusiva, mas contribuiu para a evolução da psicologia pré e perinatal. Nas imagens acima, simulação realizada com imagens de ultrassom 3D, recurso tecnológico de última geração.
FORMAS DO PENSAMENTO INFANTIL
Até os 2 anos de idade o aprendizado é feito pelos sentidos e pela área motora.
O pensador suíço Jean Piaget (1896-1980), um dos mais renomados teóricos do desenvolvimento cognitivo, investigou a lógica formal que rege a criança na resolução dos diferentes obstáculos com os quais ela se defronta ao longo da infância. Constatou que para cada idade há uma lógica de exploração e solução de problemas.
São padrões organizados de comportamentos característicos de cada faixa etária que se modificam segundo a relação que a criança mantém com o ambiente. Piaget nomeou quatro modos de ação no mundo: sensório-motor (do nascimento aos 2 anos), pré operatório (dos 2 aos 6), operatório concreto (dos 6 aos 12) e operatório formal (a partir dos 12). O esquema sensório-motor caracteriza-se pelo aprendizado resultante dos sentidos e da atividade motora. Esse primeiro estágio divide-se em seis subestágios.
QUANTO MAIS CEDO MELHOR
A intervenção precoce pode diminuir ou mesmo eliminar o risco de distúrbios. Abaixo, alguns marcadores psíquicos importantes, dignos de observação pelos profissionais e cuidadores que acompanham o bebê desde o nascimento até os 6 meses:
- A mãe é capaz de transformar as necessidades fisiológicas do bebê em demanda dirigida a ela, supondo um sujeito?
- Ela consegue afastar-se do bebê, alternando presença e ausência?
- A mãe é capaz de diferenciar tipos de choro de seu filho?
- Ela espera a reação da criança depois de realizar uma ação? Há ligação entre os olhares dela e do bebê?
- O bebê apresenta indícios de comunicação: olhar, sorriso social, balbucies, experiências orais não alimentares como chupar o dedo, por exemplo?
- Ele faz movimento em direção aos objetos?
- A mãe fala com o bebê de um jeito particular? E ele, responde com vocalizações?
- O bebê tem alterações de sono e vigília, de alimentação ou distúrbios intestinais?
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