A DOENÇA DO CORPO ESQUECIDO
A inconsciência de uma deficiência física, como a surdez, a cegueira ou a paralisia de membros, causada por uma lesão cerebral, é um fenômeno registrado desde a antiguidade, mas até hoje intriga e fascina médicos, neurocientistas e psicólogos.
“Você sabe que Arpaste, aquela mulher maluca que foi amiga da minha mulher, tornou-se um peso hereditário na minha casa. De minha parte, sou completamente contrário a dar atenção às suas esquisitices… Essa doida perdeu a visão de repente: bem, coisa inacreditável, mas verdadeira, ela não tem consciência de estar cega e de vez quando pede ao seu cuidador que a leve para outro lugar, porque diz que nossa casa é escura.” Assim escreve Sêneca nas cartas a Lucílio e, até onde se sabe, é a primeira descrição de um distúrbio que se manifesta com a inconsciência de estar acometido por uma doença – nesse caso, a cegueira.
Muitos séculos depois, o quadro recebeu um nome preciso, anosognosia (do grego, “inconsciência de doença”), dado por Joseph Babinski. Nos primeiros anos do século 20, o neurologista francês estudou com critérios científicos uma série de experimentos e casos clínicos que apresentavam as mesmas curiosas manifestações de Arpaste. Filho de um militar polonês que se refugiara em Paris no final do século 19 para escapar da dominação russa no próprio país, Babinski matriculou-se em medicina e foi aluno do famoso neurologista Jean-Martin Charcot. Com ele começou a estudar o fenômeno da histeria e a interessar-se por manifestações psíquicas ligadas a eventos traumáticos, em particular ao diagnóstico diferencial entre doenças da mente e distúrbios orgânicos.
Pacientes não lhe faltavam, dado que, durante os anos da sua maior atividade científica, Paris havia ficado cheia de feridos e veteranos da Primeira Guerra Mundial. Explosões de bombas e outras situações violentas haviam deixado grande número de pessoas com danos cerebrais bem delimitados, que se tornavam casos clínicos perfeitos para o estudo das funções cognitivas. No entanto, embora a “descoberta” da anosognosia seja atribuída a Babinski, descrições desse fenômeno, a partir daquela de Sêneca, não faltam na história.
LESÃO OU MENTIRA?
Um caso semelhante é contado, por exemplo, pelo filósofo francês Michel de Montaigne nos seus Ensaios, curiosamente num capítulo dedicado à arte da simulação. Foi preciso esperar até 1885 para encontrar finalmente um neurologista, o suíço Constantin von Monakow, para relacionar a incapacidade de reconhecer um estado de doença com um dano cerebral. O médico atendeu um paciente cego – exatamente como a mal tolerada hóspede de Sêneca – que atribuía as suas dificuldades de visão ao ambiente muito escuro. Monakow descreve detalhadamente o comportamento desse cego atípico, sentado quieto no quarto, sem nunca se queixar de distúrbios na visão. Só durante a autópsia foi descoberta uma lesão occipital bilateral, assim como um dano do córtex temporal.
Alguns anos depois, em 1893, outro neurologista, Gabriel Anton, da Universidade de Graz, na Áustria, reportou um caso ainda mais curioso e complexo: tratava-se do senhor Wilhelm, que, depois de um acidente de automóvel, passou a sofrer de um raro déficit somatossensorial. O homem de fato não tinha condições de avaliar a posição dos próprios membros sem olhar para eles diretamente (ou seja, perdeu a propriocepção) e estava também paralisado do lado esquerdo, mesmo não tendo consciência disso: “O paciente afirma que realizou as ações com o braço doente”, relata, surpreso, o doutor Anton. Depois da morte do senhor Wilhelm, seu cérebro também foi estudado e os especialistas constataram uma ampla lesão que se estendia desde a área temporo parietal até a occipital direita. Alguns anos depois, Anton assinalou outros dois casos semelhantes: um surdo e um cego inconscientes de sua condição. Chamou o distúrbio de “cegueira e surdez psíquicas”. E em 1898, num artigo científico que se tornou um clássico da moderna neuropsicologia, Anton discutiu as possíveis bases anatômicas desse tipo de distúrbio, afirmando com convicção que não se tratava de uma doença psiquiátrica ou de uma diminuição das capacidades cognitivas, mas da perda de uma função bem circunscrita, que nos faz conscientes de uma doença ou de uma deficiência, mas está inevitavelmente ligada também a algum distúrbio somatossensorial: para “conhecer” algo do nosso corpo e para torná-lo nosso de modo consciente, é necessário que o cérebro receba informações periféricas.
Naquele mesmo ano, outro “pai” da neurologia, o tcheco Arnold Pick, concentrou-se pela primeira vez num caso de paralisia no qual a inconsciência não é acompanhada de distúrbios do tipo somatossensorial como aqueles que, segundo Anton, seriam absolutamente necessários para desenvolver a doença. O seu paciente tinha apenas 31 anos quando sofreu um acidente que deixou seu lado direito paralisado e o tornou incapaz de ler o u escrever a parte esquerda das palavras. A análise de Pick chega a duas conclusões importantes: esses doentes não são “loucos” e não sofrem de demência; além disso, nem sempre é necessário ter um defeito sensorial (do tato, da visão ou da audição) para eliminar a doença do horizonte cognitivo.
Aquilo que Pick não percebeu – e que na verdade veio a constituir a base de partida dos trabalhos de Babinski – é que todos os pacientes apresentavam um dano cerebral no hemisfério direito e um problema de reconhecimento que, quando envolve os membros, aparece apenas no lado esquerdo do corpo.
Em 1914, Babinski, na época diretor da neurologia do Hospital Pitié – Salpêtriére, de Paris, apresentou aos colegas da prestigiosa Sociedade Neurológica parisiense dois casos clínicos. Duas mulheres que haviam tido acidente vascular cerebral (AVC) estavam com a parte esquerda do corpo paralisada. Ambas foram submetidas a todos os testes de inteligência e a todas as avaliações psiquiátricas conhecidas na época, além de uma série de experimentos baseados no movimento dos membros. Foi pedido a elas que realizassem algumas atividades com a mão e o braço saudáveis e depois os repetissem com os membros afetados. As respostas obtidas e os tempos necessários para realizar o que foi solicitado foram criteriosamente anotados: essa foi uma das primeiras tentativas de transformar o relato puramente qualitativo de um caso clínico em uma descrição que fornecesse também dados quantitativos. Trata-se do primeiro estudo sistemático da anosognosia, com um protocolo de exame que avalia todas as manifestações da doença.
“ESQUISITICES” DO CÉREBRO
Mesmo sem nenhum déficit mental, a primeira paciente estava absolutamente convencida de ter acompanhado todas as tarefas que lhe foram pedidas, seja com o braço direito, sadio, seja com o esquerdo, paralisado. A segunda, que manifestava os mesmos sintomas, respondia “pronto” a cada vez que lhe era pedido que movesse o braço esquerdo, ainda que, obviamente, não ocorresse nenhum movimento.
Nos anos seguintes, Babinski registrou outros casos análogos e aplicou a todos o mesmo esquema de avaliação, chegando assim, pela primeira vez, a elaborar a hipótese da existência de um distúrbio especifico a que propôs chamar de anosognosia. Baseou-se, ao fazê-lo, numa análise de grupo, e não somente numa simples descrição de indivíduos em separado. Compreendeu também que a anosognosia pode se apresentar de forma parcial, ainda que seja difícil imaginar um distúrbio de consciência que se manifeste de forma gradual. Existem, de fato, pacientes que sabem muito bem que não podem se mover, mas são pouco interessados nisso. É como se não se importassem: não se movem, mas, curiosamente, a situação não os incomoda.
O médico parisiense percebeu também que a anosognosia não é apenas uma das tantas “esquisitices” que podem ocorrer quando sofremos um dano no cérebro: o distúrbio não é benigno, porque a falta de interesse se traduz também num empenho insuficiente na reabilitação, coisa que os fisioterapeutas conhecem bem e verificam ainda hoje nos centros para onde são encaminhados pacientes que tiveram um AVC e na esperança de uma recuperação ainda que parcial das funções motoras. Babinski constatou, porém, um lado positivo no quadro: “As famílias consideram essa inconsciência uma bênção, porque evita que os pacientes façam perguntas cujas respostas poderiam perturbar seu estado de quietude mental”, relatou.
Ao escrever seu primeiro trabalho sobre a anosognosia, o médico “traiu” o conceito de histeria, o seu primeiro campo de interesse científico: nesses pacientes não há nenhuma vontade de esconder a deficiência, nem uma tentativa de evitar os olhares compassivos dos outros, já que a doença é de tal forma evidente que não pode ser ocultada.
Babinski parecia não conhecer os casos descritos antes dele, ou ao menos nunca os citou em seus trabalhos. Porém, logo percebeu que apenas lesões do hemisfério direito levam a manifestações de anosognosia. A sua afirmação provocou debates na comunidade neurológica francesa, suscitando desde hipóteses fantasiosas (existiria também a anosognosia para as infecções urinárias, sustentam alguns, afirmando que seria possível “esquecer” qualquer doença) até aquelas mais consistentes (o distúrbio é muitas vezes associado ao fenômeno da negligência unilateral, isto é, ao déficit de consciência de tudo aquilo que se encontra à esquerda do indivíduo acometido, incluindo os membros), como mais recentemente descreveu o neurologista Oliver Sacks. Babinski, porém, aporta novamente uma contribuição essencial: não é só a existência do distúrbio que é literalmente esquecida, mas também a função exercida pela parte do corpo envolvida.
Como muitos neurologistas da sua época, o médico concentrou-se mais nas manifestações clínicas e no substrato anatômico da doença do que na sua explicação. Apenas em alguns trabalhos publicados no final dos anos 30 ele levantou a hipótese de que se tratasse de um déficit cognitivo generalizado que requer, segundo a sua interpretação, a perda da sensibilidade da parte atingida (o que não é condição necessária). Não compreendeu, porém, que se encontrava diante da demonstração de que a consciência não é um monólito, mas sim um quebra-cabeça ao qual podem faltar alguns elementos sem que outros sejam afetados. Saber que estamos doentes e ter conhecimento dos próprios limites físicos ou psíquicos é de fato um elemento essencial da consciência, assim como o conteúdo da memória e a habilidade linguística.
UM LADO SÓ
O fenômeno da anosognosia fascina ainda hoje neurologistas e neuropsicólogos, e os estudos que se ocupam do distúrbio são frequentes. Apesar do desenvolvimento das técnicas de imagiologia ou das teorias sobre a representação do corpo no nível cerebral, a sua natureza intrínseca continua a não ser clara. As vezes ela se apresenta sozinha, outras vezes associada à negligência unilateral ou até mesmo a sintomas produtivos, nos quais a mente produz convicções a respeito de elementos na realidade inexistentes. É o caso da somatoparafrenia, uma manifestação cognitiva que às vezes se associa ou se segue à anosognosia e que faz os pacientes, sem nenhuma outra anormalidade do ponto de vista psíquico, acreditarem que o membro paralisado não é deles, mas sim de outra pessoa (um amigo, uma pessoa da família ou mesmo do médico). Como o nosso cérebro representa o corpo, quais danos pode sofrer esse mapa tão essencial de nós mesmos – não somente para as ações motoras, mas para a nossa identidade individual – é um dos campos de pesquisa mais atraentes das neurociências modernas.
AS BASES ANATÔMICAS DA ANOSOGNOSIA
A anosognosia é o resultado de um dano de algumas estruturas cerebrais, em particular os lobos parietais ou as áreas frontoparietais do hemisfério direito (e, muito raramente, também do esquerdo, sobretudo em pacientes com dominância hemisférica totalmente invertida, como ocorre em alguns canhotos). É, portanto, um distúrbio puramente orgânico, ao contrário da negação de doença, que é uma remoção de tipo psicológico cuja função é defender o indivíduo de uma tensão. Entretanto, é interessante saber que alguns estudos de neuroimagem funcional realizados nos últimos anos encontraram nos pacientes que negam a doença por razões psicológicas (como acontece em algumas formas de síndrome de estresse pós-traumático) uma atividade menor das áreas lesionadas.
Segundo a interpretação mais recente do distúrbio, a anosognosia é uma síndrome multicomponencial (que pode, portanto, se manifestar de modos diversos). O desinteresse pode aparecer em relação a doenças bastante variadas, desde a hemiplegia até a perda de sensibilidade da parte esquerda do corpo (hemianestesia) e a falta de memória (como ocorre nas demências, nas quais, em alguns casos, não existe a consciência dos esquecimentos) e “apagamentos” da linguagem. Existem de fato formas de afasia nas quais o paciente está convencido de compreender aquilo que os outros dizem e, sobretudo, de ser compreensível quando fala, ainda que não o seja. Isso interfere muito na possibilidade de reabilitação do déficit.
Estima-se que aproximadamente 15% dos pacientes com sequelas de AVC ou trauma craniano sofram de algum grau de anosognosia na fase aguda da doença. Bem mais rara a possibilidade de o quadro se tornar crônico, pois, com a estabilização da lesão cerebral, a grande maioria dos pacientes recupera a consciência do próprio estado de saúde.
O BRAÇO DO CADÁVER
Talvez um dos registros recentes mais estranhos de anosognosia de que temos noticia é mencionado por Oliver Sacks em seu livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu (Companhia das Letras, 1997). O neurologista falecido em 2015, cita o caso de um homem, internado num hospital, que caía da cama várias vezes na mesma noite. A cada queda, os enfermeiros o levantavam e certificavam-se de que estava bem acomodado. Alguns minutos depois, ouvia-se de novo o ruído do seu corpo chocando-se contra o chão. Intrigado, o médico perguntou-lhe por que continuava caindo da cama. O pobre homem, demonstrando verdadeiro pavor, respondeu: “Doutor, esses estudantes de medicina colocam o braço de um cadáver na minha cama e eu tento me livrar dele a noite inteira”. Como não admitia a existência de seu membro paralisado, o homem era arrastado para o chão toda vez que tentava empurrá-lo para fora do leito.
Uma particularidade presente nesses pacientes é atribuírem o membro paralisado a outra pessoa. Se lhes perguntam a quem pertence a parte paralisada do corpo, respondem com naturalidade: “Ao meu filho”, “Ao meu médico” ou “À minha esposa”.
Há indícios consistentes de que a avaria que acomete os circuitos cerebrais responsáveis pelo aparecimento da negação em pacientes anosognósicos não é definitiva e pode ser compensada depois de algum tempo. Na maioria dos casos, o fenômeno tende a desaparecer depois das primeiras semanas, embora persista em alguns pacientes. A constatação experimental dessa afirmativa foi obtida pelo pesquisador italiano Edoardo Bisiach e seus colaboradores da Universidade de Turim, quando conseguiram a remissão da doença estimulando o sistema vestibular dos pacientes, injetando água fria em seu ouvido esquerdo. O efeito, no entanto, foi apenas temporário.
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