UMA VACINA CONTRA O ABUSO DE DROGAS
Cientistas apostam no desenvolvimento de medicações capazes de evitar o uso de cocaína, heroína e outras substâncias entorpecentes para tratar adictos e ajuda-los, principalmente em momentos mais críticos, quando há maior risco de recaída. A ideia é que os anticorpos impeçam bioquimicamente as sensações prazerosas associadas ao consumo.
Quando o neurocientista George Koob propôs o uso de uma injeção para tratar a dependência química há 25 anos, seus colegas encararam a ideia como perda de tempo. Alguns argumentaram que o sistema imunológico evoluiu para prevenir infecções, e não efeitos provocados por drogas ilegais. O conhecimento científico atual sobre o tema sustenta que o tratamento requer meses ou anos de psicoterapia para ajudar quem sofre com o problema a mudar padrões de pensamento, um processo complexo e com resultados que dependem muito dos recursos internos do paciente. No entanto, Koob, na época pesquisador do Instituto de Pesquisa Scripps, dizia que gostaria de ver adictos consultando o médico para tomar uma injeção que ajudasse a impedir o consumo de drogas quando a motivação diminuísse. A abordagem não substituiria a psicoterapia, mas poderia ser uma importante aliada.
Sua premissa era simples. Vacinas contra doenças infecciosas estimulam o corpo a produzir anticorpos que aderem ao organismo patogênico invasor, impedindo-o de causar doenças. Koob, que agora dirige o Instituto Nacional de Abuso de Álcool e Alcoolismo (NIAAA, na sigla em inglês), acredita que o corpo poderia ser levado a criar proteínas capazes de neutralizar organismos estranhos, como drogas em quantidade elevada. Os anticorpos impediriam bioquimicamente as sensações prazerosas causadas por essas substâncias, diminuindo, assim, o incentivo para o uso. Diferentemente das intervenções tradicionais, no entanto, o objetivo dessa abordagem seria tratar em vez de prevenir o abuso de drogas.
Mais de duas décadas depois que Koob fez a proposta, os cientistas finalmente começam a desenvolver vacinas acessíveis contra substâncias que causam dependência. Testes preliminares com humanos mostram a ação efetiva de agentes contra a cocaína. Exames com heroína também avançam na clínica. E, uma potencial vacina para combater a dependência de metanfetamina tem se mostrado promissora em roedores.
No entanto, as pesquisas ainda estão no começo. Nenhuma vacina para tratar dependência provou ser eficaz em estudos de grande escala com seres humanos; a primeira (contra nicotina) não mostrou resultados muito positivos. Fatores ambientais são fundamentais para perpetuar o hábito; por isso, muitos especialistas afirmam que é pouco provável combater o problema agindo estritamente sobre aspectos bioquímicos. Ainda assim, considerando que, em muitos casos, essa doença persiste apesar dos tratamentos, a abordagem poderia ser um complemento importante na intervenção. “Usuários de drogas costumam dizer que desejam desesperadamente sair dessa situação. As vacinas talvez sejam uma nova ferramenta para ajudá-los”, diz o pneumologista Ron Crystal, da Faculdade de Medicina Weill Cornell, que colaborou com a pesquisa.
FUGINDO DOS GATILHOS
Aproximadamente 1 em cada 12 americanos é toxicodependente, segundo os dados mais recentes da Agência de Serviços em Saúde Mental e Abuso de Substâncias (SAHMSA). O Instituto Nacional de Abuso de Drogas (NIDA) estima que o abuso de álcool, tabaco e drogas ilícitas custam à economia mais de US$ 600 bilhões por ano. No Brasil, cerca de 28 milhões de pessoas têm algum familiar que é dependente químico, de acordo com o Levantamento Nacional de Famílias dos Dependentes Químicos (Lenad Família), feito pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Entre 2012 e 2013, foram divulgados dados sobre consumo de maconha, cocaína e seus derivados, além da ingestão de bebidas alcoólicas por brasileiros. A partir desses resultados, os pesquisadores estimam que 5,7% dos brasileiros sejam dependentes de drogas, um índice que representa mais de 8 milhões de pessoas.
Não é nada fácil lidar com a dependência química. O primeiro passo, em geral, é a desintoxicação, em que a pessoa se abstém do uso até que a substância seja eliminada do corpo. Pacientes internados recebem apoio contínuo para lidar com os intensos sintomas físicos e psiquiátricos que, não raro, acompanham o processo. Depois dessa etapa, alguns passam semanas ou meses na reabilitação em regime de internato; outros apenas frequentam a psicoterapia ambulatorial semanal, individualmente ou em grupo. A força de vontade e a motivação para não voltar a consumir drogas fazem diferença. No entanto, os limites de abordagens que deixam o tratamento muito a cargo do paciente se refletem em taxas bastante elevadas de recaída, que variam de 40% a 60% para cocaína, heroína e metanfetaminas.
A maioria das psicoterapias tem o propósito de ajudar o dependente a reduzir o consumo de drogas e a resistir ao desejo de usá-las. O paciente é orientado a evitar conviver com pessoas que as consomem e a frequentar lugares associados ao hábito, que funcionam como gatilhos, e a desenvolver redes de apoio. Além disso, médicos podem prescrever medicamentos, como a metadona e buprenorfina, contra a heroína, e outros opiáceos que ajudam a reduzir os sintomas de abstinência e a amenizar a sensação de euforia causada pelas drogas. Mas esses fármacos não eliminam completamente a vontade. Além disso, muitos pacientes se esquecem de tomá-los todos os dias. Remédios que ajudam a combater a dependência de nicotina, na melhor das hipóteses, são parcialmente eficazes e ainda não existem medicamentos definitivos contra cocaína, metanfetaminas ou álcool.
RATOS COM SONO
Assim, para muitos, abandonar as drogas e permanecer longe delas pode parecer impossível. “Às vezes ouço dependentes de heroína falar que já fizeram tudo o que podiam, sem sucesso. Dizem que se sentem obcecados, aflitos, e que, embora tentem, não conseguem mudar de vida”, conta Koob.
Para ajudar esses indivíduos, o neurocientista decidiu interferir na bioquímica relacionada com o consumo de entorpecentes. Depois que um usuário injeta, inala ou ingere uma droga, a substância corre através da corrente sanguínea e atravessa a barreira hematoencefálica, um revestimento que contorna as células capilares e protege o sistema nervoso de muitas matérias tóxicas e outras unidades encontradas no sangue. Dentro do cérebro, as moléculas da droga (ou seus produtos metabolizados) se ligam a alvos específicos, desencadeando uma série de eventos químicos que produzem sensações de euforia. A metadona ajuda a dissipar a heroína e a vontade de consumo, bloqueando as sensações prazerosas e agindo em receptores opiáceos muito mais lenta e levemente do que a droga. Koob acredita que é preciso agir antes que a substância atravesse a barreira hematoencefálica. Por isso, decidiu levar essa ideia adiante.
Assim como uma vacina para doenças infecciosas, o método contra a dependência mobiliza o sistema imunológico para combater um organismo estranho e o estimula a produzir anticorpos que atacam especificamente o “invasor”. Essas células de defesa, então, matam rapidamente o elemento patogênico ou tornam a droga inativa sempre que a encontram na corrente sanguínea. Anticorpos para esse fim agem unindo-se a uma molécula da substância tóxica e por isso têm a vantagem de criar um composto grande demais para atravessar a barreira hematoencefálica.
Para os cientistas, o objetivo da vacina é persuadir o sistema imunológico a responder a algo que não costuma provocar reações. Koob e o doutor em bioquímica orgânica e medicinal Kim Janda, do Instituto de Pesquisa Scripps, decidiram ligar a molécula da droga (cocaína, nesse caso) a uma proteína de um vírus que provoca uma resposta imunitária. Essa técnica estimula o sistema imunológico a reagir ao produto combinado, criando anticorpos que se unem a diferentes partes dele. Muitas outras células de defesa também se conectam à molécula de cocaína quando entra sozinha no corpo. Assim, a vacina induz um subconjunto de células do sistema imunológico a construir um arsenal contra a droga.
Depois, Koob, Janda e seus colegas injetaram a vacina em ratos imediatamente após a exposição dos animais à droga. Tipicamente, quando roedores permanecem acordados por longos períodos. Surpreendentemente, após consumirem uma grande quantidade do entorpecente, os camundongos do estudo conseguiram dormir. Tornaram-se resistentes aos seus efeitos. “Foi isso que ajudou a abrir a mente dos cientistas e mostrou que podemos trabalhar na imunização contra drogas”, diz Koob, recordando o artigo publicado em 1995.
Vários outros laboratórios, inclusive o do neurocientista Thomas Kosten, da Faculdade de Medicina Baylor, também desenvolveram vacinas contra a cocaína, que se mostraram eficazes em animais. Em vez de usar uma proteína viral, Kosten e seus colegas ligaram a droga a uma toxina produzida pela bactéria que causa a cólera. Em 2002, os pesquisadores aplicaram uma dose em 24 ex-usuários de cocaína para testar a segurança do método e verificar se iria estimular a esperada produção de anticorpos em pessoas semelhantes às que poderiam, eventualmente, receber a vacina terapêutica. Embora o tratamento tenha provado ser benigno, falhou em produzir níveis elevados de anticorpos em 25% a 30% dos pacientes.
DOSES DE REFORÇO
Em um estudo mais amplo de acompanhamento, publicado em 2009, a equipe de Kosten aplicou vacina ou soro fisiológico em 109 dependentes químicos (os voluntários não sabiam qual dos dois estava recebendo) e ofereceu quatro doses de reforço nas 12 semanas subsequentes. A ideia era tentar elevar o percentual de anticorpos dos que eram capazes de produzi-los adequadamente. Os pesquisadores examinaram também a urina dos pacientes três vezes a cada sete dias durante 24 semanas para monitorar resquícios de drogas e a quantidade de células de defesa anticocaína na corrente sanguínea. Apenas 38% das pessoas vacinadas demonstraram altos níveis de anticorpos, embora quase todas tenham produzido certa quantia. O grupo como um todo apresentou probabilidade 22% menor de resultado positivo para cocaína no teste de urina em relação àqueles que receberam injeções de soro fisiológico. Além disso, os que produziram um grande número de células de defesa foram significativamente mais propensos a ter cortado o uso da droga pela metade. Ainda assim, o tratamento proposto por Kosten deixou sem a proteção de anticorpos adequada um considerável número de dependentes de cocaína. Também não afetou o desejo de uso, o que significa que os pacientes poderiam não voltar para receber as doses de reforço. Koob e seus colegas insistiram na vacina à base de vírus e chegaram a uma combinação de produtos químicos, que inclui uma nova proteína viral. Em um estudo publicado em 2013, Crystal, Koob, Janda e seus colegas injetaram a sua mais recente manipulação da molécula de cocaína em quatro macacos rhesus do sexo feminino, que se tornaram dependentes da droga; um quinto animal recebeu uma dose de soro fisiológico.
Aqueles que tomaram a vacina produziram níveis bem elevados de anticorpos contra a cocaína. A tomografia por emissão de pósitrons mostrou que pouca quantidade da droga se ligou ao seu alvo molecular, o transportador de dopamina do cérebro (abaixo). E mais: os animais não apresentaram comportamentos comuns dos momentos de pico de euforia, como agitação ou insônia. Agora, Koob e Janda planejam conduzir um teste preliminar de segurança em seres humanos.
A dupla trabalha também nos detalhes finais de uma vacina contra heroína, algo mais complicado de fazer. A droga é rapidamente metabolizada em morfina e monoacetilmorfina 6 (ambas atuam sobre os receptores de opiáceos do cérebro). Portanto, um composto eficaz deve estimular a produção de anticorpos contra os produtos de degradação da droga e a substância em si. Então, os cientistas desenvolveram três vacinas em uma: ligaram separadamente a proteína do vírus à heroína e seus dois principais metabolitos. Em 2013 Koob, Janda e seus colegas testaram o método em ratos dependentes químicos. Os animais passavam diversas horas da vigília à procura de heroína ou consumindo a droga, que era oferecida por infusão intravenosa sempre que os bichos pressionavam uma alavanca. Então, os pesquisadores bloquearam o uso da heroína e injetaram três doses de vacina em metade dos camundongos. Após 30 dias, ofereceram a droga aos animais tratados. Embora tenham tentado recuperar o pico de euforia, os ratos pararam de puxar a barra depois de alguns minutos, possivelmente porque não sentiam nenhuma recompensa. Já os que não haviam sido vacinados continuaram a pressionar obsessivamente a alavanca em busca de heroína.
O OUTRO LADO
No entanto, os cientistas ainda não podem a firmar com certeza a efetividade em seres humanos. Pessoas dependentes podem ser mais determinadas do que ratos para tentar alcançar as sensações de prazer causadas por drogas. Quando não atingimos o pico de euforia, nossa tendência não é desistir, mas sim aumentar a quantidade, o que pode levar a uma overdose, alerta o doutor em bioética Wayne Hall, da Universidade de Queensland. Além disso, podemos ter acesso a outras substâncias que causam dependência. “Uma pessoa vacinada, determinada a usar drogas, pode procurar outro tipo de substância contra a qual não é imune”, esclarece Hall. Mesmo que as vacinas não produzam efeito rebote, muitos especialistas acreditam que a abordagem focada somente no aspecto bioquímico é muito restritiva para causar grandes impactos benéficos no mundo real. “A complexa interação entre elementos psíquicos e o ambiente é responsável por pelo menos metade da equação do problema”, argumenta a antropóloga Ângela Garcia, da Universidade Stanford, especialista em toxicodependência. “Talvez esse tipo de tratamento possa ajudar na dimensão biológica, uma estratégia que apoio, mas o que vamos fazer com os outros aspectos?”
A antropóloga destaca as famílias em que a dependência se estende por várias gerações. Para alguns, usar drogas é algo bastante comum. Entre os que procuram tratamento, a maioria acaba voltando para a mesma configuração inicial, cercada por dependentes, objetos e situações que desencadeiam o desejo de usar. A abordagem bioquímica não ajuda a diminuir nenhum desses incentivos ambientais.
A vacina contra nicotina NicVAX, produzida pela Nabi Biofarmacêutica, exemplifica o que deve ser evitado. Em ensaios clínicos em grande escala realizados entre 2009 e 2011, a substância (nicotina ligada a um antígeno bacteriano) não causou melhores efeitos do que o placebo para ajudar pessoas a parar de fumar. Koob e outros pesquisadores acreditam, porém, que a confusão está nos detalhes. Eles esperam que outras combinações de proteínas do patógeno e moléculas da droga (nicotina, heroína ou cocaína) produzam resultados mais positivos.
O neurocientista admite que esse tipo de tratamento é apenas parte da solução: não vai curar a dependência química, mas é capaz de colocar uma enorme barreira ao uso de drogas. Se a abordagem puder ajudar quem sofre com o problema, Koob e Janda acreditam que o trabalho terá valido a pena.
EFEITOS DO PÓ BRANCO NO CÉREBRO
A droga causa dependência alterando a química de regiões neurais que controlam sensações de prazer. Quando temos uma experiência agradável, neurônios da área tegmental ventral (ATV), parte do sistema de recompensa, liberam o neurotransmissor dopamina na ligação com unidades neurais no núcleo accumbens. As respostas dessas células receptoras estimulam a percepção de satisfação. A cocaína se une a transportadores de dopamina nas terminações dos neurônios ATV, bloqueando a recaptação de dopamina após sua liberação. Essa substancia, então, se acumula e continua a estimular células neurais de recompensa, criando um estado eufórico. Uma vacina poderia impedir que a droga entrasse no cérebro, prejudicando, assim, seus efeitos prazerosos.
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