O PESO DO AMOR-PRÓPRIO
Para um desfecho satisfatório no tratamento de casos de obesidade é fundamental que o amor por si seja considerado como elemento principal em todas as fases da terapia.
Nestas breves linhas irei expor a minha opinião extraída da prática de 31 anos enquanto psicanalista a respeito dos tratamentos que pude acompanhar dos pacientes neuróticos que me procuraram querendo tratar da obesidade como queixa principal ou latente, e que em tais casos se constatou que a obesidade era um sintoma ou uma formação reativa desde o ponto de vista psicanalítico. Dessa experiência, pude deduzir que para um bom desfecho do tratamento de tais casos é imprescindível que a invariante “amor por si” seja considerada como elemento principal para todas as fases do tratamento que, nesse caso, não se diferencia da clínica de outros tipos de sintomas neuróticos.
A obesidade é um diagnóstico médico que foi adotado por diversas outras profissões que fazem parte do tratamento dessas pessoas. É fato que é uma desorganização na esfera alimentar que atinge o corpo de forma muito violenta. Mas isto permite dizer que a sua causa é essencialmente somática?
O corpo obeso é signo de uma desorganização. Mas o fato de ser signo não nos facilita em nada para saber qual é a sua causa. Saber que o indivíduo obeso não tem o sinal de saciedade que interrompe a ingestão dos alimentos mostra que isso está desregulado, mas não nos fornece as determinantes causas para fazermos um plano de ação para aquele paciente.
Seguindo essa linha de raciocínio, entendemos como o diagnóstico médico de obesidade pode tender a um universal concreto e não como um universal subjetivo. Com isso, pode deixar escapar o que é do particular subjetivo do indivíduo e não permitir destacar o singular de cada ser.
O leitor deve ter se assustado com o parágrafo acima, mas vou explicá-lo. Hoje em dia é muito comum entender um sintoma como um universal objetivo, por exemplo, a obesidade. Isso acarreta numa desumanização do ser humano, pois não considera esse sintoma como o resultado de uma série de processos singulares da história de vida daquele indivíduo. Quando falamos “o paciente obeso” ele deixa de ser o Paulo, a Maria, desumaniza-se a pessoa. O ser é humano só e somente se for um ser de linguagem. É a linguagem que o determina, dando um valor singular à sua história, ao mesmo tempo em que desnatura o seu corpo animal transformando o instinto em pulsão, que daí por diante o seu corpo é sua “alma” irão funcionar a partir das condições relacionadas às suas experiências de satisfação infantis e aos seus desejos inconscientes, e não como os animais, cujos corpos e suas mentes são determinados por instintos universais concretos da espécie.
Assim, o universal subjetivo é o fato de o paciente falar sobre si, por si e para se escutar, de ele tomar a palavra em nome próprio enquanto ser falante. Todos são dotados desse potencial, Mas, ao falarmos, falamos, de certa maneira, com as condições que a forma da linguagem nos permite dar às nossas representações do que temos de mais íntimo, as pulsões. Essa forma própria é o particular que está no interior exteriorizado da fala. Mas algo sempre ficará como um dizer impossível, que é o singular de cada um, impossível de se falar, mas que é presente e que causa a fala.
Desse modo, podemos escolher a queixa de uma pessoa que está obesa, que nos procura dando-lhe a palavra (universal subjetivo). Modulando sua fala para que ele escute como está determinado pelas condições da linguagem (particular) e como ele pode a partir disso, falar em nome próprio e, com isso, resgatar o amor de si pela via do amor à sua palavra.
AMADO E DESEJADO
Esse procedimento possibilita ao paciente se sentir amado e desejado pelo outro. Explico-me: o amor decorre do fato de alguém realmente se interessar pelo que você tem a dizer. A psicanálise propicia isso, E é isso que fará o paciente sentir, de verdade, que é um ser para o outro, que é importante para o outro. O analista tem que de verdade se interessar pelo que o paciente tem a dizer sobre si mesmo. Essa é a condição para estabelecer o vínculo que poderá fazer ressurgir o “amor por si” do paciente. Ou seja, o amor por si é a mola propulsora do amor ao outro, mas o amor ao outro pode ser a superfície secundária de um espelho, onde o paciente reconhece o seu amor por si primário e recalcado. Por isso que quando perdemos um amor sofremos o abalo de estarmos perdendo parte de nós mesmos.
Além desse real interesse do psicanalista, ainda contamos com a metodologia da dialética própria à psicanálise para modularmos o que o paciente diz de sua obesidade, assim como de todos os outros sintomas e formações reativas que envolvem o seu corpo e suas relações sociais. Essa metodologia permite ao paciente aprofundar o amor, ao saber na relação com o psicanalista e, com isso, colocar em correspondência a obesidade às fantasias sexuais infantis sempre presentes em tais casos, com as identificações inconscientes com entes amados, odiados ou neutros que fizeram parte de sua constituição, enquanto sujeito, e de suas defesas contra as angústias que viveu na infância, na adolescência, e as que vive no presente. Tal oferta do psicanalista deve ser precisa e oportuna para poder propiciar bons resultados, mas não garante em nada que o paciente irá aderir ao tratamento. Por isso, precisamos ter claro que antes de assumir um paciente devemos ter essas condições acima bem estabelecidas, e que não é o médico, o nutrólogo, o nutricionista, a academia, o psicólogo, o psicanalista o responsável pelo bom início do tratamento, mas sim, o paciente. Freud tinha grande preocupação em examinar se as condições internas do paciente permitem que ele possa fazer análise, sem as quais se torna impossível qualquer tentativa via psicanálise.
RESPONSABILIDADE
Como estamos vendo, é condição sine qua non a responsabilidade do paciente para tratar a neurose que ele criou e que a obesidade é uma consequência. Mas, o que é se responsabilizar? Responsabilidade vem do latim respondere e que significa responder desde, ou seja, como a pessoa responde a algo. Assim sendo, eu procuro escutar dos meus pacientes quais são as respostas na direção de um tratamento. Se o paciente está respondendo ao tratamento ou não, se o dispositivo psicanalítico provoca respostas de desenlaces de falsas estruturas e enlaces de estrutura verdadeira daquele ser.
Então, responsabilidade não quer dizer a vontade e empenho consciente de lutar contra a neurose e os sintomas, mas o quanto a pessoa está disposta a se desligar de sua loucura e criar uma nova condição para a sua vida, que não faça o seu corpo sofrer. Para tanto, é necessário que haja condições internas à estrutura dessa pessoa. Mas o que pode fazer barreira à repetição do sofrimento infligido ao corpo e aos pensamentos? Certamente não são os conselhos conscientes, as auto restrições alimentares, a diminuição de quantidades de alimentos, as ginásticas em série etc. Tudo isso só subestima a inteligência de nosso paciente e mostra a ele o quanto somos ignorantes, e passíveis de ele nos engolfar num pacto inconsciente de faz de conta que o tratamento está em marcha.
Praticamente 100% dos pacientes que chegam já passaram por diversas tentativas de tratamentos sem sucesso. Ao relatarem os percursos é muito frequente observarmos que nunca houve uma demanda de tratamento, e sim encomendas de procedimentos que não implicavam a responsabilidade do paciente em se tratar. Sim por que quem se trata, verdadeiramente é o paciente, e a equipe oferece condições para ele se tratar. Essas condições só funcionam se vão ao encontro de um desejo inconsciente e estrutural daquela pessoa, somado à força do amor por si do paciente.
Mas o que recebo são pacientes que foram refratários aos tratamentos. Os tratamentos foram de encontro com o desejo inconsciente, chocando- se com o mesmo e sendo repelidos a cada vez que a censura, o desejo detectavam a possibilidade de se desligar do gozo mortífero causado pela pulsão de morte presente em suas neuroses, fruto de fantasias, inconscientes de auto punição, que ativam os boicotes contra tudo que diz respeito à satisfação dos desejos é, portanto, do prazer.
UNIVERSAL SUBJETIVO
Quando escutamos nossos pacientes podemos colher uma questão consciente, “universal subjetivo” que organiza esse tipo de sintoma: o que permite parar o preenchimento? Essa questão decorre de uma ausência de sinal de saciedade. Não basta saber as quantidades de alimentos que são necessárias, porque, a questão está ligada a um gozo corporal. O ponto de saciedade decorre do gozo que esse corpo pode ter através da ingestão de alimentos. Mas, como esse gozo está muito submetido à imortalidade da pulsão de morte, a pessoa nega a noção de limite que a morte nos ensina. E é porque a morte passa a existir, ou seja, ela deixa de estar recalcada e aceitamos, é que teremos pressa de viver o melhor possível.
A obesidade apresenta um risco de vida ou danos à saúde muitas vezes irreversíveis, por isso a urgência de tratar logo. Não há dúvidas de que a obesidade seja a manifestação do corpo de uma desorganização dos afetos, daquela pessoa. Mesmo nos casos em que a causa seja de ordem orgânica, o desejo de se tratar e de não se deixar abandonar no gozo mortífero é determinante. Existe uma definição muito simples para a obesidade, que é a de considerar esse efeito de “sentir não ter nada comido”: Isto é um julgamento infinito, em que se nega um não predicado: “a alma é não mortal”, ao invés do julgamento negativo, “a alma não é mortal(Kant), e isso nos faz voltar ao ponto de saciedade, quer dizer quando isso para!
Devemos considerar esse julgamento infinito, ou seja, a negação de um não predicado de Kant, e o seu caráter de infinito contínuo interior no sistema, para interpretarmos o que poderá fazer lei, que exerça o efeito de parada, indicando a saciedade. Só assim podemos intervir na fala do paciente e demonstrar o núcleo ligado à pulsão de morte que se enganchou a um gozo sintomático, gozo no sofrimento do corpo e da mente, um gozo de se fazer de zumbi se tornando um morto-vivo.
Aí está o centro da noção de pulsão de morte que Freud desenvolveu. Há algo em cada indivíduo ligado a um desejo de imortalidade, que quando não é falado se manifesta em sintomas de compulsão à repetição, alimentando e atuando, a imortalidade na própria vida. No caso da obesidade, a pulsão de morte se aproveita da pulsão oral. Por isso na Psicanálise o sintoma não é chamado de obesidade e sim de compulsão à repetição da pulsão oral. Quando a pulsão oral se manifesta vinculada à pulsão de morte, ela não dá prazer, mas sofrimento. O gozo de qualquer pulsão vai do extremo do prazer ao extremo do sofrimento. Por isso escutamos desses pacientes que a ingestão dos alimentos, não lhes dá nenhum prazer.
VERGONHA
Os obesos que pude acompanhar carregavam fortes sentimentos de vergonha inconscientes e conscientes. E esse é um ponto essencial para o desenvolvimento do tratamento. Precisamos ajuda-los a superar isso, já que essa vergonha não se restringe a ele ter deformado o seu corpo, de ser julgado como uma pessoa descontrolada, de ser alvo de chacotas etc. O núcleo da vergonha está no desvelamento pelo olho do Outro de sua verdade como ser castrado e, portanto, sexuado e desejante. O que é evitado com todas as forças é que o olhar do Outro denuncie sua castração, consequentemente o seu desejo sexual inconsciente. Isso foi encontrado em todos os casos que tratei, em que esse sintoma se desfez. Ao não encontrar recursos internos para elaborar essa vergonha, ela a transforma em sintoma.
A negação, o evitamento do olhar do Outro, visa não denunciar que seu desejo sexual inconsciente é de gozar de um prazer incestuoso. Isso ligado ao traumatismo da diferença sexual provoca um ciclo que tem um efeito de culpa, vergonha, angústia e formação do sintoma.
A culpa decorre de ter cedido ao seu desejo, ou seja, de abrir mão demais do seu Eu ideal, que é a imagem de seu corpo, para tentar afastar qualquer sensação corporal que o remeta ao prazer corporal obtido através das fantasias incestuosas. Daí querer apagar, anular esse corpo, deformando-o e transbordando-o de gorduras para esconder e tapar qualquer acesso ao sexual. Todos os impulsos sexuais que por definição são prazerosos para o Isso, e tem a função de alimentar o seu amor por sí e, consequentemente, o amor-próprio, são julgados como ameaçadores pela consciência moral, então imediatamente é expedido um mandato de censura para transformá-lo em desprazer. Quando isso acontece, muito acentuadamente abala diretamente o amor por si e produz um ódio contra si próprio.
O ódio, que se desloca para o corpo é o ódio que sentiu do outro por ter sido obrigado a abrir mão de seu amor por si para tentar ser amado por este Outro insaciável que não tem limite de parada à sua fome de devoção, outro devorador.
O tratamento deverá fazê-lo falar muitas e muitas vezes dessa obrigação compulsória do Outro, dessa fome que o Outro teve e tem pelo seu corpo, outro que deseja devorá-lo. Isso se dará dialetizando o desejo do outro. “O que o Outro quer de mim”? para posteriormente poder interrogar a causa do desejo do Outro e se dar conta de que esse outro é um vazio simbólico e não um ente vazio que nunca se pode preencher sem um ponto de basta.
Mas qual é o ponto de basta deste Outro, que não se preenche? O ponto de parada é a saciedade, obtido pelo prazer! Mas como poder ter acesso ao verdadeiro prazer que nos organiza com o nosso corpo? A resposta é: a lei que vem do pulsional e faz limite no imaginário do corpo, que não provém da linguagem, pois o que põe limite ao corpo é o prazer ligado à pulsão de vida! Dito, de outro modo, a vida pulsional causa uma cicatriz na linguagem, cicatriz que causa uma opacidade de sentido na linguagem, o que denuncia sua insuficiência para dar o sentido último da vida. A esse efeito do Real da pulsão sobre o simbólico da linguagem a psicanálise chama de castração, é ele que põe limite na deriva do desejo, no imaginário do corpo. Aceitando esse limite, se resgata o amor por si do narcisismo primário e se destroem os semblantes dos sintomas.
BRASIL S0FRE COM NÚMERO CRESCENTE DE PESSOAS OBESAS
O Brasil, assim como boa parte do planeta, sofre cada vez mais com problemas de obesidade. Dados de janeiro de 2018 indicam que o número de pessoas com excesso de peso e obesidade cresceu nos últimos anos, segundo pesquisa elaborada pelo Ministério da Saúde e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) O levantamento colheu depoimentos de mais de 53 mil entrevistados de todo o país e mostrou que a proporção dos adultos beneficiários de planos de saúde com obesidade subiu 41,6% entre os anos de 2008 e 2016. O estudo identificou ainda, números regionais a respeito dos fatores de risco e concluiu que cinco capitais registram mais de 20%, de usuários de plano de saúde obesos: Manaus (22,3%), Macapá (20,8%),Rio de Janeiro (20,5%), João Pessoa (20,2%) e Aracaju (20%).
***Texto rxtraído da Revista PSIQUÊ
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