VIVENDO NO LIMITE
A busca por esportes ou situações de risco parece não ter explicação racional, mas o prazer pelo perigo está inscrito em nosso patrimônio genético: supostamente, nossos ancestrais mais ousados deixaram mais descendentes que acanhados e medrosos.
Eles batem as portas com violência. Os motores rugem. A partir de agora, uma única coisa conta: acelerar. O despenhadeiro se aproxima a uma velocidade alucinante. Quem saltar primeiro do carro perde. No último instante, Jim abre a porta e se joga sobre o asfalto. Buzz não tem a mesma sorte. Juventude transviada, protagonizado por James Dean, retrata os Estados Unidos dos anos 50, o de uma geração rebelde que sai em busca de sua identidade. Jovens levando as provas de coragem às últimas consequências, sem hesitar arriscar a vida.
O fascínio pelo perigo atravessa os tempos e estende-se a todas as faixas etárias e classes sociais: ultrapassagens ousadas fazem parte do cotidiano de nossas estradas, atletas brincam com a vida em esportes radicais, alpinistas escalam montanhas e beiram o abismo.
Poucas pessoas resistem à tentação do perigo. No final dos anos 90, com o boom das bolsas de valores, mesmo pais de família conservadores, que até então aplicavam suas economias em sólidas cadernetas de poupança, passaram a arriscar investimentos no mercado especulativo de ações de empresas de internet ou de alta tecnologia. Esses mesmos senhores são capazes de atravessar os Estados Unidos durante as férias para alcançar os paraísos do jogo em Las Vegas ou Reno. Aparentemente, esse hábito é comum a todas as culturas. Até mesmo na África e na América do Sul, integrantes das mais variadas etnias colocam todos os seus bens em jogo com cartas e dados.
Mas por que encontramos tanto prazer em situações perigosas – mesmo quando nos custam tão caro e, na pior das hipóteses, terminam em morte? Terry Burham, da Harvard Business School em Boston, e Jay Phelan, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, estão convencidos de que a resposta pode ser encontrada na história evolutiva humana. Em um exercício mental, os dois regrediram aos primórdios da humanidade e ali imaginaram dois tipos de comportamento: o nidícola e o conquistador.
Os seres humanos de comportamento nidícola (daquele que nasce indefeso e tem de ficar no ninho por um longo período) aconchegavam-se na caverna, alimentavam-se de ervas e pequenos animais das proximidades, agindo com imensa cautela. Já os conquistadores andavam em bando e se arriscavam a desbravar novas regiões. A pergunta é: qual dos dois grupos foi capaz de se impor a longo prazo?
Segundo Burnham e Phelan, muitos dos conquistadores encontravam a morte prematura em seus perigosos empreendimentos, porém descobriam vegetais mais saborosos e campos de caça inexplorados. Além disso, angariavam valiosa experiência, tornando-se mais aptos a se defender contra os imprevistos da natureza. Ou seja: seus genes prevaleceram e acabaram por se alastrar pelo planeta. Nosso gosto pelo perigo seria, então, herança biológica. Também na esfera individual o comportamento de risco pode trazer benefícios. Os machos mais ousados em geral são preferidos por potenciais parceiras. Os mais atrevidos proveem a família com mais alimento e oferecem proteção mais confiável, porque em situações de conflito são mais agressivos. Esse fato verifica-se em culturas que desde tempos imemoriais quase não sofreram modificações em seu modo de vida. O antropólogo cultural Napoleon A. Chagnon, da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, estudou, nos anos 60 e 70, os índios ianomâmi da fronteira do Brasil com a Venezuela. Descobriu ali que uma parte dos homens vivia com bem mais mulheres: os guerreiros mais audazes e agressivos. Supostamente, eles põem no mundo um maior número de descendentes que seus conterrâneos acanhados e medrosos. Chagnon concluiu que desse modo os genes daqueles que se arriscam com ousadia se impõem a longo prazo.
A inclinação ao comportamento afoito reflete-se no cérebro com o aumento da produção de dopamina, neurotransmissor que contribui para alterações da consciência e da percepção. Assim, em situações de risco, tornamo-nos capazes de executar tarefas com eficiência acima da média e somos compelidos a procurar novos desafios.
Evidentemente, a propensão pelo perigo manifesta-se de maneira muito diferenciada em cada indivíduo. Enquanto para alguns, poucas rodadas de pôquer com aposta mínima acabam com os nervos, outros adoram elevar seus níveis sanguíneos de dopamina às alturas saltando de paraquedas.
Os psicólogos comportamentais denominam “caça de sensações” esta necessidade por impressões sensoriais intensas e variadas. Através dela, os estados de enfado com carga negativa dão lugar a estados de alerta e tensão que são avaliados positivamente. As pessoas com essa tendência enveredam com mais facilidade por situações de risco sociais, financeiros e de saúde.
Os pesquisadores relacionam tal afinidade com o perigo com dois diferenciais genéticos. O psicólogo Marvin Zuckerman, da Universidade de Delaware em Newark, reconheceu a relação existente entre o comportamento de risco e a monoamina-oxidas e, enzima corresponsável pela quebra da dopamina. Quanto menos monoamina-oxidas e uma pessoa produz, tanto mais ela se aventura e sai em busca de situações arrojadas: seus níveis de dopamina encontram-se sempre elevados. Inversamente, pessoas com altos níveis de monoamina-oxidas e sentem-se muito menos impelidas ao comportamento de risco.
Na década de 90, um grupo de trabalho americano e outro israelense descobriram que um gene denominado novelty-seeking, o “gene da busca pela novidade”, codificador de certo receptor para a dopamina, parece ser responsável pela atenuação da noção de perigo. As pessoas que possuem tal receptor para a dopamina vão às últimas consequências em busca da emoção. Situações que para muitos são excitantes desencadeiam nelas somente tédio.
Em alguns grupos humanos esse gene aparece com maior frequência. Enquanto apenas um em cada quatro africanos ou europeus carrega consigo a propensão à ousadia, ela é colocada no berço de dois terços dos sul americanos. A explicação reside no fato de que seus ancestrais eram integrantes dos grupos humanos que por milênios migraram pela África e Europa em direção à América do Sul. Como vencedores da corrida pela ocupação do continente, transferiram seus genes e com eles a disposição ao comportamento aventureiro.
O espírito de aventura levou o ser humano a grandes realizações. Todavia, o coquetel biológico também esconde perigos, entre eles uma boa dose de super confiança. Levantamentos psicológicos mostram que grande parte das pessoas se considera mais sadia que a média ou acredita ter um senso infalível para investimentos financeiros. Aparentemente, nosso sistema de recompensa baseado na dopamina nos leva a encarar riscos dos quais fugiríamos não fosse a ação de uma droga endógena. O nome dado a isso pelos psicólogos é “sofisma otimista”. Surge quando o perigo não é ignorado, mas o risco de sua incidência mal avaliado.
Assim, um fumante inveterado tende a avaliar o risco de ter câncer como igual ao do fumante moderado do mesmo sexo e idade – erro típico de avaliação otimista, pois evidentemente quem fuma demais corre maior risco de adquirir um tumor e adoecer.
O mecanismo reprime a sensação de medo: acreditamos estar a salvo e subestimamos a própria suscetibilidade. Ao mesmo tempo, a disponibilidade para a prevenção é muito baixa. Matthew Kreuter, da Escola de Saúde Pública em Saint Louis, e Victor Strecher, da Universidade de Michigan, em Ann Arbor, verificaram que, apesar do perigo, as pessoas muitas vezes insistem em comportamentos insalubres e arriscados. Segundo seus estudos, 50% de todos os infartados avaliam seu risco de saúde de modo excessivamente positivo, apesar de o infarto ter lhes ensinado o contrário.
De maneira geral, as pessoas julgam mal os riscos – somos, por assim dizer, cegos às probabilidades. Um exemplo: quando a roleta cai cinco vezes consecutivas no vermelho, a maior parte das pessoas crê, equivocadamente, que no próximo lance as chances do preto serão maiores. Os frequentadores dos cassinos incorrem constantemente nesse erro.
Do mesmo modo, temos mais medo de sofrer um desastre aéreo que um acidente automobilístico, embora muito mais pessoas morram vítimas de acidentes de trânsito. Tememos ameaças de morte espetaculares tais como assassinatos, incidência de raios ou picadas de cobras venenosas. Donos de bingos, vendedores de loteria ou representantes de seguradoras não têm pudor em aproveitar se dessa nossa superavaliação de chances pequenas, vendendo-nos rifas ou seguros contra eventos de probabilidade reduzida. Mas por que razão a mente humana, de resto capaz de compreender teorias matemáticas complexas, acaba incorrendo repetidamente nesse erro primário?
Também aqui a resposta reside na história evolutiva humana. Na época em que nosso cérebro se desenvolvia, as picadas de cobra e os ataques mortais de opositores e predadores representavam ameaças reais à integridade física e à vida do ser humano. Ainda hoje as tribos com modo de vida dito primitivo sofrem destes males, como os índios aché do leste paraguaio, por exemplo. Os antropólogos Kim Hill e Madalena Hurtado, da Universidade do Estado do Arizona, verificaram que 14% das mortes dos homens aché ocorriam por causa do ataque de cobras peçonhentas, 8% em virtude do ataque de animais selvagens e 6% por conflitos com opositores.
Nossos medos são então perfeitamente compreensíveis – porém, estão datados, não se alinham com nosso tempo. No entanto, o cérebro não é capaz de se acostumar ao cálculo “moderno” e abstrato de probabilidades. As cifras astronômicas com as quais temos de operar hoje em dia eram inteiramente desconhecidas de nossos ancestrais. Naquele tempo, a terra era habitada por pouquíssimas pessoas. Foi necessário que transcorressem milhares de gerações para que se desenvolvesse a capacidade de lidar com números e proporções simples. Porém, não se desenvolveu a capacidade de operar com problemas complicados que demandam abstração e capacidade de raciocínio lógico.
Relutamos, pois, em lidar com cálculos estatísticos complexos necessários à análise de risco. Em vez disso, nos aferramos a regras simples que se demonstraram válidas no passado. “Quanto mais impressionante um acontecimento, tanto mais cedo ele ocorre”, prega uma destas heurísticas descobertas pelos psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky durante pesquisa sobre as falsas conclusões estatísticas. De fato, tal afirmação pode encontrar confirmação na prática – mas isso não ocorre nem de longe continuamente.
EVITANDO AS SEREIAS
Do mesmo modo, os matemáticos calcularam que, a longo prazo, um jogador sempre perde nos jogos de azar e nas loterias. Estatisticamente, a cada investimento de 100 a roleta devolve apenas 95. Trocando em miúdos: o ingresso ao cassino custa 5% do que é gasto lá dentro. Os especialistas chamam a participação em tais jogos como “taxa de estupidez”. Nas situações de risco, a nossa falta de senso para as probabilidades entra em um acordo perigoso com o frenesi provocado pela dopamina. Para sairmos ilesos das situações mais arriscadas, não deveríamos deixar a decisão por conta de nosso cérebro desenvolvido na idade da pedra. Deveríamos antes medir o perigo sem interferência da emoção, o que é mais fácil na teoria que na prática. Na maioria das pessoas, a razão é simplesmente desativada. Elas têm de se precaver para evitar o encanto pelo perigo.
Uma das estratégias mais eficientes é o que os psicólogos chamam de “auto amarras”. Os afetados limitam a si mesmos em seu campo de ação a fim de se proteger contra o comportamento leviano. Dependentes de jogo, por exemplo, se previnem levando somente uma pequena quantia de dinheiro ao cassino. Já Ulisses escapou da morte certa se deixando atar ao mastro do navio para não ceder ao canto sedutor das sereias, ordenando também à tripulação de heróis que tapasse os ouvidos com cera.
Mas não precisamos abdicar de todo do prazer fornecido pelo transe da dopamina, já que ele pode ser criado artificialmente, sem que precisemos arriscar a vida. A sociedade moderna oferece inúmeras e múltiplas ameaças falsas. Uma montanha-russa é capaz de nos colocar à beira de um ataque de nervos – e leva o sistema de recompensa da dopamina a níveis estratosféricos. O mesmo acontece quando assistimos a filmes de horror ou jogamos videogame ou jogos que simulam a bolsa. Nosso cérebro não sabe distinguir se o estímulo é falso ou real – e não colocamos em risco nem a saúde nem o dinheiro.
A TRILHA SONORA DA AVENTURA
A “caça de emoções” está relacionada também às preferências musicais. O psicólogo Marvin Zuckerman, pesquisador da Universidade de Delaware, Estados Unidos descobriu há alguns anos que pessoas ávidas por sensações preferem, em geral, ouvir rock e composições clássicas.
Os estilos que mais rejeitam são trilhas sonoras de filmes e cânticos religiosos, por serem considerados monótonos. Logo, aquele que consegue relaxar melhor com as batidas de Marilyn Manson ou com free jazz revela ter, além do gosto peculiar, uma considerável sede de estímulos.
Dessa forma, a play list com as músicas preferidas de uma pessoa pode dizer muito a seu respeito, mesmo para um desconhecido. Em um estudo feito em conjunto, o psicólogo americano Sam Gosling, da Universidade do Texas, e seu colega inglês Peter Rentfrow, da Universidade de Cambridge, constataram que essa primeira impressão intuitiva frequentemente está correta. Os participantes de sua pesquisa ouviram as dez músicas preferidas de pessoas que não conheciam e tiraram, a partir dai, conclusões sobre elas. Os julgamentos relativos à forma de encarar experiências e novidades foram os mais acertados. A extroversão foi corretamente identificada também pelos ouvintes que participaram do teste.
Psicólogos também constaram que pessoas com sede de aventura tendem a apreciar arte abstrata, pop arte surrealismo e a rejeitar pinturas representativas. Essa preferência seria explicada pela excitação mental que esse tipo de arte costuma causar mesmo em uma segunda observação.
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