QI: MAIS, MELHOR OU APENAS DIFERENTE?
Alguns estudos revelam um aumento constante do quociente de inteligência (QI) em todas as partes do mundo. Antes de comemorar o fato de os serem humanos estarem se tornando mais espertos, vale a pena considerar alguns fatores. E, talvez, levar em conta que aquilo que chamamos de capacidade intelectual pode ser mais ampla e surpreendente do que imaginamos.
A inteligência é uma das capacidades mais úteis – e, não raro, atraentes. Ainda que saibamos que esse recurso, por si só, não é suficiente para trazer saúde e bem-estar, ao longo dos séculos ela tem sido valorizada e uma das grandes ambições humanas é ampliá-la. Na área da psicologia o tema tem despertado inúmeras discussões. Há pouco mais de 30 anos, o pesquisador James R. Flynn, da Universidade de Otago, na Nova Zelândia, anunciou a descoberta de um fenômeno que os cientistas sociais ainda se esforçam para explicar: os quocientes de inteligência (QI) vêm crescendo constantemente em todo o mundo desde o início do século 20. Por mais questionável que seja essa medição, o resultado da pesquisa de Flynn vale ser considerado. Ele examinou dados de testes de inteligência de mais de 20 países e descobriu que a pontuação está subindo 0,3 ponto por ano – ou 3 pontos por década. Quase 30 anos de estudos de acompanhamento confirmaram a realidade estatística do avanço global, conhecido agora como efeito Flynn. E os pontos continuam subindo.
“Para minha surpresa, no século 21 os aumentos continuam; os últimos dados mostram os ganhos acompanhando a velha taxa de três décimos de ponto por ano”, declarou Flynn. Um dos aspectos mais estranhos desse efeito é certa monotonia – ele não desacelera, para ou recomeça. Apenas se move regularmente para cima. O psicólogo Joseph Rodgers, da Universidade de Oklahoma, examinou os resultados dos testes de quase 13 mil estudantes americanos para ver se poderia detectar o fenômeno numa escala de tempo mais restrita. “Questionamo-nos se os pontos dos estudantes melhorariam num período de cinco ou dez anos. Bem, eles melhoraram num período de um ano. O aumento está lá, sistematicamente, ano após ano.”
O efeito Flynn significa que as crianças vão, em média, conseguir 10 pontos a mais nos testes de QI do que seus pais. Até o fim deste século, nossos descendentes terão uma vantagem de quase 30 pontos sobre nós – a diferença entre a inteligência média e os 2% do topo da população + se o fenômeno se perpetuar. Surgem, porém, algumas questões. A tendência se manterá indefinidamente, levando a um futuro repleto de pessoas que seriam consideradas gênios pelos padrões de hoje? Ou há algum limite natural ao desenvolvimento da inteligência humana? E, mais importante: aumentar a pontuação nesse tipo de teste significa realmente que as pessoas são mais inteligentes ou apenas que o cérebro encontrou formas de obter pontuações mais altas? Não necessariamente.
Para Rodgers, a universalidade do efeito Flynn confirma que é inútil buscar uma causa única: “Deve haver quatro ou cinco causas dominantes, cada uma se levantando contra fluxos ou desaparecimentos de outras”. Melhor nutrição infantil, educação universal, famílias menores e a influência de mães com educação superior, são algumas das mais prováveis. “Desde que duas causas estejam presentes, mesmo quando algo como a Segunda Guerra provoca o desaparecimento de outras duas, o efeito Flynn mantém sua curva. Um fato a ser considerado é que a mente parece estar ficando mais rápida. Uma prática comum na pesquisa reação-tempo é descartar respostas que estejam abaixo de cerca de 200 milissegundos.
“Pensava-se que 200 milissegundos era o mais rápido que as pessoas podiam responder, mas hoje digitamos textos, jogamos videogames, fazemos muito mais coisas que exigem respostas realmente velozes”, diz o psicólogo cognitivo David Hambrick. Isso é bom? Significa que, na prática somos mais espertos? Não necessariamente, já que em muitas tarefas cruciais um instante a mais de hesitação pode significar menor possibilidade de erro. Assim como o efeito Flynn, a rapidez ou a inegável maior quantidade de informações que temos hoje não é, por si só, nem boa nem ruim – é uma evidência de nossa capacidade de adaptação. O que vamos fazer com esses recursos é o que realmente fará diferença.
VIVA, MUTÁVEL E COM VÁRIAS FACES
A definição de inteligência não é óbvia. Em linhas gerais, podemos dizer que se trata do conjunto de características intelectuais que nos possibilitam compreender, aprender, raciocinar, refletir, interpretar e solucionar problemas de diversas ordens. Etimologicamente, a palavra tem origem no latim inteligentia, oriundo de intelligere, em que o prefixo inter significa “entre”, e legere quer dizer “escolha”. Ou seja, faz referência à possibilidade de fazer escolhas. E para decidir é preciso entender a situação, considerar hipóteses, avaliar, pensar e arcar com os riscos. Por isso, não é de estranhar que entre as faculdades que constituem a inteligência também estão a memória, o juízo, a abstração e a imaginação. O conceito de inteligência, entretanto, não é único. O psicólogo americano Howard Gardner, professor da Universidade Harvard, revolucionou a forma de pensar a capacidade intelectual quando propôs que não temos uma única forma de inteligência, mas várias. Suas pesquisas têm avançado pelo campo das ciências sociais, seguindo caminhos diversos da física ou da biologia, em busca do que o psicólogo considera definições novas e mais adequadas e, atualmente, ele já fala em “nove maneiras e meia” de expressar essa característica.
Gardner observa que pesquisadores orientados pela cultura escolástica se concentraram nas habilidades verbais e lógicas, denominando a “inteligência”. “Pessoas com bom desempenho em línguas e lógica são, em geral, bons alunos, e nós as classificamos inteligentes e nada tenho contra isso, desde que se fale em ‘inteligência escolástica’.
Se, porém, sairmos da escola e estudarmos a inteligência de arquitetos, bailarinos ou comerciantes, descobriremos que podem ser excelentes naquilo que fazem, independentemente do desempenho escolar”, afirma. “Se os homens de negócio tivessem inventado o QI, a avaliação mediria, provavelmente, atitude em relação a risco, iniciativa e capacidade de vender e nenhum desses aspectos é medido pelos testes clássicos de inteligência.”
Gardner defende que os divulgadores de ciência e mesmo os pesquisadores devem ser cuidadosos e não reforçar o senso comum, muitas vezes equivocado. Ele lembra que o filósofo Bertrand Russell disse certa vez que as ideias de todos os grandes pensadores podem ser resumidas em uma ou duas frases: o que os torna notáveis é a estrutura argumentativa que criaram para sustentar as afirmações e defendê-las das críticas.
“Se eu transmitir às pessoas apenas o conceito de que, além da escolástica, existe outras formas de inteligência, já será um enorme progresso. Creio que já alcancei algo nesse sentido”, diz.
Nos anos 90, o psicólogo Daniel Goleman, que também foi pesquisador da Universidade Harvard, conseguiu avanços quando sistematizou e apresentou seu conceito de inteligência emocional, com apelo intuitivo, aludindo às experiências do cotidiano, no mundo do trabalho e na educação. Goleman chamou atenção para um fato óbvio e que merecia atenção: um profissional de uma empresa, por exemplo, pode ter grande capacidade intelectual e uma mente perfeitamente organizada, mas se mostrar um desastre para motivar colegas e subordinados.
Uma das principais objeções à teoria de Gardner tem sido a impossibilidade de mensurar as formas de inteligência mencionadas por ele. O próprio psicólogo reconhece que se trata de uma crítica bem razoável, mas afirma que o desenvolvimento de ferramentas capazes de medir as várias inteligências jamais foi uma prioridade para ele. Robert J. Sternberg – idealizador da teoria triárquica, segundo a qual a inteligência se manifesta em três modalidades distintas: analítica, criativa e prática – tentou fazê-lo no âmbito de sua pesquisa, mas os resultados suscitaram dúvidas.
Gardner observa que há fenômenos que esses estudos não explicam, em particular as razões que nos tornam tão diferentes uns dos outros. “Um cientista pode passar a vida tentando acumular provas da existência de uma inteligência geral, mostrando como esta se correlaciona a este ou àquele fator; ou pode tentar explicar por que as pessoas têm habilidades tão diversas, quais as causas dessas diferenças e a que servem”, afirma.
A visão tradicional a respeito da inteligência, que prevalece há centenas de anos, sustenta que em nosso cérebro existe um único computador, de capacidade muito geral. Quando funciona bem, a pessoa é capaz de destacar-se em qualquer atividade. Se o desempenho for apenas razoável, o portador consegue resultado satisfatório em diversas circunstâncias. Mas se funcionar mal, o dono desse equipamento é um tolo, incapaz de estabelecer relações coerentes. Gardner discorda disso tudo: “Creio que a relação entre cérebro e mente pode ser descrita como um conjunto de oito ou nove sistemas distintos de elaborações fundamentais. Um deles pode atuar muito bem enquanto outro apresenta rendimento mediano e um terceiro funciona mal”.
Ele evoca um argumento difícil de refutar: existem pessoas dotadas de grande talento artístico ou com habilidade para números e xadrez que, no entanto, são incapazes de compreender os outros e manter relacionamentos. “A medicina oficial as considera casos pato lógicos, mas eu sustento que esses fenômenos são normais”, ressalta. Depende do tipo de inteligência de cada um.
COMO SE MEDE O QI?
Um teste popular é o Wechsler lntelligence Scale for Children, que consiste em múltiplos subtestes. Alguns medem o vocabulário, habilidade em aritmética ou conhecimentos gerais da criança – o que adultos podem chamar de trivialidades. Outros examinam a capacidade conceituai da criança. No teste de similaridades, por exemplo, ela tem de considerar similaridades abstratas entre palavras (como raposa e coelho, por exemplo). Só nessas categorias conceituais os pontos dos testes subiram. E o efeito Flynn mostra que estamos ficando mais familiarizados com a abstração.
OS VÁRIOS TALENTOS
A teoria das inteligências múltiplas (IM) parte da ideia de que todos nós temos capacidade de desenvolver diversos tipos de habilidades. O potencial de cada um é resultado da interação dessas competências, que aparecem em doses variadas até no mesmo indivíduo ao longo da vida. Além das oito, descritas abaixo, Gardner fala de uma “meia inteligência”, uma espécie de “marca pessoal”, que torna único o somatório das capacidades de cada pessoa.
1 – Domínio da linguagem e facilidade em usar as palavras ou desejo de explorar suas possibilidades. Própria de poetas, escritores, linguistas.
2 – Capacidade de compreender o mundo visual, modificar percepções e recriar experiências visuais mesmo sem estímulo físico. Comum em arquitetos, artistas, escultores, cartógrafos, navegadores, enxadristas.
3 – Habilidade para confrontar e avaliar objetos e abstrações, bem como discernir suas relações e princípios subjacentes. Típica de matemáticos, cientistas, filósofos.
4 – Competência para ouvir, compor e executar obras com intensidade e ritmo. Pode estar relacionada a outras inteligências, como linguística, espacial e corporal-cinestésica. Aguçada em compositores, maestros, músicos, críticos de música.
5 – Capacidade de controlar e comandar movimentos do corpo e manejar objetos habilmente. Bastante desenvolvida em dançarinos, atletas, atores.
6 – Possibilidade de determinar humores, sentimentos e outros estados mentais em si mesmo (inteligência intrapessoal) e em outros (interpessoal). Presente em psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, políticos, líderes religiosos, antropólogos.
7 – Talento para reconhecer e categorizar objetos naturais. Biólogos e naturalistas costumam ter essa habilidade.
8 – Facilidade para apreender questões amplas, fundamentais da existência. Própria de líderes espirituais, pensadores, filósofos.
AS RAÍZES NEURAIS DA NTELIGÊNCIA
NEURÔNIOS NUMERADOS
Os estudos com imagens do cérebro revelam muitas áreas nas quais a quantidade de massa cinzenta (formada por corpos e células neurais) está correlacionada aos resultados dos testes de inteligência. Os trechos coloridos ao lado indicam a localização aproximada das áreas de Brodmann: agrupamentos estruturais de neurônios numerados de acordo com a tradição histórica. As letras de cada área de Brodmann indicam com quais fatores de inteligência estão associados: (g) geral; (s) espacial, e (e), cristalizados, ou conhecimentos factuais. Todo indivíduo tem um padrão singular de massa cinzenta nessas áreas, o que dá origem a vantagens e desvantagens cognitivas diversas. As 74 áreas de Brodmann (em laranja) são consistentemente inclusas em estudos de inteligência relacionados à estrutura e funções cerebrais. O neuro-fisicólogo Rex E. Jung, da Universidade do Novo México, e eu revisamos os estudos e identificamos essa rede, denominando-a teoria integração parietofrontal (P-FIT) porque as áreas nos lobos parietais (verde) e frontais (azul) foram consistentes na maioria dos estudos. A maioria das áreas de P-FIT está envolvida na computação (áreas frontais) e na integração sensorial (áreas parietais), no processamento e na compreensão consciente de informações sensoriais.
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