JOÃO 23: 1-17 – PARTE IV

Cristo Lavando os Pés dos Discípulos. A Necessidade de Obediência
IV – Cristo lavou os pés de seus discípulos para estabelecer diante de nós um exemplo. E esta foi a explicação que Ele lhes deu a respeito daquilo que tinha feito, vv. 12-17. Observe:
1. Com que solenidade Ele nos deu explicações sobre o significado do que tinha feito (v. 12): “Depois que lhes lavou os pés”, Ele disse: “Entendeis o que vos tenho feito?”
(1) Ele adiou a explicação até que tivesse terminado aquela atividade:
[1] Para testar a submissão e a obediência absoluta deles. O que Ele fez, eles só saberiam mais tarde, para que pudessem aprender a sujeitar-se à sua vontade quando não conseguissem encontrar um motivo para ela.
[2] Porque era apropriado encerrar o enigma e desvendá-lo. O Senhor também agiria da mesma forma em todo o seu empreendimento, quando seus sofrimentos terminassem, quando Ele tivesse retomado as vestes de sua condição exaltada e estivesse pronto para se sentar novamente. Então Ele abriria o entendimento de seus discípulos, e derramaria sobre eles seu Espírito, Lucas 24.45,46.
(2) Antes que explicasse seu ato, Ele lhes perguntou se podiam interpretá-lo: “Entendeis o que vos tenho feito?” Ele colocou essa questão para eles, não apenas para conscientizá-los da ignorância em que estavam, e da necessidade que tinham de ser instruídos (como Zacarias 4.5,13: “Não sabes tu o que isto é? E eu disse: Não, Senhor meu”), mas para aumentar seus desejos e expectativas por instrução: “Quero que saibais, e, se prestardes atenção, Eu vos direi”. Observe que é vontade de Cristo que os símbolos sagrados sejam explicados, e que seu povo esteja familiarizado com o significado deles. Por outro lado, embora extremamente importantes, eles são sem importância para aqueles que não conhecem o significado das coisas. Portanto, eles são levados a perguntar: “Que culto é este vosso?” Êxodo 12.26.
2. No que Ele fundamenta aquilo que tinha para dizer (v. 13): “‘Vós me chamais Mestre e Senhor’, me dais esses títulos, ao falardes de mim, ao falardes comigo, e dizeis bem, porque eu o sou’. Vós sois estudantes para mim, e eu desempenho o papel de um mestre para vós”. Observe que:
(1) Jesus Cristo é nosso Mestre e Senhor. Ele, que é nosso Redentor e Salvador, é, em função disso, nosso Senhor e Mestre. Ele é nosso Mestre, nosso professor e instrutor em todas as verdades e preceitos necessários, como um profeta nos revelando a vontade de Deus. Ele é nosso Senhor, nosso soberano e dono, que tem autoridade e domínio sobre nós.
(2) É apropriado aos discípulos de Cristo chamá-lo de Mestre e Senhor, não como um elogio, mas como um fato, não através de coerção, e sim com prazer. O devoto Sr. Herbert, quando mencionava o nome de Cristo, costumava acrescentar meu Mestre, e desse modo se expressa, no tocante a isso, em um de seus poemas:
Que doce som ouço ao dizer: meu Mestre, dirigindo-me ao meu Mestre!
Como o âmbar-gris deixa um doce aroma em quem o prova,
Assim, estas palavras deixam um doce contentamento,
Uma fragrância oriental: meu Mestre.
(3) Chamar Cr isto de Mestre e Senhor é uma obrigação nossa ao recebermos e observarmos as instruções que Ele nos dá. Cristo, dessa forma, estabeleceria um compromisso da obediência deles a uma ordem que era desagradável para a carne e para o sangue. Se Cristo for nosso Mestre e Senhor, e o chamarmos frequentemente assim, por nosso próprio consentimento, nós estamos comprometidos pela honra e honestidade a ser obedientes a Ele.
3. A lição que Jesus nos ensinou por meio desse ato de lavar os pés dos discípulos: “Vós deveis também lavar os pés uns aos outros”, v. 1 4.
(1) Alguns têm interpretado isso literalmente, e pensam que essas palavras correspondem ao estabelecimento de uma prática permanente na igreja, que os cristãos deveriam, de uma maneira religiosa e solene, lavar os pés uns dos outros, como prova do amor condescendente de uns pelos outros. Ambrósio interpretou desse modo, e exercitava isso na igreja de Milão. Agostinho disse que esperava que aqueles cristãos que ainda não o tivessem feito com suas mãos, o fizessem com seus corações em humildade. Mas ele enfatizava: É muito melhor fazê-lo com as mãos também, quando houver oportunidade, como em 1 Timóteo 5.10. Aquilo que Cristo fez, os cristãos não devem desdenhar; mas sim fazer. Calvino disse que o papa, na observância anual dessa cerimônia na quinta-feira da semana da paixão, é mais exatamente um imitador de Cristo do que seu seguidor, pois a obrigação imposta, de acordo com Cristo, era mútua: “Lavai os pés uns aos outros”. E Jansênio disse: Está feito, friamente, e ao contrário do modelo original.
(2) Mas indubitavelmente isso deve ser entendido figurativamente. É uma indicação esclarecedora, mas não sacramental, como a Ceia do Senhor. Esta era uma parábola para os olhos, e nosso Mestre tencionava nos ensinar três coisas por meio dela:
[1] Uma humilde condescendência. Nós devemos aprender com nosso Mestre a ser humildes de coração (Mateus 11.29), e caminhar com toda humildade. Devemos pensar humildemente a nosso próprio respeito e respeitosamente com relação aos nossos irmãos, e não considerar nada como inferior a nós, senão o pecado. Devemos considerar aquilo que pareça simples, mas que tenda a favorecer a glória de Deus e o bem de nossos irmãos, como fez Davi (2 Samuel 6.22): ”Ainda mais do que isto me envilecerei”. Cristo ensinava frequentemente a humildade aos seus discípulos, e eles haviam esquecido a lição, mas agora Ele os ensina de uma maneira que, seguramente, jamais poderiam esquecer.
[2] Uma condescendência para ser útil. Lavar os pés uns aos outros é rebaixar-se aos trabalhos mais baixos por amor, pelo verdadeiro bem e benefício uns dos outros, como o bendito Paulo, que, embora independente de todos, se fez servo de todos, e o bendito Jesus, que não veio para ser servido, mas para servir. Não devemos nos ressentir de cuidar e nos esforçarmos, e gastarmos tempo, e nos rebaixarmos pelo bem daqueles com os quais não temos nenhuma obrigação em particular, até mesmo de nossos subordinados, que, como tais, não estão em condições de nos fazer qualquer retribuição. Lavar os pés depois de viajar contribui tanto para a decência quanto para o conforto da pessoa, de modo que lavar os pés uns aos outros é levar em conta tanto o apreço quanto o bem-estar uns dos outros, fazendo o que pudermos tanto no sentido de elevar o respeito por nossos irmãos quanto para deixá-los à vontade. Veja 1 Coríntios 10.24; Hebreus 6.10. O dever é mútuo. Nós devemos aceitar a ajuda de nossos irmãos e igualmente fornecê-la a eles.
[3] Uma atitude de servir voltada à santificação uns dos outros: “Vós deveis também lavar os pés uns aos outros”, das contaminações do pecado. Agostinho entende isso nesse sentido, assim como muitos outros. Nós não podemos responder pelos pecados uns dos outros, isso compete apenas a Cristo, mas podemos ajudar uns aos outros a nos purificarmos do pecado. Nós devemos, em primeiro lugar, lavar a nós mesmos. Essa caridade deve começar em casa (Mateus 7.5), mas não deve terminar lá. Nós devemos nos entristecer pelos defeitos e desatinos de nossos irmãos, mas muito mais por suas grandes contaminações (1 Coríntios 5.2), devemos lavar com lágrimas os pés sujos de nossos irmãos. Nós devemos reprová-los lealmente, e fazer o que pudermos para trazê-los ao arrependimento (Gálatas 6.1), e devemos admoestá-los, para impedir sua queda na lama. Isso é lavar-lhes os pés.
4. Aqui está a confirmação e o reforço dessa ordem a partir do exemplo do que Cristo acabara de fazer: “Se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns aos outros”. Ele mostra a força deste argumento em duas coisas:
(1) “Eu sou vosso Mestre, e vós sois meus discípulos, e por isto deveríeis aprender comigo (v. 15), pois, nessas, como em outras coisas, ‘eu vos dei o exemplo’ do que deveis fazer pelos outros, como Eu vos fiz”. Observe:
[1] Que bom professor é Cristo. Ele ensina através do exemplo, bem como da doutrina, e por isto Ele veio a este mundo, e habitou entre nós, para que pudesse estabelecer para nós um modelo de todas essas graças e deveres que sua santa religião ensina, e este é um modelo sem qualquer traço falso. Por meio dele, Ele tornou suas próprias leis mais compreensíveis e confiáveis. Cristo é um comandante como Gideão, que disse para seus soldados: “Olhai para mim e fazei como eu fizer” (Juízes 7.17); como Abimeleque, que disse: “O que me vistes fazer, apressai-vos a fazê-lo assim como eu” (Juízes 9.48); e como César, que chamava seus soldados, não de milites – soldados, mas de commilitones – companheiros de armas, e cuja palavra habitual não era Ite illue, mas Venite huc, não ir, mas vir.
[2] Que bons alunos devemos ser. Uma vez que Jesus nos deu um modelo para que pudéssemos seguir, devemos fazer como Ele fez, para que possamos ser como Ele foi neste mundo (1 João 4.17), e andar como Ele andou, 1 João 2.6. O exemplo de Cristo contido aqui deve ser seguido em especial por sacerdotes, em quem especialmente as graças da humildade e do amor sagra do devem mostrar-se, e através do exercício destas, eles efetivamente devem servir aos interesses de seu Mestre e aos propósitos de seu ministério. Quando Cristo enviou seus apóstolos como seus representantes, era com este encargo, para que eles não se apresentassem com pompa, nem fizessem as coisas com pulso forte, mas se fizessem “tudo para todos”, 1 Coríntios 9.22. “Aquilo que eu fiz por vossos pés sujos, vocês devem fazer pelas almas corrompidas dos pecadores: lavai-as”. Alguns que supõem que este ato tenha sido realizado durante a celebração da Páscoa, pensam que ele implica em uma regra para admitir aqueles que desejam participar da Ceia do Senhor, com a finalidade de assegurar que eles tenham sido primeiramente lavados e purificados pelo novo nascimento, sendo inculpáveis nos assuntos que conversam, e em seu modo de falar, e então estes podem ser levados para dentro dos limites do altar de Deus. Mas todos os cristãos são aqui igualmente ensinados a condescender no amor uns com os outros, e a fazê-lo como Cristo o fez, voluntariamente e gratuitamente. Não devemos ser mercenários a serviço do amor, nem fazê-lo com relutância.
(2) “Eu sou vosso Mestre, e vós sois meus discípulos, e por essa razão não podeis considerar que esteja abaixo de vossa capacidade fazer aquilo que me vistes fazer, não importa como isso possa parecer baixo, pois (v. 16) ‘não é o servo maior do que o seu senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou’, mesmo que seja enviado com toda a pompa e poder de um embaixador”. Cristo havia argumentado isso (Mateus 10.24,25) como uma razão pela qual eles não deveriam achar estranho se sofressem como Ele sofreu. Aqui Jesus sugere isso como uma razão para que não pensassem que era demais para eles se humilharem como Ele o fez. Eles não devem considerar uma degradação para si mesmos, aquilo que Ele não considerou uma degradação para si. Talvez os discípulos estivessem intimamente desgostosos por causa desse preceito de lavarem os pés uns dos outros, considerado incompatível com a respeitabilidade à qual eles esperavam ser elevados em breve. Para evitar tais pensamentos, Cristo faz com que se lembrem de seu posto como seus servos. Eles não eram melhores que seu Mestre, e o que era condizente com a dignidade dele, era ainda mais condizente com a deles. Se Ele era humilde e condescendente, seria impróprio para eles serem orgulhosos e presunçosos. Observe que:
[1] Cada um de nós deve tomar muito cuidado consigo mesmo, para que a graciosa condescendência de Cristo para conosco e nossos progressos não sofram as deturpações da natureza, o que faria com que tivéssemos um conceito elevado a nosso próprio respeito, desvalorizando a Ele. Devemos ter em mente que não somos maiores do que nosso Senhor.
[2] Não importa o quanto nosso Mestre fique feliz em condescender em nosso favor, muito mais nós devemos condescender para estar de acordo com Ele. Cristo, ao se humilhar, dignificou a humildade, e a honrou, e obrigou seus seguidores a não se considerarem superiores a ninguém, exceto ao pecado. Nós geralmente dizemos àqueles que menosprezam alguma atitude ou atividade: Ela será tão boa quanto você a considerou, e nunca será tão ruim quanto você pensou. E com certeza assim será, principalmente se nosso Mestre a fez. Quando vemos nosso Mestre servindo, não podemos deixar de perceber como seremos indignos se formos arrogantes.
5. Nosso Salvador encerra esta parte de seu discurso com uma intimação da necessidade da obediência deles a estas instruções: “Se sabeis essas coisas”, ou, visto que vós as conheceis, “bem-aventurados sois se as fizerdes”. A maior parte do povo pensava: Bem-aventurados são aqueles que se levantam e dominam. Lavando os pés de outros, ninguém jamais alcançará posições e primazias. Mas Cristo diz, apesar disto: Bem-aventurados são aqueles que se inclinam e obedecem, “se sabeis essas coisas”. Isto pode ser entendido, ou como a insinuação de uma dúvida sobre se eles as conheciam ou não. Tão forte era a ideia deles de um reino temporal, que isto era uma questão sobre se eles podiam acolher a noção de um dever tão contrário àquela ideia. Ou como a aceitação de que eles conheciam estas coisas. Visto que eles tinham tantos preceitos excelentes dados a eles, recomendados por um tão excelente padrão, isto será necessário para a complementação de sua alegria, que eles procedam adequadamente.
(1) Isto é aplicável à ordem de Cristo em geral. Note que, embora seja uma grande vantagem conhecer nosso dever, ainda assim não completaremos nossa alegria, se não cumprirmos nosso dever. O conhecimento tem como fim a prática. Aquele conhecimento, portanto, é vão e infrutífero, o que não é reduzido à prática. Na verdade, ele agravará o pecado e a ruína, Lucas 12.47,48; Tiago 4.17. É conhecendo e praticando que nos manifestaremos como do reino de Cristo, e sábios construtores. Veja Salmos 103.17,18.
(2) Isto é para ser aplicado particularmente a esta ordem à humildade e utilidade. Nada é mais bem conhecido, nem mais prontamente reconhecido, do que isto, que nós devemos ser humildes. E, portanto, embora muitos reconheçam a si mesmos como impetuosos e imoderados, poucos reconhecerão a si mesmos como orgulhosos, pois isto é um pecado tão inescusável, e tão odioso, como qualquer outro. E, ainda assim, como deve ser visto pouco da humildade verdadeira, daquela sujeição e condescendência mútuas, a respeito das quais a lei de Cristo tanto insiste! A maioria conhece estas coisas tão bem quanto espera que outros devam, em conformidade com as quais, fazer a eles, submetendo-se a eles, e servindo-os, mas não tão bem quanto fazem então eles mesmos.
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