AS EMERGÊNCIAS SILENCIOSAS
Paramédica relata como é lidar com um fio de vida numa ambulância e nunca saber como terminou a história.

“Eu acho que é encefalite”, ela me disse. ” Porque dói aqui atrás, no meu pescoço.” A senhora apontou para a nuca, na linha do cabelo grisalho e seco.
Susan tem 70 anos e ligou para o 911 por causa do nariz escorrendo e da dor. Estava doente havia alguns dias, mas não foi ao médico. Ela mora numa “ocupação de um quarto” num conjunto habitacional no centro da cidade e divide o espaço pequeno com um homem mais novo que, de acordo com ela, é seu amigo. Estamos numa cidade litorânea populosa, com antigos hotéis colados a arranha-céus de novos-ricos, condomínios e casas enfileiradas idênticas. Um casal de jovens bêbados talvez escolha caminhar algumas quadras a mais para evitar um bairro como o de Susan.
Ela estava usando um suéter grande e laranja e arregaçou uma manga com o polegar enquanto conversávamos. A roupa não estava tão suja quanto a da maioria das pessoas que tratamos, mas não estava limpa. Verifiquei seus sinais vitais e liguei o monitor cardíaco. Aumentei a temperatura da ambulância.
Susan é igual à maioria de meus pacientes: solitária, pobre e sem queixas sérias. Trabalhei numa ambulância por cinco anos em três países diferentes. Urbano e rural, rico e pobre, seco e molhado. Meu trabalho não é bem o que se pensa.
Na tela da TV, paramédicos estão sempre correndo para tentar salvar uma mulher presa debaixo de escombros, um homem sangrando ou um bebê sem fôlego. Há muitas sirenes, muita gritaria, um bêbado engraçado de vez em quando, mas a maior parte do trabalho é retratada com muita adrenalina. Geralmente, as pessoas arregalam os olhos quando conto qual é meu emprego.
A verdade sobre meu trabalho é, ao mesmo tempo, menos e mais interessante. Hoje em dia, a categoria de paramédico é mal definida, uma mistura de médico de combate, assistente social e gari. Atendemos muitas chamadas sem ligar as sirenes e nos sentamos com pessoas que têm problemas distantes da medicina. Há pouco tempo deparei com uma retratação surpreendentemente fiel da alma dos serviços de emergência médica num livro que não tem nada a ver com emergência. Em Evicted (Despejado), best-seller do New York Times, o autor, Matthew Desmond, acompanha oito famílias que estão sendo despejadas em Millwaukee, Wisconsin. O livro sobre economia e habitação logo se torna uma história comovente sobre a pobreza americana. Nas três primeiras páginas, pensei: “Ah, este livro aborda meu trabalho”. Desmond escreve sobre Arlene, mãe solteira de cinco ou seis crianças. Ela depende de programas sociais porque o dinheiro é mais fixo do que em qualquer emprego. Seu filho mais novo tem asma, e ela sempre se esquece de seus remédios. Ele fica doente o tempo todo e, sem um médico de família, é levado à emergência. Eu sei. Já fiz um atendimento desses.
A história das moradias, dos bairros em que as pessoas moram e por que elas moram lá é a história da pobreza americana. Como uma médica de rua, nunca vou saber o resultado de exames da maioria de meus pacientes – mas verei seus quartos e os de seus vizinhos. Verei a pilha de fotos no canto escuro do armário antes de ver uma radiografia de tórax. Subo três lances de escada com minha maleta e passo por vasos de plantas, certificados emoldurados e fotos de família. Sei quais casas têm construções ilegais, laboratórios de metanfetamina ou terraços lindos. Procuro por insulina na geladeira. Uma paciente me leva até seu armário, e eu escolho um casaco para ela usar; ela não gosta do amarelo, pego o azul atrás dele. Um boné da infantaria do Vietnã cai quando pego o cabide. Ela pede que eu o guarde, era de seu marido. As bordas estão finas de tanto uso.
Vemos cozinhas reformadas, sótãos apodrecidos. Eu deixo comida para os animais de estimação, desligo as luzes e a boca do fogão embaixo da panela com rabada. Uma vez, li metade de um poema deixado na máquina de escrever de uma mulher que morreu.
Serviços de ambulância, no fundo, são serviços de transporte. Fazemos muitas avaliações e poucas intervenções, mas nossa função principal é levar as pessoas do lugar onde estão até o hospital. Chamamos de “cenário”. Como estava o cenário? O cenário é seguro? Estamos numa casa, numa clínica, num beco atrás de várias lixeiras? Num mês normal, atendo cerca de 70 a 100 pacientes. Normalmente, dois ou três são emergências do tipo luzes e sirenes, pisa no acelerador, “Johnny, traz o desfibrilador”. Você sofre um acidente de carro, um ataque cardíaco. O resto dos pacientes é igual a Susan: pobres, velhos, bêbados e sem casa – pessoas que se distanciaram ou foram expulsas da sociedade e não sabem a quem pedir ajuda.
Geralmente vejo cada paciente por cerca de uma hora, da rua ao hospital. Temos alguns clientes fiéis, mas eles só aparecem em seus dias ruins. Quando passamos um tempo sem ver uma pessoa, a maioria das vezes é porque elas ficaram sóbrias, foram presas ou morreram. Chegamos num momento de crise de uma história e quase nunca testemunhamos seu final.
Quase nunca vemos uma história ser resolvida.
À noite, depois de terminar o livro de Desmond, anotei todas as chamadas de meu turno. Eu trabalho no centro, das 16h30 às 4h30. As chamadas incluíam Tag, de 41 anos, que estava numa clínica e sofria de dores nas costelas havia um mês. Depois de Tag, vinha Ronnie, um homem de 58 anos de um abrigo para veteranos sem teto. Ele estava sofrendo de surto psicótico e coriza, nessa ordem. Falando rápido e com sentido na maioria das vezes, se ele conduzia a conversa por muito tempo, a paranoia começava. Seu nariz estava escorrendo havia uma semana e seu vizinho havia roubado suas calças e as pintara de outra cor. “Estas calças?” Eu apontei para o jeans que usava. Ele não tinha certeza. Disse que o homem rastejava por debaixo de sua porta toda noite, pintava as calças e então rastejava de volta. Demos a Ronnie uns lenços de papel e o levamos para o Departamento de Assuntos de Veteranos.
Em seguida, foi a vez de um mendigo bêbado com um corte na cabeça; a ligação foi feita por uma turista que nem parou o carro, só pegou o celular e continuou dirigindo. Depois, Susan, com a dor na nuca e o suéter laranja. E uma russa de 91 anos com um ataque de asma que estava mais ou menos resolvido quando chegamos. Mas seu filho estava preocupado: ela mora sozinha, ele não poderia passar a noite lá, e eles não tinham dinheiro para pagar uma cuidadora que ficasse com ela.
Todos esses pacientes enfrentam sérios problemas de moradia, comida, competências. A ligação ao 911 não é tanto uma emergência quanto uma incapacidade de sustentar a si mesmos. A falta de acesso a necessidades básicas como comida, água e higiene se tornará problema de saúde se ignorada por tempo suficiente. Geladeiras vazias levam à desnutrição, encanamento defeituoso traz infecções. Vício se torna overdose. Algumas pessoas nos ligam com esperança de ser levadas à emergência quando não querem passar mais uma noite sozinhas.
Susan contou que tomava remédios para pressão alta, problemas psicológicos e dor. Já teve um ataque cardíaco. A maioria de seus remédios tinha acabado havia uma semana, e ela não conseguira ir a uma farmácia para comprar mais. Susan olhou para mim um pouco envergonhada. “Eu achava que não estavam fazendo efeito mesmo.”
Ela disse que sobrou um pouco de Haldol, mas não tomava sempre porque não gostava. Seus joelhos balançavam para a frente e para trás na maca, provavelmente um efeito colateral do medicamento. Pacientes que tomam remédios psiquiátricos a vida toda costumam ser um pouco inquietos. Ela disse que a braçadeira para medir pressão arterial estava um pouco apertada.
Susan é beneficiária de programas de auxílio do governo desde os 24 ou 25 anos por causa de alucinações. Ela morava no Sul naquela época. Passou um ano em Tulsa, dois em Sacramento, indo de um lado para o outro. Às vezes recebe benefício por causa da deficiência e outros auxílios financeiros. Divide o quarto com Marcos há muitos anos. Procurei por seu nome em nosso sistema: transportamos Susan quatro vezes neste mês. Ela explicou que costuma ir de cadeira de rodas à farmácia, mas nesta semana havia feito frio.
Quando estávamos indo embora, perguntei: “Se esteve doente a semana inteira, o que foi que mudou para você ter ligado para o 911 hoje?”.
“Eu fico assoando o nariz, mas ele continua escorrendo”, respondeu.
Em comunidades pobres, acesso constante a medicamentos é raro. Mudanças de casa frequentes levam a mudanças no seguro, na elegibilidade ao Medicare – o sistema de seguros de saúde gerido pelo governo americano – e no fornecimento de transporte até um novo médico.
Quando a comida acaba, quando não têm mais casa, quando os relacionamentos terminam, somos a última alternativa.
Temos uma paciente regular em minha cidade chamada Leena. Ela tem o temperamento de uma criança desnutrida. Passa de feliz a zangada num piscar de olhos, rindo e chorando, nos ajudando ou cuspindo em nós. Liga no meio da noite porque a vodca acabou ou o motorista do ônibus olhou feio para ela. Gosta de descrever suas aventuras sexuais em detalhes desconfortáveis e já socou paramédicos do nada.
Uma série de leis severas impede o “abandono de pacientes”, que é o tempo legal usado para o caso de eu sentar na frente dela e dizer “Não”. De dizer: “Querida, você já ligou nove vezes nos últimos quatro dias. Você foi expulsa do pronto-socorro hoje de manhã porque cuspiu numa enfermeira. Você foi expulsa do último abrigo por brigar com um vigia. Você não tem uma queixa de saúde, só está cansada. Eu entendo, o sol está se pondo, a calçada está rachada e os ratos vão aparecer, e isso é um saco, eu sei. Eu queria poder fazer alguma coisa. Mas o pronto-socorro é para emergências de saúde, para pessoas que estão morrendo mais rápido que você. E a ambulância serve para dirigir rapidamente, para quem está tão perto da morte que não consegue esperar no sinal vermelho porque pode não sobreviver até ficar verde. E talvez alguém assim esteja tentando ligar para nós agora, mas não podemos ajudá-lo porque estamos aqui com você. De novo”.
Queria poder ser a pessoa que leva esses pacientes a clínicas de atendimento a longo prazo e à terapia, que, sozinha, os tira da escuridão. Mas tudo que posso fazer é colocá-los na maca e levá-los ao hospital.
Fui treinada para reagir a situações de vida ou morte em segundos. Abra a via aérea, pare o sangramento. Salve o coração que está precariamente à beira da morte, estenda a mão e agarre a última chance de vida. Emergências. Para alguém como Leena, porém, estar cansada e sozinha é uma emergência. Sua vida está tão fora de seu controle que ela não consegue pensar além de uma hora daqui para a frente. E, na próxima hora, o sol vai se pôr e a neblina vai tomar conta da noite. Em vez de deixá-la na rua, tentei colocar juízo em sua cabeça e lhe dei um cobertor e uma carona até o pronto-socorro. Pode ser que desta vez algo tenha mudado. Três horas depois, Leena ligou novamente, a uma quadra do hospital. Uma equipe diferente atendeu a chamada.
O número de overdoses sempre sobe nos dias 1 e 15. Eu sei mais sobre seguridade social do que sobre câncer, com certeza. E a quantidade de pessoas que não têm mais nada, que estão perdidas, com medo e sozinhas, sempre será maior que a de pessoas que acabam tendo um derrame ou um infarto. Sempre. Enquanto o serviço de 911 permanecer gratuito e rápido, a maior parte do trabalho não vai se tratar de transporte rápido.
Em Evicted, Desmond escreve: “Há duas formas de desumanização: a primeira é privar as pessoas de toda virtude; a segunda é purificá-las de todo pecado”. Desmond escreve sobre seu povo, meu povo, com compaixão e em detalhes. Ele evoca seus dias bons, os momentos alegres entre períodos complicados. Preenche a história daquele mês em que Leena não ligou, quando estava bem alimentada e morando com sua tia em algum lugar ao norte. Para mim é bom ver essa parte da história. Lembrar que existe um ser humano por trás da ligação.
Quando deixamos Susan na sala de emergência, meu parceiro e eu elogiamos seu suéter. Dissemos que ficava bonito nela e era aconchegante naquele inverno. Ela sorriu abertamente. “Tenho ele há muitos anos”, disse. “É meu favorito.” Puxou as mangas e apoiou o queixo na mão escondida dentro do suéter. Eu ajeitei o cobertor e desejei tudo de bom para ela. Esperava que ela se sentisse melhor, organizasse seus remédios e ficasse longe do hospital por um tempo. Em outras palavras, eu esperava nunca mais vê-la de novo.

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