APRENDENDO A PENSAR
Pesquisadores que estudam a capacidade intelectual das crianças antes de seu primeiro aniversário sabem que desde muito cedo os pequenos aprendem a comparar características e conseguem se lembrar do que viram e ouviram.
Ainda que os bebês quase não falem antes de 1 ano, estudos mostram que eles já pensam, têm capacidade de memorização e conseguem fazer comparações que os ajudam a organizar suas experiências – preparando-se para acumular outras. Com isso, organizam o ambiente em que vivem. “A quantidade de novas impressões adquiridas pelo recém-nascido são incontáveis e surgem o tempo todo, ameaçando sobrecarregar seu cérebro, daí a urgência dessa organização”, explica Sabina Pauen, professora de psicologia do desenvolvimento da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. “Para dar certa ordem a esse volume de informações o bebê separa tudo em categorias, como se as distribuísse em gavetas em seu intelecto”, explica. Assim, a criança não precisa reaprender todas as características daquilo que surge em sua vida, mas pode transferir sua experiência com determinado objeto para outros ainda desconhecidos. Ao ver um caminhão, por exemplo, o aproxima mentalmente de um ônibus. Também é comum que no momento em que os pequenos criam a categoria cadeira, por exemplo, passem a reconhecer imediatamente o mesmo objeto, ainda que com cor e forma diferente, em sua casa – mas que ainda assim é um “lugar para sentar”.
Como a categorização ocorre na fase em que os pequenos desenvolvem a capacidade óptica de forma plena, a hipótese mais provável é que se orientem, em especial, pela aparência do que veem. Nesse caso, provavelmente conseguiriam agrupar primeiro o que tem aparência similar e que, ao mesmo tempo, fosse bastante diverso de outros objetos – ou seja, classes como gatos, cachorros, cadeiras ou mesas, identificadas de forma básica. Em contraposição, categorias globais como animais, móveis ou veículos motores seriam mais complicadas de organizar, pois incluem objetos de aparência muito diversa.
“Nossas experiências. Porém, chegaram ao resultado oposto: categorias globais são diferenciadas antes de básicas”. afirma Sabina. Segundo ela, não é apenas a semelhança externa que determina a divisão em categorias, pois crianças de 11 meses conseguem distinguir tão bem os modelos de animais e móveis aparentemente muito semelhantes como aqueles que apresentam todas as diferenças naturais entre as duas classes de objetos.
“Bebês com mais idade, portanto, constroem novas categorias não apenas por meio de uma abstração visual, já que, do contrário, teriam categorizado melhor os modelos mais fáceis de diferenciar”, afirma. Algo, porém, intrigava a pesquisadora: afinal o que guia a categorização? Os conhecimentos e as experiências prévias teriam algum papel aqui? Nesse caso, animais apresentados aos pequenos voluntários em fases iniciais dos testes deveriam fazê-los se lembrar de bichos de verdade. A favor de tal suposição existe o fato de que as que crescem em companhia de um gato ou um cachorro são capazes de distinguir esses animais aos 9 meses, enquanto aquelas sem essa experiência não conseguem executar tal tarefa nem mesmo aos 11. Independentemente do que orienta o bebê para a categorização, é necessário que ele consiga imaginar as coisas de alguma forma, o que os psicólogos denominam “formação de representação metais estáveis” (uma ideia persistente e com consistência a respeito de algo).
Quem convive com crianças pequenas percebe, a todo o momento, que muito antes de dominar as palavras e construir frases elas já se recordam concretamente de objetos e pessoas e estruturam tal lembrança em pensamento. Por volta do sétimo mês, por exemplo, surge o medo de gente desconhecida: muitos já não vão para o colo daqueles que não conhecem, como faziam antes, preferindo claramente os mais próximos. Isso significa que já conseguem diferenciar os conhecidos dos estranhos e já reconhecem a mãe até em fotos, identificam as pessoas pela aparência e recorrem a experiências para interpretar o que veem.
Isso, porém, não explica como os bebês constroem categorias globais. O que faz com que bebês sejam capazes de distinguir seres vivos de coisas inanimadas? Aqui a teoria da evolução nos dá uma dica. Animais e humanos podem significar perigo ou solicitude à criança indefesa. Por isso, é aconselhável observar seres vivos com maior atenção que objetos – e para tanto é necessário primeiro saber diferenciá-los. Nesse caso, provavelmente, são ativados comportamentos de percepção natos. Por isso, recém-nascidos se interessam especialmente por rostos e preferem observá-los a outras coisas com padrões de complexidade semelhante. Esse interesse próprio dos bebês por movimentos em seu campo de visão também os ajuda a perceber logo a diferença entre seres vivos e coisas.
Dessa maneira, já nos primeiros meses de vida eles aprendem que nem tudo consegue se movimentar sozinho.
Vários estudos têm demonstrado que a capacidade de aprendizagem já se inicia no período fetal. A memória, uma das funções cognitivas fundamentais, desenvolve-se, desde antes do nascimento, de forma quantitativa e qualitativa, paralelamente à maturação cerebral. Segundo a psicóloga Flavia Heloísa dos Santos, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Assis, o recém-nascido é predisposto a registrar e recordar importantes sinais biológicos, como expressões faciais e a fala.
Recém-nascidos expostos às mães por apenas algumas horas olham mais profundamente para a face dela que para a de estranhos. A autora cita uma série de pesquisas feitas com bebês, nas quais foi usado o paradigma de resposta do chute de um móbile em movimento, o que demonstra que os sistemas de explicito e implícito da memória de longo prazo se desenvolvem no mesmo espaço de tempo – e não sequencialmente. A memória explicita, de caráter consciente e intencional armazena fatos, nomes e eventos, já a implícita relaciona-se aos hábitos e habilidades adquiridos. O tempo médio de retenção, quando a informação é repetida várias vezes (como no caso do movimento do móbile), se expande com a idade. “Aos 2 meses dura cerca de 2 dias, aos 9 aumenta abrupta e progressivamente: e, com 1 ano e meio alcança 13 semanas”, afirma a neuropsicóloga clínica Mónica Carolina Miranda, doutora em ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil da instituição. Ela lembra que a retenção mnêmica de eventos também mostra padrão específico. Por exemplo: aos 3 meses, o bebé já guarda informações sobre lugares onde ocorreram determinados acontecimentos, aos 6, incorpora algumas informações de ordem temporal dos fatos. As experiências de vida no período neonatal, como as sensações relacionadas à fome, ativam vias neurais específicas com a respectiva associação límbica, modulando o humor e a emoção, ressalta. São esses padrões rudimentares de atividade neural que fornecerão a base do desenvolvimento psicológico da criança, permitindo entender de que forma os bebês acumulam experiências iniciais e como isso afetará seu comportamento mais tarde.
Outro processo cognitivo, de extrema importância, é o desenvolvimento da atenção. O neuropsicólogo Alexander R. Luria (1902- 1977), especialista em psicologia do desenvolvimento, enfatizou que a atenção, principalmente a voluntária, não é de origem biológica – mas um ato social. A concentração da criança nos primeiros meses de vida é mais elementar, involuntária, já que é atraída pelos estímulos que lhe são biologicamente significativos. No final do primeiro ano de vida, quando a mãe ou outro adulto próximo, nomeia um objeto e o aponta, a atenção do bebê é atraída para ele – e isso se dá por meio da comunicação social, palavras ou gestos, estágio fundamental no desenvolvimento infantil, base do comportamento direcional organizado.
“Podemos pensar que o desenvolvimento cognitivo da criança não é, portanto, um processo contínuo e homogêneo: depende da interação entre os múltiplos fatores de crescimento das áreas cerebrais, do grau de mielinização de suas estruturas, de sua evolução pré-natal. bem como das possibilidades que o cérebro imaturo tem de reorganizar seus padrões de respostas e conexões por meio de novas experiências ou mesmo após lesões neurais”. observa a neuropsicóloga Maria Elisa Prado. especializada em desenvolvimento infantil. “Há um refinado sincronismo entre como o cérebro se desenvolve e o que modela seu crescimento e maturação.
É evidente que desde a primeira infância a estrutura e as conexões neurais são esculpidas por numerosas influências ambientais. Como centro do pensamento. das emoções, dos planos de ação e da autorregulação da mente e do corpo, o cérebro passa por um longo processo de crescimento – que de fato dura a vida inteira. Esse desenvolvimento é mais intenso nos primeiros anos (bastante acelerado no decorrer da infância até a fase da adolescência e de adulto jovem). Isso quer dizer que as experiências precoces têm impacto profundo sobre o potencial subsequente de cada pessoa.
AS BARREIRAS DOS SIMBOLOS
Um passo importante no desenvolvimento mental infantil é passar a pensar simbolicamente – algo que envolve, além da memória, habilidades de raciocínio e observação. Dada a complexidade desse processo, as crianças pequenas tendem a “misturar” objetos reais e seus símbolos logo que percebem que uma coisa pode representar outra. “‘A capacidade de criar e operar uma grande variedade de representações é o que mais distingue os humanos de outras criaturas. Essa habilidade nos permite transmitir informações de uma geração a outra, o que toma possível a cultura, e adquirir repertório sobre certos assuntos sem ter experiência direta com elas”, afirma a psicóloga Judy S. Deloache, doutora em desenvolvimento infantil, professora das universidades de Virgínia e llinois. Ela exemplifica: “Temos conhecimento dos dinossauros apesar de jamais termos visto um de verdade; por causa desse papel fundamental da simbolização, talvez nenhum aspecto do desenvolvimento humano seja mais importante do que a compreensão dos símbolos”.
O primeiro tipo de objeto simbólico que os bebês dominam é a figura, embora os intrigue.
O problema deriva à dualidade inerente a todos os objetos simbólicos: eles são reais e, ao mesmo tempo, representações de outra coisa. Para compreendê-los, o observador tem de perceber essa ambiguidade; mentalmente precisa codificar o objeto e estabelecer relação entre ele e o que representa. Judy alerta para o fato de que numa sociedade como a nossa, tão rica em imagens, a maioria das crianças tem acesso diário a álbuns de família e livros ilustrados. Dessas interações, aprendem de que modo as figuras diferem dos objetos e passam a reconhecer o material iconográfico como fontes de contemplação – e não de interação. Não obstante, sua natureza exige vários anos para ser completamente compreendida. O pesquisador John H. Flavell, da Universidade Stanford descobriu, por exemplo, que até os 4 anos muitas delas pensam que virar de cabeça para baixo uma tigela com uma figura de pipoca faz a pipoca cair do recipiente. Ou seja, cabe aos pequenos superar barreiras para desenvolver uma concepção madura sobre a representação, um desafio cada vez maior, em uma cultura tão visual e rica em estímulos quanto a nossa.
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