JOÃO 10: 22-38 – PARTE I

As palavras de Cristo aos judeus
Temos aqui outra discussão no Templo, entre Cristo e os judeus, em que é difícil dizer o que é mais estranho, as palavras de graça que saíam da sua boca, ou as palavras rancorosas que saíam das deles.
I – Temos aqui a ocasião em que esta conversa aconteceu: foi na “Festa da Dedicação, e era inverno”. Esta festa era observada anualmente por todo o povo de Israel, para recordar a dedicação de um novo altar e a purificação do Templo, por Judas Macabeu, depois que o Templo tinha sido profanado, e o altar, contaminado. Temos o relato com detalhes na história dos Macabeus (livro 1, cap. 4), e temos a profecia deste acontecimento, Daniel 8.13,14. Veja mais sobre a festa, 2 Macabeus 1.18. O retorno da sua liberdade era, para eles, como a vida dentre os mortos, e, em comemoração a isto, eles observavam uma festa anual, no vigésimo quinto dia do mês de Quisleu, aproximadamente no início de dezembro, e nos sete dias seguintes. Esta celebração não se limitava a Jerusalém, como as das festas divinas, mas cada um a observava na sua própria cidade ou região, não como um período sagrado (somente uma instituição divina pode santificar um dia), mas como uma época feliz, como os dias de Purim, Ester 9.19. Cristo esperava estar agora em Jerusalém, não em honra à festa, que não exigia sua presença ali, mas para que pudesse aproveitar estes oito dias de folga para bons propósitos.
II – O lugar em que isto aconteceu (v. 23): ”Jesus passeava no templo, no alpendre de Salomão”, assim chamado (Atos 3.11), não porque tivesse sido construído por Salomão, mas porque tinha sido construído no mesmo lugar que aquele que trazia seu nome, no primeiro Templo, e o nome foi conservado para sua maior reputação. Aqui Cristo passeava, para observar os atos do grande Sinédrio, que tinha sede ali (Salmos 82.1). Ele passeava, pronto para atender qualquer pessoa que se dirigisse a Ele. O Senhor estava pronto para abençoar a todos. Ele passeava, aparentemente, sozinho, por algum tempo, como alguém negligenciado. Passeava pensativo, prevendo a destruição do Templo. Aqueles que têm alguma coisa a dizer a Cristo, poderão encontrá-lo no Templo e andar com Ele por ali.
III – A conversa propriamente dita, na qual observe:
1. Uma pergunta importante que os judeus lhe propuseram, v. 24. Eles “rodearam-no”, para provocá-lo. Ele estava esperando uma oportunidade para conceder-lhes um ato de bondade, e eles aproveitaram a oportunidade para fazer-lhe mal. Não é raro nem incomum que más intenções retribuam boas intenções. Ele não podia ficar em paz, não, não no Templo, na casa do seu Pai, sem que o perturbassem. Eles o rodearam, como para prendê-lo. Cercaram-no, como abelhas. Eles o rodearam como se tivessem um desejo conjunto e unânime a ser satisfeito. Vieram como um único homem, fingindo fazer uma procura imparcial e inoportuna da verdade, mas pretendendo um ataque generalizado contra nosso Senhor Jesus, e pareceram expressar a opinião da sua nação, como se fossem a boca de todos os judeus: ”Até quando terás a nossa alma suspensa? Se tu és o Cristo, dize-no-lo abertamente”.
(1) Eles discutem com Jesus, como se Ele os tivesse injustamente mantido em suspense até aqui. Por quanto tempo você pretende roubar nossos corações? Ou, roubar nossas almas. Alguns assim interpretam. Indicando, de maneira vil, que qualquer que fosse o amor e o respeito do povo que Ele obtivesse, não o teria obtido de modo adequado, mas por métodos indiretos, da mesma maneira que Absalão furtava o coração dos homens de Israel, e da mesma maneira como os sedutores enganam os corações dos símplices, para atraírem discípulos após si, Romanos 16.18; Atos 20.30. Mas a maioria dos intérpretes entende como nós: “Quanto tempo nos manterá em suspense? Quanto tempo devemos ficar discutindo quanto a se você é ou não o Cristo, sem conseguir definir a questão?” Veja:
[1] O fato de que, mesmo depois de nosso Senhor Jesus ter provado completamente ser o Cristo, eles ainda tivessem dúvidas a este respeito, era resultado da infidelidade e dos fortes preconceitos deles. Eles voluntariamente hesitavam a respeito disto, quando podiam ter sido facilmente satisfeitos. A luta era entre suas convicções, que lhes diziam que Ele era o Cristo, e sua corrupção, que dizia que Ele não o era, porque Ele não era um Cristo do tipo como eles esperavam. Aqueles que desejam ser céticos podem, se quiserem, controlar o equilíbrio, de modo que nem os argumentos mais convincentes possam superar as mais insignificantes objeções, mas a balança ainda pareça equilibrada.
[2] O fato de que eles atribuíam ao próprio Cristo a culpa pelo fato de que eles ainda duvidassem, como se Ele os fizesse duvidar por alguma incoerência de sua parte, ao passo que, na verdade, eles mesmos eram culpados por duvidar, pois toleravam os preconceitos que já tinham. Assim, este era um exemplo da insolência e presunção deles. Se as palavras da Sabedoria parecem duvidosas, a culpa não está no objeto, mas nos olhos. Elas são completamente claras para aquele que as compreende. Cristo deseja nos fazer crer. Nós é que trazemos a dúvida sobre nossa vida.
(2) Eles o desafiam a dar-lhes uma resposta direta e categórica, quanto a ser ou não o Messias: “Se tu és o Cristo”, como muitos creem, “dize-no-lo abertamente”, e não por parábolas, como: Eu sou a luz do mundo, e o bom Pastor, e outras semelhantes, mas em palavras claras, dizendo que tu és o Cristo, ou, como João Batista, que não é, cap. 1.20. Esta investigação insistente dos judeus era, aparentemente, boa. Eles pareciam estar desejosos de conhecer a verdade, como se estivessem prontos a aceitá-la. Mas, na realidade, era ruim, e proposta com más intenções, pois, se Ele lhes dissesse claramente que era o Cristo, não seria necessário nada mais para considerá-lo odioso perante a inveja e a severidade do governo romano. Todos sabiam que o Messias deveria ser um rei, e, portanto, quem pretendesse ser o Messias seria acusado de traição, e isto era exatamente o que eles desejavam, pois, se Ele lhes dissesse claramente que era o Cristo, eles responderiam imediatamente: “Tu testificas de ti mesmo”, como já tinham dito, cap. 8.13.
2. A resposta de Cristo a esta pergunta, em que:
(1) Ele se justifica, dizendo não ser, de nenhuma maneira, um auxiliar à infidelidade e ao ceticismo deles, lembrando-os:
[1] Daquilo que Ele tinha dito: “Já vo-lo tenho dito”. Ele lhes tinha dito que era o Filho de Deus, o Filho do homem, que tinha a vida em si, que tinha autoridade para realizar julgamentos etc. E não será este o Cristo, então? Ele lhes tinha dito estas coisas, e eles não creram. Por que, então, Ele deveria dizer-lhes isto outra vez, simplesmente para satisfazer sua curiosidade? “Não o credes”. Eles fingiam que apenas duvidavam, mas Cristo lhes diz que eles não criam. O ceticismo na religião não é melhor do que a infidelidade direta. Não nos cabe ensinar a Deus a maneira como Ele deve nos ensinar, nem determinar com que clareza Ele deve nos contar sua vontade, mas devemos ser gratos pela revelação divina, da maneira como a recebemos. Se não cremos assim, tampouco seríamos persuadidos, se ela estivesse adaptada ao nosso gosto.
[2] Ele os lembra das suas obras, do exemplo da sua vida, que não somente era perfeitamente pura, mas altamente beneficente e em conformidade com sua doutrina, e, em especial, dos seus milagres, que Ele realizava para a confirmação da sua doutrina. Era certo que ninguém poderia realizar estes milagres, a menos que Deus estivesse com ele, e Deus não estaria com Ele para confirmar algo falso.
(2) Ele os condena pela descrença obstinada, apesar dos mais claros e poderosos argumentos usados para convencê-los: “Não o credes”, e outra vez: “Não credes”. “Vocês ainda são o que sempre foram, obstinados na sua descrença”. Mas a razão que Ele oferece é muito surpreendente: ‘”Vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas’. Vós não credes em mim, porque não pertenceis a mim”.
[1] “Vocês não estão dispostos a ser meus seguidores, não têm uma personalidade propensa a ser ensinada, não têm inclinação para receber a doutrina e a lei do Messias. Vocês não desejam se agregar às minhas ovelhas, não desejam vir e ver, vir e ouvir minha voz”. As antipatias enraizadas ao Evangelho de Cristo são os laços da iniquidade e da infidelidade.
[2] “Vocês não estão destinados a ser meus seguidores; vocês não estão entre aqueles que me foram dados pelo meu Pai, para serem trazidos à graça e à glória. Vocês não são do número dos eleitos, e sua descrença, se vocês persistirem nela, será uma evidência garantida de que vocês realmente não o são”. Observe que aqueles a quem o Senhor Deus nunca dá a graça da fé, nunca foram destinados ao céu e à felicidade. Aquilo que Salomão disse a respeito da imoralidade é também verdadeiro a respeito da infidelidade: “Cova profunda é”, e aquele contra quem o Senhor se irar cairá nela, Provérbios 22.14. O fato de não estar incluído entre os eleitos não é a causa propriamente dita da infidelidade, mas meramente a causa acidental. Porém, a fé é o dom de Deus, e o resultado da predestinação.
(3) Ele aproveita esta oportunidade para descrever tanto a disposição graciosa quanto a feliz condição daqueles que são suas ovelhas, pois elas existem, embora não sejam eles.
[1] Para convencê-los de que eles não eram suas ovelhas, Ele lhes conta quais eram as características das suas ovelhas. Em primeiro lugar, elas ouvem sua voz (v. 27), pois sabem que é a dele (v.4), e Ele se responsabilizou de que elas ouvissem sua voz, v. 16. Elas a distinguem: “Esta é a voz do meu amado”, Cantares 2.8. Elas se alegram com ela, e ficam completamente à vontade quando se sentam aos seus pés para ouvir sua palavra. Elas agem de acordo com ela, e fazem da sua vontade sua lei. Cristo não considerará suas ovelhas aqueles que são surdos ao seu chamado, surdos ao seu encanto, Salmos 58.5. Em segundo lugar, elas o seguem. Elas se submetem à sua orientação, com uma obediência voluntária a todas as suas ordens, é uma conformidade satisfeita com seu Espírito e padrão. A ordem sempre tinha sido: “Vinde após mim”. Nós devemos ver Jesus como nosso líder e capitão, e seguir seus passos, e andar como Ele andava, seguir as prescrições da sua palavra, as indicações da sua providência e as orientações do seu Espírito, seguir o Cordeiro (o líder do rebanho), onde quer que Ele vá. Nós estaremos ouvindo sua voz em vão, se não o seguirmos.
[2] Para convencê-los de que o fato de não pertencerem ao rebanho de Cristo era a maior infelicidade e desgraça deles, Ele aqui descreve a condição abençoada daqueles que pertencem ao seu rebanho, o que poderia servir tanto para o sustento e consolo dos seus pobres seguidores desprezados quanto para impedi-los de invejar o poder e a grandeza daqueles que não eram suas ovelhas.
Em primeiro lugar, nosso Senhor Jesus conhece suas ovelhas: elas “ouvem a minha voz, e eu conheço-as”. Ele as distingue de outras (2 Timóteo 2.19), tem uma consideração especial com cada uma, individualmente (Salmos 34.6). Ele conhece suas necessidades e seus desejos, conhece suas almas na adversidade, sabe onde encontrá-las e o que fazer por elas. Ele conhece as outras à distância, mas estas, Ele conhece intimamente.
Em segundo lugar, Ele proveu uma felicidade para elas, adequada a elas: “E dou-lhes a vida eterna”, v. 28.
1. O bem que elas recebem é precioso e valioso. É a vida, a vida eterna. O homem tem uma alma viva. Portanto, a felicidade que lhe é fornecida é a vida, adequada à sua natureza. O homem tem uma alma imortal. Portanto, a felicidade que lhe é fornecida é a vida eterna, uma vida que durará para todo o sempre. A vida eterna é a felicidade e o principal bem de uma alma imortal.
2. A entrega é gratuita: “Dou-lhes”. A vida eterna não é objeto de barganha, nem vendida com uma compensação valiosa, mas dada, pela livre graça de Jesus Cristo. O doador tem a autoridade para dá-la. Aquele que é a fonte da vida, e o Pai da eternidade, autorizou Cristo a dar a vida eterna, cap. 17.2. Não é: “Eu desejo dá-la”, mas: “Eu a dou”. É um dom concedido no presente. Ele dá a certeza dela, sua promessa e seu penhor; as primícias e antecipações daquela vida espiritual que é a vida eterna, que entendemos que iniciamos aqui, o céu na forma de se mente, no botão, no estado embrionário.
Em terceiro lugar, Ele se responsabilizou pela segurança das ovelhas e pela preservação desta felicidade.
a. Elas serão salvas da perdição eterna. “Nunca hão de perecer”, são as palavras. Assim como existe uma vida eterna, também existe uma destruição eterna. A alma, não aniquilada, mas destruída. Sua existência continua, mas seu consolo e sua felicidade estão irremediavelmente perdidos. Todos os crentes são salvos disto. A despeito das tribulações pelas quais venham a passar nesta terra, eles não entrarão em condenação. Um homem nunca está destruído até que esteja no inferno, e as ovelhas não chegariam a isto. Os pastores que têm grandes rebanhos frequentemente perdem algumas das ovelhas e elas acabam perecendo, mas Cristo se responsabilizou de que nenhuma das suas ovelhas pereça, nem uma sequer.
b. Elas não podem ser afastadas da sua felicidade eterna. Ela está reservada, mas aquele que a dá a elas irá preservá-las para tal felicidade.
(a) Seu próprio poder se responsabiliza por elas: “Ninguém as arrebatará das minhas mãos”. Aqui se imagina uma forte disputa a respeito destas ovelhas. O Pastor é tão cuidadoso com o bem-estar delas, que Ele as conserva, não somente no seu rebanho, e sob seus olhos, mas nas suas mãos, interessadas no seu amor especial e colocadas sob sua proteção especial (“Todos os teus santos estão na tua mão”, Deuteronômio 33.3). Mas seus inimigos são tão ousados, que tentam arrancar das suas mãos aquelas que lhe pertencem, aquelas com quem Ele se preocupa. Porém, eles não conseguem fazer isto, e não o farão. Observe que os que estão nas mãos do Senhor Jesus estão seguros. Os santos são preservados em Cristo Jesus, e sua salvação não está sob seus próprios cuidados, mas sob os cuidados de um Mediador. Os fariseus e os príncipes faziam tudo o que podiam para fazer os discípulos de Cristo temerosos de segui-lo, censurando-os e ameaçando-os, mas Cristo diz que eles não vencerão.
(b) O poder do seu Pai está, da mesma maneira, engajado na preservação das ovelhas, v. 29. Cristo agora aparecia em fraqueza, e, para que sua segurança não pudesse ser considerada insuficiente, Ele apresenta seu Pai, como uma segurança adicional. Observe:
[a] O poder do Pai: “Meu Pai… é maior do que todos”, maior do que todos os outros amigos da igreja, todos os outros pastores, magistrados ou ministros, e capaz de fazer pelas ovelhas aquilo que eles não podem. Estes pastores descansam e dormem, e será fácil arrebatar as ovelhas das suas mãos, mas Ele guarda seu rebanho dia e noite. Ele é maior do que todos os inimigos da igreja, toda a oposição feita aos interesses dela, e capaz de proteger os seus contra todos os insultos dos inimigos. Ele é maior do que todas as forças combinadas, do inferno e da terra . Ele é maior, em sabedoria, do que a antiga serpente, embora notável pela sutileza; maior, em poder, do que o grande dragão vermelho, embora seu nome seja Legião, e seu título, principados e potestades. O Diabo e seus anjos fizeram várias investidas e tentativas de assumir uma soberania, mas nunca prevaleceram, Apocalipse 12.7,8. “O Senhor nas alturas é mais poderoso” (Salmos 93.4).
[b] O interesse do Pai nas ovelhas, motivo pelo qual este poder está engajado por elas: “Foi meu Pai ‘que mas deu’, e Ele se interessa na honra de sustentar seu presente”. Elas foram dadas ao Filho em confiança, para que Ele cuidasse delas, e, portanto, Deus ainda irá cuidar delas. Todo o poder divino está engajado no cumprimento de todos os conselhos divinos.
[c] A segurança dos santos infere-se destes dois. Se isto é assim, então ninguém (seja homem ou demônio) é capaz de arrancá-las da mão do Pai, nem capaz de privá-las da graça que possuem, nem bloquear a glória que está destinada a elas, nem é capaz de tirá-las da proteção de Deus, nem de colocá-las sob seu próprio poder. Cristo tinha sentido pessoalmente o poder do seu Pai, sustentando-o e fortalecendo-o, e por isto coloca também todos os seus seguidores na mão do seu Pai. Aquele que assegurou a glória do Redentor irá assegurar a glória dos redimidos. Para garantir ainda mais a segurança, para que as ovelhas de Cristo possam ter um consolo ainda mais forte, Ele declara sua união com Deus, o Pai: “Eu e o Pai somos um”, e nos encarregamos, juntamente e separadamente, da proteção dos santos e da sua perfeição”. Isto indica que havia mais do que harmonia, consentimento e bom entendimento entre o Pai e o Filho na obra da redenção do homem. Todo homem bom é tão unido a Deus, a ponto de estar de acordo com Ele. Portanto, o fato de serem um só em essência, e iguais em poder e glória, deve ser o significado da unicidade da natureza do Pai e do Filho. Os patriarcas da igreja enfatizaram isto, tanto contra os sabelianos, para provar a distinção e a pluralidade das pessoas, que o Pai e o Filho são duas pessoas, como contra os arianos, para provar a unidade da natureza, que o Pai e o Filho são um só. Se nós nos calássemos a respeito do profundo significado destas palavras, até mesmo as pedras que os judeus pegaram para o apedrejar iriam falar abertamente, pois os judeus consideravam que Ele se fazia Deus (v. 33), e Ele não negou isto. Ele prova que ninguém poderia arrancá-las das suas mãos, porque não poderia arrancá-las da mão do Pai, o que não teria sido um argumento conclusivo, se o Filho não tivesse o mesmo poder todo-poderoso com o Pai, e, consequentemente, não fosse um só com Ele, em essência e operação.
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