ESTRANHOS CONVIDADOS CONHECIDOS
As cenas em preto e branco, em clima intimista, revelam a presença de aspectos psíquicos dos personagens e conflitos que entram como “penetras” na comemoração.
Apenas quatro ambientes: sala, cozinha, banheiro e uma pequena área externa. É por esses espaços que circulam os personagens do longa-metragem A festa, dirigido por Sally Potter. O clima teatral e intimista do filme em preto e branco, passado na Inglaterra, comporta desde as primeiras cenas uma leve tensão e sugere a quem assiste a impressão de que os personagens poderiam estar em cima de um palco, a poucos metros de seu rosto. A primeira cena já convida o espectador a se tornar expectador, quando Janet, a protagonista, transtornada, aponta uma arma diretamente para a câmera que representa um recém-chegado (neste momento ainda desconhecido). Mas, para entender o que ocorreu, é preciso acompanhar o que veio antes. Na cozinha, Janet, a dona da casa, prepara receitas para recepcionar seus convidados. A proposta é comemorar sua nomeação para o cargo de ministra da saúde. Na sala ao lado, porém, seu marido, Bill, um intelectual que abriu mão de várias conquistas na carreira acadêmica para apoiar a mulher (como será enfatizado ao longo da trama), permanece apático, sentado, com olhar perdido, levantando-se de sua cadeira apenas para trocar o disco que roda num antigo aparelho de som.
Como seria de se esperar, cada um dos convidados para a pequena reunião tem seus próprios segredos, que alimentam sub tramas do filme e que aos poucos vêm à tona por vezes com toques de sátira, humor e sadismo: uma doença termina!, impermanência, ciúmes, inveja, raiva, medo de assumir responsabilidades, histórias antigas de afetos silenciados, mágoas não resolvidas e memórias distorcidas. Como pano de fundo, o filme apresenta a alusão a ideais e atuação política, mas coloca ênfase nas relações e conflitos particulares (não por acaso é uma festa para poucos). Como acontece na vida real, é a esfera da intimidade que determina movimentos mais amplos, influenciando encontros e movimentações sociais.
Ao passo que a trama se desenrola, a forma contida que impera nas interações cede lugar à ação mais intensa e à catarse. Como assinala Sigmund Freud, em parceria com Josef Breuer, em Estudos sobre a histeria (1893-1895), no processo catártico o sujeito consegue, por meio da fala, exteriorizar afetos patogênicos, que transitam entre a emoção e a razão. Esta relação remete a uma série de outros dualismos, como passividade e atividade; natureza e cultura; corpo e consciência; subjetividade e objetividade; valores e fatos; impulsividade e controle.
Do lado da razão está o direito de expressão diretamente implicado no universo público, nas decisões mais importantes e relevantes em relação à produtividade e ao reconhecimento público. Do lado das emoções, parece prevalecer o espaço mais marginal, reservado ao afeto, ao desejo e também ao conflito. É nessa área que o filme vislumbra a impossibilidade de contenção, os segredos podem vir à tona a qualquer momento, levando a situações caóticas, descontroladas. Por trás das aproximações contidas, “arrumadas”, ”óbvias”, há a pulsão sexual não restrita a questões estritamente sexuais, mas ampliada para outros campos da vida, incluindo agressividade e instinto de preservação.
Em A festa, aspectos psíquicos nem sempre reconhecidos entram disfarçados ou claramente como “penetras” e tomam contam do evento: dançam entre os personagens e convidam quem assiste a participar. Mesmo quem está ausente se faz presente.
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