CRENÇA E PERSONALIDADE
Cientistas acreditam que a crença não nos torna necessariamente mais empenhados em sermos pessoas melhores e mais conscientes, mas a personalidade influencia a relação com o divino. Genes e experiências concorreriam não apenas para que possamos ou não ter fé, mas também para determinar como ela se manifesta.
Uma pergunta sempre permeia os debates sobre religião: afinal Deus existe? Não é fácil responder. Mas podemos indagar algo mais palpável: por que alguns de nós acreditamos que sim e outros não? Teólogos e ministros argumentam que a fé é uma questão de escolha estritamente pessoal. Será mesmo?
Obviamente nem todo mundo é religioso. Muitos, aliás, sequer mantêm fidelidade a um único sistema de crenças. Aproximadamente metade dos adultos americanos, por exemplo, mudou de fé pelo menos uma vez na vida – a maioria antes dos 24 anos, segundo o Fórum Pew sobre Religião e Vida Pública {PFRPL, na sigla em inglês). Embora nossas crenças possam se transformar, tendemos a fixá-las durante a idade adulta – seja acreditando, seja desacreditando que Deus existe.
E a maneira como somos criados pesa sobre esse desfecho. É comum que pais, colegas e outras figuras confiáveis ensinem rituais e práticas às crianças, apresentando aos pequenos seus pontos de vista. Essas influências, porém, não raro, perdem a força ao longo da vida por razões como ausência de motivação social e baixo interesse em continuar a conviver com a família. Crises pessoais e novos relacionamentos também motivam mudanças, o que pode levar a conversões ou ao abandono da fé.
Agora, cientistas descobriram que certos tipos de personalidade tendem a “combinar” com determinadas doutrinas, segundo pesquisas recentes que traçam correlação entre crenças, pensamentos e comportamentos ligados à fé. Os pesquisadores acreditam que, além de contribuir com dimensões fundamentais do caráter, fatores genéticos podem também estar relacionados a sentimentos religiosos. Análises feitas por psicólogos com gêmeos idênticos reforçam a hipótese. Esses estudos começam a dar pistas sobre a tendência em direção à fé de alguns e à rejeição de noções sobrenaturais de outros.
A busca de uma base biológica da religião tem ganhado força conforme a tecnologia para estudar nossa com posição interna avança. Atualmente, vários experimentos com tomografia cerebral procuram identificar regiões cerebrais relacionadas à experiência religiosa, em busca de indícios de uma espécie de “módulo divino, ou seja, uma estrutura neurológica que favoreça a fé. Em 2004, o livro O gene de Deus (Mercuryo, 2005), do geneticista Dean Hamer, propôs que um gene particular, o VMAT2, estaria relacionado à religiosidade. No entanto, os dados que sustentam essa informação não foram publicados em periódicos científicos. Além disso, nenhum pesquisador replicou os resultados.
Acreditamos que de fato os genes produzam proteínas que influenciam formas de agir (isso sem falar em crenças). Compreender esse processo, porém, é uma das tarefas mais difíceis da biologia e nos leva ao limite do conhecimento cientifico. Por enquanto, está claro que os genes não são um modelo, mas interagem com influências ambientais em muitos aspectos complexos, variando de maneira inesperada.
No entanto, podemos examinar a questão de acordo com aspectos da personalidade. Genes predispõem uma pessoa a características particulares, que podem se manifestar como certos comportamentos.
Há quase um século, nas décadas de 20 e 30, um grupo de psicólogos pioneiros começou a estudar e tentar codificar a personalidade, inspirado por sistemas de classificação da biologia. Os pesquisadores fizeram uma varredura nos dicionários em busca de termos que apreendessem algum aspecto do caráter e produziram uma enorme lista. Na época, muitos debateram sobre quais – e quantos – termos seriam necessários para abarcar as dimensões essenciais da personalidade.
Mais recentemente, muitos psicólogos americanos se voltaram para os cinco fatores· (The big five), termo cunhado em 1981 pelo psicólogo Lewis Goldberg, da Universidade de Oregon, para descrever a personalidade. Segundo o modelo, o modo como somos pode ser organizado em cinco dimensões principais: extroversão: neuroticismo: afabilidade: consciência e abertura. Diversas pesquisas mostram que as cinco características analisadas pelo método são independentes entre si e se mantém estáveis durante a maior parte da vida. Em um estudo publicado em 1987, os psicólogos Robert R. McCrae e Paul T. Costa, dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), investigaram esses cinco fatores por meio de questionários, auto relatos e avaliação de pares de milhares de pessoas.
Atualmente, centros de pesquisas em diversas partes do mundo contribuem para o predomínio desse padrão nos estudos psicológicos da personalidade.
SINAL DE EQUILÍBRIO
Não é simples encontrar relações entre crença religiosa e qualquer outra faceta da vida de uma pessoa. A investigação deve ser vasta. Há alguns anos, publiquei uma análise aprofundada de 70 estudos, com mais de 21 mil participantes, sobre religião e personalidade. Essas pesquisas referem -se a diferentes décadas, idades e doutrinas (com maior predominância do cristianismo) e revelam que pessoas religiosas diferem das que não são (ou demonstram pouco essa característica) em duas dimensões da personalidade: afabilidade e consciência.
Aproximadamente 60 % dos crentes contra 40% dos não religiosos evidenciaram esses dois aspectos. O estudo considerou pesquisas de 1970 até o presente (além de um experimento feito na década de 40), com pessoas de ambos os sexos, desde a adolescência até a idade adulta. No entanto, é importante considerar que a correlação foi traçada em uma análise após o estudo. A tendência foi observada em pessoas de algumas grandes religiões, como protestantes, católicos, judeus e muçulmanos. Vários experimentos psicológicos reforçam a ideia de que os crentes tendem a apresentar atitudes de cooperação, tanto em pesquisas de laboratório como em projetos voluntários da vida real. Além disso, não raro, apoiam estilos de vida saudáveis que refletem busca de autocontrole, baixo consumo de álcool, drogas e cigarros. Embora os dados sejam modestos, os fatos são bastante consistentes.
Mas será que, em vez de se tornarem religiosas porque são mais propensas, essas pessoas na verdade não foram ensinadas pela religião a serem mais afáveis e conscientes? Para responderem a essa questão, os pesquisadores examinaram dados do Estudo Longitudinal de Terman, um projeto que investigou um grupo de pessoas com QI alto durante toda a vida. No início de 1920, pais e professores avaliaram vários aspectos da personalidade dos participantes de 12 a 18 anos. O psicólogo Michael McCullough e seus colegas da Universidade de Miami descobriram que, de 492 voluntários analisados, as crianças e os adolescentes classificados como “mais agradáveis e conscientes”, demonstraram maior ligação com a religião 19 anos mais tarde, em comparação aos participantes que receberam baixa pontuação nessa medida quando eram crianças. Em outra pesquisa publicada dois anos mais tarde, também com dados do estudo de Terman, cientistas observaram mudanças em relação à religiosidade ao longo de 50 anos. Os voluntários com maior afabilidade no início da vida adulta demonstraram maior propensão a permanecerem fiéis (ou até mesmo tornarem-se mais religiosos) do que aqueles menos agradáveis na juventude.
Os resultados estão alinhados com a teoria da personalidade. Traços individuais já estão presentes na primeira infância e mais tarde são moldados fortemente por atitudes sociais, valores e identidades. Acreditamos, portanto, que a religiosidade não torna as pessoas mais agradáveis e conscientes, mas sim que a personalidade influencia a crença.
RELIGIOSO OU ESPIRITUALISTA?
Se as pesquisas confirmarem esse padrão, principalmente nas culturas e religiões orientais, teremos evidências psicológicas de algumas funções universais da religião. Não é de hoje que os cientistas sugerem que a coesão social que ela proporciona pode ter desempenhado um papel evolutivo importante, permitindo que grupos maiores de pessoas se unissem. Agora, descobertas recentes apoiam essa ideia. A junção de afabilidade e consciência denota uma tendência à ordem e harmonia social em outras palavras, estabilidade.
Podemos acrescentar ainda nuances ao estilo da personalidade crente. Na meta- análise foram revisados estudos relacionados à espiritualidade que englobam formas mais modernas de fé, mas não necessariamente ligadas a instituições religiosas ou fundamentalistas. Em torno de 62% dos participantes conscientes, preocupados com o bem-estar alheio e com forte abertura a experiências, mostraram-se espiritualistas. E aproximadamente o mesmo número de voluntários com as duas primeiras características de personalidade bem desenvolvidas – mas com pouco interesse no novo – tendia a se engajar em grupos religiosos fundamentalistas. Acreditamos que a capacidade de abertura à novidade ajude a moldar o tipo de fé.
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