O BOM E VELHO CAFEZINHO
Além dos efeitos estimulantes, a bebida mais popular do mundo é rica em nutrientes e pode ajudar a combater doenças.

Desde o século VIII a. C., quando um pastor árabe descobriu suas propriedades estimulantes, o café se tornou uma bebida popular, de consumo diário, e em vários países, como o Brasil, está muito arraigado aos hábitos sociais. No mundo todo são consumidas mais de 120 mil toneladas de café por ano. E embora seja notório seu efeito de aumentar o alerta e de reduzir a fadiga, a ação de seu componente mais importante – a cafeína – já foi e continua sendo muito estudada pela ciência.
A cafeína promove alterações no estado de alerta, memória, aprendizado, orientação espacial e variáveis psicomotoras, como tempo de reação e de locomoção. Seus efeitos, entretanto, dependem da dose e do tipo de tarefa estudada. Alcaloide pertencente ao grupo das metil xantinas ela parece atuar no sistema de ativação reticular ascendente, localizado no tronco cerebral, por isso sua evidente influência nos processos atencionais. Sabe-se que a atenção pode modificar a atividade neural de áreas corticais específicas que participam na análise perceptiva. Assim, a atenção – ou melhor, a ampliação dela – é capaz de aumentar a resposta dos neurônios a determinados estímulos.
Capaz de combater a fadiga e a sonolência, a cafeína é muito usada por médicos plantonistas, motoristas de caminhão e outros profissionais que precisam estar bem acordados durante a noite. Alguns autores concordam que, apesar de não melhorar diretamente o aprendizado, seu efeito direto na atenção e na atividade motora espontânea acaba contribuindo para ganhos significativos de desempenho, o que é multo difícil de distinguir do aprendizado em si.
Em relação à memória, não há evidências de melhora na capacidade de recordação; por outro lado, as respostas tendem a ser mais rápidas e precisas. Estudos realizados em 2010 pelo farmacologista Alain Patat, então do laboratório Synthélabo Recherche, em Bagneux, França, indicam também efeitos benéficos no desempenho psicomotor e na atividade motora espontânea. Seus experimentos mostraram diminuição do tempo de reação e aumento na velocidade de digitação após o consumo de cafeína. Outras evidências sugerem que os efeitos facilitadores desse alcaloide ocorrem tanto antes, quanto depois do surgimento da fadiga e do declínio do desempenho.
Apesar de ser a substância psicoativa mais consumida do mundo, a cafeína não é considerada uma droga de abuso. Segundo a Organização Mundial da Saúde, “não existem evidências de que o uso da cafeína possa levar às consequências físicas e sociais associadas às verdadeiras drogas de abuso· Nas últimas décadas, diversos estudos mostraram que as alterações cognitivas e psicomotoras causadas pela cafeína não levam ao desenvolvimento de dependência química.
É possível observar, entretanto, algum grau de tolerância nos casos de consumo regular, mas não se trata da tolerância típica, em que os usuários aumentam a dose da droga de forma exponencial, como ocorre com a cocaína ou as anfetaminas. O fenômeno parece estar associado a um incremento na atividade do receptor de adenosina. Por outro lado, vários estudos mostram que a cafeína não é capaz de sensibilizar o sistema de recompensa do cérebro.
O consumo de cafeína se caracteriza, de forma geral, por padrões de consumo relativamente fixos. As pessoas evitam doses que possam induzir ansiedade ou privá-las de sono além do desejado. Isto sugere que a ingestão tende a se restringir a limites individuais muito variáveis de tolerância e sensibilidade.
A cessação do uso de cafeína não parece provocar um quadro completo de abstinência. Em contrapartida, o organismo costuma apresentar respostas fisiológicas para se ajustar à falta da substância. Os sintomas são brandos e incluem sonolência, dificuldade de concentração, cansaço e dores de cabeça que desaparecem em poucos dias. A sonolência e o cansaço podem ser explicado pelo acúmulo do neuromodulador adenosina, que deixa de competir com a cafeína pelos mesmos receptores e pode novamente exercer efeito inibitório sobre a atividade neuronal. As dores de cabeça também são resultado da ligação, agora em maior quantidade, da adenosina ao seu receptor, já que ela produz vasodilatação no sistema nervoso central. Além de mais sangue chegar ao cérebro, ele chega com muito mais pressão
CONTRA O PARKINSON
A cafeína já foi sugerida como droga coadjuvante da L-dopa no tratamento da doença de Parkinson, com melhora de sintomas motores, como o tremor dos membros superiores. O distúrbio é resultado da degeneração de neurônios dopaminérgicos em regiões cerebrais conhecidas como substância negra e estriado. A cafeína evita a depleção da dopamina, principalmente no estriado.
Diversos estudos, entre eles os do farmacologista Alberto Ascherio, da Universidade Harvard, sugerem que a cafeína poderia reduzir o risco de Parkinson. Levantamentos epidemiológicos verificaram que a maior ingestão de café durante a vida está associada a menor incidência da doença. Essa relação pode ser explicada pela inibição causada pela cafeína nos receptores de adenosina do tipo A2A.
Alguns pesquisadores acreditam que esse efeito protetor abre uma nova possibilidade de tratamento da doença. Na verdade, drogas desse tipo já estão em teste e poderão não apenas aliviar os sintomas do Parkinson, mas quem sabe retardar o progresso da doença
Nos últ1mos anos, vem crescendo também o interesse na possibilidade de o consumo de café proteger contra o Alzheimer. Em 2002, um estudo retrospectivo realizado por pesquisadores da Universidade de Lisboa demonstrou que a ingestão de cafeína nos 20 anos precedentes era inversamente proporcional ao risco de desenvolver a doença. No mesmo ano, um estudo prospectivo realizado na Universidade de Ottawa revelou resultados semelhantes. Ainda assim, mais pesquisas são necessárias para a completar a elucidação do assunto.
O café parece exercer efeito benéfico também nas pessoas com diabetes tipo 2. Estudo recente, realizado na Holanda, com mais de 17 mil adultos observou que as pessoas que ingeriam no mínimo sete xícaras de café por dia tinham metade da probabilidade de desenvolver o problema. O resultado vem sendo confirmado por diversas pesquisas realizadas desde 2006 em diferentes populações e que mostram correlação parecida.
A relação da cafeína com as doenças cardiovasculares é outra área imensamente estudada. Algumas pesquisas investigam a relação entre consumo excessivo de café e as doenças do coração, mas falham, porém, no controle de outros fatores importantes como dieta e tabagismo. Segundo o lnternational Food lnformation Council Foundation (lfic), a ingestão de cafeína não contribui para o aumento do risco de doença coronária, diferentemente da dieta rica em gorduras e do tabagismo; em compensação um leve aumento de HDL, conhecido como colesterol bom, é esperado naqueles que têm o hábito de tomar café.
A associação do principal componente do café com a hipertensão também vem sendo sugerida há tempos. O que muitos estudos mostram, entretanto, é um pequeno aumento transitório da pressão, menor que o provocado pelas atividades normais diárias. A cafeína não causa hipertensão crônica ou incremento persistente da pressão arterial. Alguns indivíduos sensíveis a essa substância, porém, podem experimentar um ligeiro aumento de pressão que geralmente não dura mais que algumas horas,
BOM PARA OS OSSOS
Diversas pesquisas examinaram também a relação entre cafeína e osteoporose, mostrando que não há relação entre o consumo desta substância e fratura de quadril, exceto em mulheres que ingeriam mais de 450 mg de cafeína e menos de 800 mg de cálcio por dia.
Além do Parkinson, a relação benéfica entre café e outras doenças, vem sendo muito estudada atualmente. Pesquisa realizada entre 1980 e 1990 na Universidade de Boston, com mais de 200 mil pessoas, mostrou que quatro xícaras de café por dia podem ajudar a prevenir depressão e suicídio. Nesse caso, o princípio ativo não é a cafeína, mas um grupo de antioxidantes resultantes do processo de torrefação, os chamados ácidos clorogênicos.
Assim como as drogas usadas no tratamento do alcoolismo, essas substâncias também atuam como antagonistas opioides e poderiam ajudar as pessoas a se livrar desta dependência. Vale lembrar, entretanto, que esses estudos se encontram em fase inicial, sendo necessárias mais pesquisas nessa área.
A tecnologia atualmente disponível permitiu descobrir a variedade de substâncias e princípios ativos presentes nessa bebida. Além da cafeína e dos ácidos clorogênicos, o café, ao contrário do que se imaginava recentemente, contém muitos minerais, como potássio, magnésio, cálcio, sódio e ferro. Entre os aminoácidos estão a alanina, arginina, asparagina, cisteína, ácido glutâmico, glicina, histidina, isoleucina, lisina, metionina e muitos outros. Triglicerídeos e ácido graxos livres constituem os lipídeos, e entre os açúcares, estão a sucralose, glicose, frutose, arabinose, galactose, maltose e os polissacarídeos. Vale lembrar, contudo, que a maioria desses nutrientes pode se degradar se a torrefação for excessiva, exceto a cafeína, que é termoestável.
Como se pode notar essa bebida tão popular no Brasil e malvista em certas épocas e culturas é uma boa fonte nutricional e pode dar um empurrãozinho mental na hora em que mais precisamos. Não há motivos convincentes, portanto, para dispensarmos aquele bom e velho cafezinho.

DESEMPENHO NO ESPORTE
Embora não haja evidências conclusivas, muitos atletas acreditam que a cafeína melhora o desempenho e aumenta a resistência em atividades que requerem intenso gasto energético. Para alguns pesquisadores, porém, trata-se apenas de uma alteração da percepção do esforço e da disponibilidade física.
Seja como for, uma pesquisa mostrou que corredores que tomaram 300 mg de cafeína (o equivalente a duas xícaras de café) uma hora antes do início do exercício correram em média 15 minutos mais do que os que fizeram o mesmo sem cafeína nas veias. Em outro estudo, ciclistas que consumiram 2,5 mg de cafeína por quilo de peso corporal tiveram rendimento 29% maior que o grupo controle.
Até 2004 a cafeína fazia parte da lista de substancias proibidas pelo Comitê Olímpico Internacional. Mais de 12 µg/ml de urina – que podem ser facilmente atingidos com a ingestão de cinco xícaras de café – configuravam doping e eliminação da competição.


RECOMPENSA E RESISTÊNCIA À FADIGA
Produzida em regiões específicas do cérebro, como a área tegmental ventral e a substância negra, a dopamina é o neurotransmissor de excelência do chamado sistema de recompensa. Quando fazemos coisas que nos dão prazer (alimentação, sexo e drogas, por exemplo), ocorre: uma intensa liberação de dopamina numa estrutura conhecida como núcleo accumbens, o que nos motiva a experimentar a sensação outras vezes. Essa estrutura está intimamente relacionada aos mecanismos de dependência e ao abuso de drogas como a cocaína e a heroína.
Alguns estudos já mostraram que, apesar de a cafeína elevar a concentração de dopamina na circulação, ela não interfere no núcleo accumbens. Evidências sugerem, entretanto, que seus efeitos estimulantes dependem de uma transmissão dopaminérgica intacta, particularmente de circuitos mediados por receptores do tipo D2, mas sem afetar o sistema de recompensa; por essa razão a cafeína não apresenta potencial de abuso.
A transmissão noradrenérgica também é afetada pela cafeína e, nesse caso, o efeito é mais duradouro. Essa substância estimula a hipófise a liberar hormônios cuja ação culmina na secreção de adrenalina pelas glândulas adrenais. Resultado: taquicardia, dilatação da pupila, aumento da pressão arterial, dilatação das vias respiratórias, contração muscular, constrição de vasos sanguíneos na região abdominal e maior secreção de lipase, enzima que mobiliza os depósitos de gordura para utilizá-los como fonte de energia – isso reduz o uso de glicogênio muscular, o que aumenta a resistência à fadiga.
CAMILA FERREIRA-VORKAPIK – Bióloga, professora de educação física e pesquisadora do Laboratório de Mapeamento Cerebral e Integração Sensório-motora do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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