SUTIL ARTE DE ENGANAR
Milhares de mensagens para orientar nossas escolhas nos bombardeiam diariamente. Muitas vezes somos cúmplices involuntários dos artistas da persuasão.
Há os que falam em persuasão e os que, de forma explícita, falam em manipulação linguística ou, simplesmente, engano. O fato é que há milhares de maneiras de não dizer a verdade sem mentir. Na sociedade da comunicação, as técnicas midiáticas assumem importância cada vez maior. “Se você não comprar este livro, seu concorrente será o primeiro a fazê-lo” é a clássica frase com que os editores americanos promovem os textos de “psicologia da persuasão”. Mas o objetivo pode ser também alertar o leitor contra os truques empregados pelo persuasor, como no livro The age of propaganda, publicado nos Estados Unidos em 1991, em que os psicólogos Anthony Pratkanis e Elliot Aronson denunciavam a inundação de mensagens manipuladoras que assediam os americanos todos os dias. Mencionemos também Com Sabor de Chocolate, de Matteo Rampin, irônico ensaio escrito com o objetivo de evidenciar – e assim, pelo menos teoricamente, neutralizar – os mecanismos que desencadeiam o condicionamento. O título é sugestivo: um alimento “sabor chocolate” costuma conter pouco chocolate, pois caso contrário isso seria declarado explicitamente. Mas é um detalhe que tendemos a ignorar para grande alegria dos fabricantes, concentramo-nos no conceito de maior apelo. Segundo Rampin, nosso cérebro não reproduz fielmente a realidade exterior, mas a constrói segundo mecanismos que foram selecionados ao longo da evolução porque nos orientam no mundo. Para evitar a análise detalhada de todas as informações que chegam do exterior, a mente procura atalhos: eis porque é tão fácil induzir os outros a erro e até enganá-los deliberadamente”.
“Os truques retóricos que se aproveitam dos automatismos da mente sempre existiram: basta pensar no significado do termo ‘maquiavélico’. E Shakespeare fornece, no Otelo, uma longa lista de exemplos”, explica Cristiano Castelfranchi, diretor do Instituto de Ciência e Tecnologia da Comunicação, ligado ao Conselho Nacional de Pesquisa da Itália.
O interessante é que tais mecanismos de distorção funcionam mesmo se os conhecemos muito bem. “Sabemos perfeitamente que o prestidigitador não é um mágico verdadeiro, o que não nos impede de sermos vítimas dos mecanismos presentes em nossa mente. Por exemplo, diante de dois objetos em movimento, somos levados a seguir com o olhar aquele que se move mais rapidamente, diz Rampin. É assim que o “mágico” consegue distrair e move velozmente uma mão para atrair a atenção, enquanto a outra executa o truque rapidamente. Assim também podem enganar, “como bem sabem os adeptos da guerra psicológica e da propaganda política, explica o psiquiatra e psicoterapeuta. Mas o instrumento mais refinado de mistificação ainda é a linguagem, na qual nos baseamos para construir nosso mundo mental e de relações interpessoais. “O processo pelo qual a pessoa que fala ou escreve dirige a atenção do interlocutor, empregando determinadas palavras e induzindo-o a ignorar certos conceitos, não é muito diferente do comportamento do prestidigitador”, afirma o psicólogo americano Michael Hall, autor de Mind lines.
Se, por exemplo, uma embalagem anuncia que o produto contém – ou não – determinado ingrediente, somos levados a pensar que isso representa para nós uma vantagem. Mas trata-se de uma dedução nossa: o fabricante limita-se a declarar a presença do ingrediente ou, no máximo, a afirmar que o produto “ajuda” a resolver certo problema. No entanto, o fato de que, para darmos mais um exemplo, determinada água mineral facilite a diurese ou a eliminação de toxinas não significa que seja um produto excepcional, pois essa é uma característica comum, em maior ou menor grau, a toda água potável. E um produto que “não contém” lactose, colesterol ou qualquer outro ingrediente não se torna, necessariamente (a menos que soframos de alguma intolerância em relação a eles), mais benéfico. Como observa Castelfranchi, “se a informação vier expressa tendemos a pensar que tal característica é digna de atenção: pelo menos é assim que nosso cérebro raciocina.
A PALAVRA FAZ A FORÇA
“Segundo os psicolinguistas ‘dizer é fazer”, lembra Rampin, “e, nesse processo de construção da realidade mediante a palavra, a forma muitas vezes conta mais que a substância”. Um exemplo retirado de Com sabor de Chocolate ilustra a questão. Se promovo meu jornal com o seguinte slogan “Leia a Gazeta. Descubra a verdade”, não sou obrigado a respeitar códigos normativos rígidos, e o leitor é induzido a criar automaticamente um nexo lógico entre as frases, interpretando-a como “Leia a Gazeta e descobrirá a verdade”.
Castelfranchi acrescenta: “Pensemos nas propagandas de sabão em pó que afirmam que nenhum outro produto lava mais branco”. Interpretamos a sentença no sentido deque o sabão em questão é o melhor do mercado. Mas levando em conta o significado literal do que é dito, diversos produtos podem ser todos iguais, se digo ‘nenhum lava mais branco’ que meu produto não excluo que outros possam fazer o mesmo. Dessa forma se obtém um efeito semelhante ao da publicidade comparada, evitando-se, porém, a necessidade de provar a afirmação.
O problema é não conseguir desconfiar, nem mesmo quando deveríamos por que damos ouvidos ao vendedor que conta as vantagens de seu produto se, obviamente, ele é parte interessada? “Podemos nos consolar pensando que o mesmo vendedor será enganado por outro, há uma espécie de pacto de indulgência mútua que sustenta a sociedade”, comenta Rampin. Esse mecanismo está enraizado em nossa cultura. “O psicólogo da linguagem Paul Grice foi o primeiro a afirmar que os seres humanos agem conforme o ‘princípio da boa-fé, segundo o qual quem comunica algo, tende a transmitir informações verdadeiras e relevantes ao interlocutor”, explica Castelfranchi. Segundo ele, esse princípio foi muito criticado, mas de fato todo ser humano, quando não tem motivo específico para mentir, tende a dizer a verdade e o interlocutor, se não tiver bons motivos para duvidar, tende a acreditar no que ouve: a troca de informações é uma das bases da sociedade.
Dado que cada um de nós só pode ter acesso direto a uma pequena parte das informações necessárias à sobrevivência, o “altruísmo cooperativo da comunicação’ é elemento fundamental na história de nossa espécie. Isso não é menos verdade nas fases históricas, como esta em que vivemos, nas quais a confiança tende a ser mais rara, pelo menos em certos contextos: se outrora um aperto de mão bastava para sinalizar o acordo, agora necessitamos de um complexo contrato. Para Castelfranchi, algo similar está ocorrendo na internet, em que a abertura total e a falta de controle estão colocando em crise a confiabilidade da informação. Também porque a internet desintegra a comunidade, anulando os mecanismos de garantia que são a base das sociedades de dimensões mais reduzidas, nas quais os indivíduos se conhecem e têm uma reputação “a zelar”.
Mas mesmo em nossa desconfiada sociedade as palavras podem exercer efeitos quase mágicos. Hellen Langer, psicóloga da Universidade Harvard, mostrou experimentalmente que as pessoas estão mais dispostas a ceder seu lugar na fila – para tirar uma cópia, por exemplo – se o pedido for acompanhado de uma explicação, independentemente da validade desta. Frases como “posso passar na sua frente, vou fazer apenas uma cópia” ou “posso passar na frente? Estou muito atrasado” produzem um efeito que o pedido puro e simples não geraria. O psicólogo americano Robert Cialdini, da Universidade do Arizona, definiu os seis critérios que levam alguém a se deixar influenciar.
As pessoas que nos sugestionam são as que nos parecem simpáticas ou que pertencem ao nosso “grupo de pares”, as que parecem ter prestígio (pessoas endividadas, mas vestidas com elegância, são admiradas),as que nos envolvem em seus projetos (se assinarmos uma petição por uma causa, seremos mais inclinados a contribuir), as que nos oferecem algo, seja um presente, seja simplesmente atenção, as que propõem um bem que percebemos como raro ou precioso.
Mas há ainda outros tipos de astúcia. Podemos enganar dizendo a verdade: se a embalagem informar que os biscoitos “não contêm nitrato”, aponta Rampin, dirá a verdade. Mas com isso leva-se o consumidor a pensar que os produtos concorrentes contêm nitrato, “algo que não é verdade, ou ao menos se espera que não seja”. Castelfranchi acrescenta que por vezes nos limitamos a insinuar: “Vi sua esposa em um carro com fulano’, deixando que nosso interlocutor extraia do que dizemos uma dedução pela qual, pelo menos em tese, não nos responsabilizamos”. Rampin chega a falarem “comunicação hipnótica”: Quando pensamos em hipnose nos vem à mente a imagem de uma pessoa em transe, com um pêndulo oscilando diante dos olhos. Mas, na verdade, há formas leves de transe que se apresentam espontânea e diariamente, por exemplo quando ‘sonhamos de olhos abertos,’ e que podem ser induzidas pela comunicação linguística apropriada”. Em tais casos é difícil distinguir entre retórica, poesia e hipnose: é a isso que nos referimos quando dizemos que um orador é “magnético” ou encantador.
E ainda mais se a pessoa for considerada como prestigiosa, um critério tão subjetivo (há os que dizem “acredito porque ouvi na televisão”) quanto falacioso. Castelfranchi salienta que “pode ser correto sustentar, como ocorre frequentemente, que algo que ‘todos dizem’ tem, por esse motivo, grande chance de ser verdadeiro, mas desde que a notícia tenha chegado de fontes independentes e não seja, por exemplo, a simples repetição, por vários jornais, de notícia divulgada por uma agência: é dessa forma que nascem as lendas urbanas, cuja característica é justamente não ter testemunhas oculares identificáveis”.
O poder da ciência em nos tranquilizar é ainda maior: um produto “clinicamente testado” parece oferecer por si só uma garantia, ainda que o importante seja, na realidade, o resultado do teste, para não falar do tipo de pergunta formulada, da amplitude e validade das amostras. Pelo mesmo motivo, tendemos a confiar nos números, mesmo quando eles proporcionam informações inúteis: Por exemplo, “contém menos 15% de sódio”, mas em relação a quê? Interpretamos as estatísticas de modo favorável à intenção de quem as fornece, mas, como explica Rampin, “um contexto diferente pode dar aos mesmos números um significado bem diverso”.
Alguns psicólogos discordam da equivalência de persuasão e manipulação. Castellranchi considera mais apropriado falar de manipulação “quando estamos diante de um verdadeiro embuste, quando a pessoa quer influenciar o interlocutor sem que este saiba. Hoje, por outro lado, a publicidade mais sofisticada não se baseia na linguagem do engano, mas na sugestão, associando imagens atraentes ao produto que quer promover, de modo a evocar uma mensagem sem explicitá-la”.
Felizmente, as reações de nossa mente à linguagem também podem ser exploradas para o bem. Ser ludibriável, explica Rampin, significa ter um cérebro dotado de plasticidade, e é isso que nos permite compreender as experiências alheias. Se é verdade que vivemos no interior de uma ilusão tomada por realidade, então é possível modificar uma ilusão que nos faz sofrer e substituir por outra. Este é o princípio de muitas formas de psicoterapia. “Mas neste caso,” conclui Rampin, não há manipulação, pois é o paciente que pede para mudar e o terapeuta obedece a rigorosas normas profissionais.
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