MORTE ANTES DA HORA
O suicídio de adolescentes é especialmente perturbador, pois, além da violência intrínseca ao ato, contraria a lógica da sobrevivência da espécie, e nos lembra de que algo está fora da ordem. Tentativas e ações consumadas decorrem da depressão e de eventos traumáticos – que envolvem fracasso, perda e humilhação – compreendidos pelo jovem como absolutos e incontornáveis
A notícia de que uma pessoa tirou a própria vida é chocante. Quando o protagonista da tragédia é um jovem, o fato parece ainda especialmente aterrador. Por mais triste que seja, o suicídio de um idoso doente ou solitário é, de alguma forma, psicologicamente compreensível. Mas a morte voluntária do adolescente é uma afronta à vida, uma atitude contrária à sobrevivência da espécie, que adquire contornos de tabu, dado o horror que provoca. São vários os comportamentos classificados como suicidas. Há o suicídio consumado, a tentativa (tecnicamente chamada de “parassuicídio”), o gesto que representa apenas um comportamento inicial e não chega à tentativa (a compra de uma arma, a contemplação do vazio do alto de algum lugar, o preparo de um nó corrediço) e a concepção do ato, que pode ser um gesto intempestivo causado por insatisfação geral com a vida, ou um projeto preciso de suicídio. Além disso, no aspirante a suicida a intenção de morrer apresenta vários níveis, e os métodos aventados podem ser mais ou menos letais.
Todos esses elementos entram na avaliação do comportamento e sugerem diferentes estratégias de prevenção e tratamento. É preciso acrescentar ainda o chamado “suicídio parcial”, muito frequente entre os jovens, em que traços de impulsividade se unem a comportamentos de alto risco, sem que a pessoa tenha de forma clara e consciente a ideia de morrer: é o caso de quem dirige de modo irresponsável ou se expõe a perigos fúteis. O fato de haver tantas vidas perdidas precocemente por causas externas, que poderiam ser combatidas, levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a definir o suicídio juvenil como assunto de preocupação urgente.
CAIXA DE PANDORA
Aproximadamente 90% dos suicídios podem ser atribuídos a causas psiquiátricas preexistentes, mas em 70% dos comportamentos suicidas o estado depressivo está presente em algum grau, na forma de transtorno maníaco-depressivo ou depressão recorrente. Além disso, rapazes que cometem suicídio em geral apresentam transtornos de ansiedade, personalidade antissocial e episódios de abuso de álcool e outros estimulantes. Aos transtornos psiquiátricos deve ser acrescentado o risco da herança familiar: não a hereditariedade propriamente dita, mas maior predisposição, por enquanto revelada apenas pelos dados da genética epidemiológica, mas que poderá ser confirmada também por estudos genéticos.
Se é verdade que metade dos suicidas sofre de alguma forma de depressão, é preciso salientar que apenas uma pequena parte dos depressivos projeta ou realiza atos autodestrutivos. A pesquisa dos fatores que aumentam o risco de suicídio identificou a associação do estado depressivo com diversos níveis de ansiedade, medo, raiva e profunda falta de esperança.
Nada de novo. Narra o mito que, quando Pandora abriu a famosa caixa, saíram de dentro dela a velhice, a doença e a loucura, mas também a esperança, que, a partir de então, iludiu a humanidade com suas mentiras, impedindo que os homens se matassem. Na década de 70, o psiquiatra americano Aaron Beck, professor emérito do Departamento de Psiquiatria na Universidade da Pensilvânia, retomou o mito e se deu conta de que a falta de esperança tinha papel decisivo nos que cogitavam suicídio.
Os rapazes se suicidam mais que as moças, e o fenômeno depende, em grande parte, dos transtornos psíquicos e do abuso de substâncias, mas a passagem ao ato suicida se dá, em geral, após a ocorrência de um evento psicológico traumático. O fator precipitador ou desencadeador, nos adolescentes, pode ser analisado em três categorias principais: fracasso, perda e humilhação. Uma nota ruim na escola, o fim de uma relação amorosa ou a derrota numa competição podem desencadear um sentimento de desespero, interiorizado e voltado contra o próprio indivíduo. Esse mecanismo foi estudado por Freud e outros psicanalistas, que viam no suicídio a expressão de uma violência extrema contra o próprio eu. A morte voluntária após a perda significativa de algo ou alguém (definida como um objeto de amor interiorizado) seria uma forma de descarregar a raiva por ter sido abandonado. Freud retomou a ideia de Santo Agostinho, que, para sustentar o caráter pecaminoso do suicídio, invocou o quinto mandamento, “não matarás”, aplicando-o também ao caso em que vítima e assassino são a mesma pessoa. A humilhação recorrente é um fator responsável por muitos suicídios durante a adolescência.
SINAL DE PERIGO
Bullying, não aceitação da própria sexualidade, raiva ou medo intensos e frequentes, tendência ao isolamento e mau desempenho escolar podem gerar ideação suicida e são hoje considerados situações de risco, sobretudo se o jovem faz uso de psicotrópicos ou passou por eventos estressantes recentes. Os pais devem ficar alertas e procurar avaliação psicológica ou psiquiátrica. Ideias agudas e recorrentes de suicídio exigem tratamento sedativo ou de estabilização do humor, principalmente com sais de lítio, a única terapia que mostrou resultados claros na prevenção farmacológica do suicídio.
Nessa fase, a psicoterapia é fundamental, em muitos casos até mais que antidepressivos. Há alguns anos, a agência americana de controle de drogas e alimentos (FDA, na sigla em inglês) apontou aumento do risco de suicídio em jovens tratados com antidepressivos, em particular os que estimulam a transmissão serotoninérgica. Como mostram vários estudos, a diminuição da serotonina parece estar ligada ao suicídio, mas as substâncias que elevam os seus níveis podem aumentar também o risco. O paradoxo indica bem o escasso conhecimento disponível sobre o impulso autodestrutivo e a importância do meio social como fator que leva adolescentes a procurar a morte antes do tempo. Se os jovens pensam em morrer, é sinal de que os adultos precisam estar atentos.
TEMPOS SOMBRIOS
Os modelos contemporâneos apoiam- se numa idealização de estilo de vida, competências e resultados. E, quando falamos de ideal, trazemos facilmente o conflito entre o possível e o impossível, num maniqueísmo que nos aproxima da sensação de impotência. A essa dinâmica agrega-se o forte apelo à satisfação imediata, fruto da sociedade de consumo. Aliados estão também a abundância de informações e estímulos vindos da internet, mídias sociais, num movimento constante que parece atropelar o tempo e fragmentar a realidade. Esses excessos dificultam, em geral, a introspecção e a construção de um espaço para a subjetividade.
É importante lembrar que a adolescência é considerada uma fase de transformação e, consequentemente, de luto, com características peculiares; perdemos o corpo e os pais da infância, e um novo processo com intensas mudanças fisiológicas e psíquicas desorganiza e traz, muitas vezes, sentimentos de insuficiência e estranhamento. Num mundo que glorifica a perfeição e tende a ver o sofrimento e a tristeza como doença, não há um lugar disponível para o que é humano e singular. A fragilidade do jovem diante de tantos desafios e incertezas parece manifestar explicitamente as dores de toda uma sociedade
INTOLERÁVEL, INESCAPÁVEL E INTERMINÁVEL
Profissionais da área de saúde mental concordam que certos fatores, como grande pressão social e familiar por escolha profissional e o aumento da competitividade no mercado de trabalho, tornam os jovens brasileiros particularmente vulneráveis ao suicídio. Enquanto os mais pobres deparam com a falta de oportunidades, os de estratos econômicos privilegiados sentem-se frustrados pelo fracasso nos estudos ou vestibulares, enfrentando o que alguns profissionais denominam “fobia de desempenho”.
A médica Alexandrina Meleiro, chefe do ambulatório e enfermaria do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), supervisora de Interconsultas do hospital e coautora de Suicídio: estudos fundamentais, recorda uma menina de apenas 10 anos que se atirou do oitavo andar do prédio de classe média alta onde morava, deixando um bilhete para a mãe, desculpando-se por não ser boa aluna.
Além das pressões exteriores, também estão em jogo questões próprias da adolescência, que podem levar à desestabilização psíquica. “Nessa fase, o jovem vive distorções cognitivas, instabilidades emocionais e inabilidade para lidar com afetos intensos”, afirma Meleiro, lembrando que, para Freud, o suicídio é um “homicídio invertido”. Ao se matar, a pessoa mataria o outro que está interiorizado em si mesma. Segundo ela, muitos enfrentam a armadilha dos três “is”: sentir a situação como intolerável, inescapável e interminável. A perda da imagem que a criança tinha dos pais e de seu corpo é vivida como luto.
Embora nessa fase da vida sentimentos depressivos sejam necessários – e até bem-vindos – para o amadurecimento da personalidade, é indispensável que pais e professores permanecerem atentos a sinais que mostrem que o jovem possa cometer um ato violento contra si, como mudanças de comportamento, faltas constantes às aulas, queda de rendimento escolar, diminuição de contatos sociais e comportamento tristonho.
ENTRE WERTHER E PAPAGENO
A série 13 reasons why causou furor. Na trama, uma estudante do ensino médio se suicida e deixa 13 fitas, uma para cada pessoa que ela acredita ter contribuído de alguma forma para sua decisão. Cada episódio refere-se a uma dessas gravações. Alguns dizem que a série é um retrato preciso e sensível da angústia e pode ajudar a esclarecer as motivações por trás do ato de atentar contra a própria vida. Os críticos, entretanto, temem a glamorização desse gesto ou sua normalização como uma opção legítima para tratar frustrações, o que pode conduzir ao aumento desse tipo de ocorrência. Afinal, é bem conhecido na literatura especializada o fato de que o suicídio pode ser um fenômeno contagioso.
Qualquer possível causa de tal proliferação deve ser levada a sério, embora, do ponto de vista científico, o papel da ficção na inspiração do suicídio seja, na melhor das hipóteses, pouco claro. Obviamente a série não é a primeira obra a deflagrar controvérsias. Romeu e Julieta, de William Shakespeare, foi acusada inúmeras vezes de exaltar o suicídio de jovens.
O romance de Johann Wolfgang von Goethe Os sofrimentos do jovem Werther, lançado em 1774, descreve a dor de um rapaz por causa de seu amor por Charlotte, que se casa com Albert, amigo do protagonista. Atormentado, Werther decide que um deles deve morrer e acaba atirando em si próprio com a pistola de Albert. Acreditava-se que o trabalho de Goethe tenha levado muitos jovens a decidir terminar sua vida em toda a Europa, vários deles usando armas e vestidos com roupa similar à descrita pelo autor. Alguns até tinham cópias do romance ao lado de corpo, abertos na página que relatava o suicídio.
O pesquisador David Phillips, que se dedicou a estudar o tema, cunhou o termo, “efeito Werther” para se referir ao fenômeno dos suicidas imitadores.
O resultado da pesquisa de Phillips, da década de 70, foi a recomendação de que as histórias sobre suicídio não fossem noticiadas com ênfase pela imprensa. Ele considerou também que a cobertura excessiva da mídia de suicídios de celebridades realmente levou a um aumento nas tentativas de atentar contra a própria vida. As mulheres na faixa dos 30 anos pareciam mais propensas ao ato após a morte de Marilyn Monroe, em 1962.
Em Viena, na década de 80, uma série de suicídios cometidos no metrô foi combatida pela decisão dos principais jornais da cidade de reduzir substancialmente a publicidade dessas mortes. Depois de certa data, essas ocorrências já não eram mencionadas. Isso coincidiu com uma queda progressiva no número de casos, o que ilustrou o poder da mídia para o bem.
Contrariando o efeito Werther, há o efeito de Papageno, numa referência ao personagem da ópera A flauta mágica, de Wolfang Amadeus Mozart. Convencido de que nunca vai conquistar seu amor, Papageno, ele tenta se enforcar, mas é persuadido por três espíritos a não acabar com sua vida.
Os pesquisadores King-wa Fu, professor associado no Centro de Estudos de Mídia e Jornalismo da Universidade de Hong Kong, e o cientista social Paul Yip, fundador e diretor do Centro de Pesquisa e Prevenção do Suicídio da Universidade de Hong Kong, examinaram os impactos da morte de três celebridades asiáticas, comparando registros semanas antes e depois das ocorrências. Eles descobriram um aumento substancial no número de suicídios na primeira, segunda e terceira semanas após a morte de cada celebridade em Seul, Hong Kong e Taiwan, em comparação com um período de referência. A maior incidência de vítimas estava entre pessoas com idade próxima e do mesmo gênero das celebridades.
Cientistas reconhecem, no entanto, que a evidência de relações entre suicídios em ficção de suicídio na TV e no cinema é mais complicada. A revisão da literatura sobre filmes e retratos televisivos de suicídio não revela conclusões sobre o impacto de suicídios ficcionais sobre os resultados suicidas reais na população em geral. Mas sabem que a identificação com a vítima é fator importante para desencadear a imitação. E circunstâncias que facilitam o comportamento suicida são contrabalançadas por fatores protetores que o inibem, como a fé religiosa, a presença de apoio social (amigos, família) e capacidade de perceber que as situações, por piores que pareçam – ou de fato sejam –, não são permanentes.
NÚMEROS PREOCUPANTES
A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o suicídio como uma prioridade de saúde pública, já que as taxas têm aumentado desde a década de 90, ano em que a OMS lançou um programa de prevenção. Em média, 800 mil pessoas tiram a própria vida todos os anos, e 75% desses casos ocorrem em países de média e baixa renda. Entre os jovens de 15 a 29 anos, o suicídio é a segunda maior causa de morte, perdendo apenas para acidentes de trânsito. O índice nessa faixa etária entre as mulheres é de 2,6 casos por 100 mil habitantes, mas a taxa salta para 10,7 na população masculina. Mas um dado chama atenção: entre 2010 e 2012, o mais recente período de análise de dados da OMS, o índice feminino cresceu quase 18%.
Os países que realizaram campanhas de esclarecimento a respeito do problema conseguiram baixar seus números.
Cerca de 90% dos casos poderiam ter sido evitados. Segundo estimativas da OMS, para cada caso há pelo menos 20 tentativas malsucedidas. Os maiores índices de suicídio no Brasil ocorrem em áreas de concentração de comunidades indígenas. Segundo estudo da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), das cinco cidades com as maiores taxas de suicídio de jovens, quatro ficam no Amazonas.
Para lidar com a questão, em 1962 foi criada a organização filantrópica Centro de Valorização da Vida (CVV), que presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional com o intuito de prevenir suicídio ou apenas atender pessoas que precisem e queiram conversar, com total sigilo. Após a exibição da série 13 reasons why, os pedidos de ajuda ao CVV duplicaram.
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