O CÉREBRO SE ACOSTUMA COM A DESONESTIDADE
Agir de forma honesta é um hábito, assim como o oposto. E, ao contrário do que durante muito tempo se acreditou, não é muito simples desmascarar mentirosos, pois, quanto mais acostumados à enganação, mais hábeis se tornam nessa atitude – especialmente se estão convencidos do que dizem.
Quando repetimos seguidamente uma ação, tendemos a nos aperfeiçoar nessa prática. Com mentiras a lógica é a mesma: faltar com a verdade com frequência nos torna mentirosos cada vez mais habilidosos – e constantes. Começamos com engodos mais “inocentes” e, aos poucos, eles abrem espaço para outros maiores. Do ponto de vista neurológico, o cérebro se familiariza com esse comportamento. Um estudo publicado no periódico Nature Neuroscience sobre uma pesquisa desenvolvida na Universidade College de Londres revelou uma conclusão inquietante: nós nos acostumamos à desonestidade e nossos julgamentos a respeito do que classificamos como certo e errado se tornam gradativamente mais elásticos.
Exames de ressonância magnética realizados enquanto voluntários eram convidados a mentir em variadas circunstâncias mostraram que as amígdalas (estruturas em forma de amêndoa que têm papel fundamental no processamento de emoções) passam a ser gradualmente menos ativadas à medida que se pratica a desonestidade com maior constância. E mentir se torna uma prática corriqueira, principalmente quando a pessoa acredita realmente na mentira que conta.
Em 1976, no prefácio de O gene egoísta (Companhia das Letras), do biólogo evolutivo britânico Richard Dawkins, seu colega Robert Trivers defendeu a ideia de que, ainda que não seja de forma planejada, nos auto- enganamos com o objetivo de ludibriar os outros. O objetivo seria criar uma espécie de vantagem social. Agora, após quatro décadas, Trivers e seus colegas publicaram a primeira pesquisa que sustenta sua tese.
Estudos feitos por psicólogos já haviam identificado vários mecanismos psíquicos que usamos para enganar a nós mesmos, como coleta de informações parciais, raciocínio distorcido e memórias tendenciosas ou encobridoras. Existem ainda as “lembranças encobridoras”, um termo cunhado por Freud, que se refere a recordações construídas, em geral agradáveis que se sobrepõem ao que de fato vivemos, com o objetivo de nos livrar da angústia que essa rememoração mais próxima da realidade evoca. O novo trabalho, publicado no periódico científico Journal of Economic Psychology, centra-se no primeiro item: a maneira como buscamos informações que suportem o que queremos crer e evitar o que não desejamos.
Em um experimento, Trivers e sua equipe pediram a 306 voluntários, que participavam online, que escrevessem um discurso persuasivo sobre um personagem de ficção, um homem chamado Mark. As pessoas foram informadas de que receberiam um bônus, dependendo de quão convincente fosse sua argumentação. Alguns foram instruídos a apresentar Mark como simpático; outros, orientados a descrevê-lo como desagradável e um terceiro grupo deveria escolher livremente o que preferiam escrever, segundo as próprias impressões. Para coletar informações sobre Mark, os participantes assistiram a uma série de vídeos curtos, que eles poderiam deixar de ver a qualquer momento. Para alguns dos espectadores, a maioria dos primeiros vídeos apresentou um Mark “bondoso”, reciclando o lixo e devolvendo uma carteira a um estranho que acabara de perdê-la. As cenas que apareciam na sequência apresentavam facetas pouco nobres, como com atitudes agressivas e superficialidade.
Os voluntários incentivados a apresentar Mark como uma boa pessoa tendiam a parar mais cedo de assistir aos vídeos, concentrando-se nas cenas agradáveis. Ou seja: não buscavam informações completas, desde que tivessem os dados necessários para convencer a si mesmos, e outros, dos traços positivos da personalidade de Mark. Consequentemente, as próprias opiniões sobre o personagem foram melhores, o que levou seus ensaios sobre a boa natureza do rapaz a serem mais convincentes, conforme avaliação de outros participantes. “Parece que, intuitivamente, compreendemos que é preciso, primeiro, acreditar em algo para só depois dissuadir as outras pessoas”, diz o psicólogo William von Hippel, da Universidade de Queensland, coautor do estudo. Em resumo, seguimos três etapas: processamos informações de forma tendenciosa, acreditamos nelas e nos empenhamos em convencer os outros de sua veracidade.
Na vida real, não costumamos ser orientados a dizer algo sobre determinado personagem, mas podemos debater uma ideia sobre política, a respeito de um projeto profissional ou de uma crença pessoal – e o mecanismo psicológico empregado nesses casos seria o mesmo, segundo os pesquisadores. Um dos tipos mais comuns de autoengano diz respeito a nossas próprias habilidades. Algumas abordagens da psicologia argumentam que evoluímos para superestimar nossas boas qualidades porque isso nos traz enorme satisfação – embora sentir-se bem, por si só, não tenha relação com a sobrevivência ou a reprodução. No entanto, aumentam as possibilidades de sermos aceitos nos grupos dos quais participamos. Além disso, o auto- aperfeiçoamento poderia aumentar a motivação, levando a maior realização. Talvez. Mas, se a motivação fosse a meta, então teríamos evoluído para sermos mais motivados – sem os custos da distorção da realidade.
Trivers argumenta que uma autoimagem positiva faz com que os outros nos vejam da mesma forma, atraindo o interesse de nossos semelhantes e atitudes mais cooperativas. Apoiando esse argumento, a psicóloga Cameron Anderson, da Universidade da Califórnia em Berkeley, mostrou em um estudo realizado em 2012 que pessoas superconfiantes tendem a ser vistas como mais competentes do que geralmente são e têm status social mais elevado. “Parece haver uma boa possibilidade de que o autoengano tenha evoluído com um propósito de nos trazer vantagens”, diz Anderson.
Em outro estudo, publicado no periódico Social Psychology and Personality Science, Von Hippel e colaboradores testaram três argumentos juntos, de forma longitudinal. Queriam saber se o excesso de confiança, por si só, aumenta a saúde mental, a motivação e a popularidade. Acompanhando quase mil jovens australianos durante dois anos, os pesquisadores descobriram que ao longo do tempo o excesso de confiança em relação ao desempenho nos esportes e na própria inteligência não garantiu melhores indicativos de saúde mental, desempenho físico ou acadêmico. No entanto, a autoconfiança em relação aos esportes causou maior popularidade ao longo do tempo, apoiando a ideia de que as percepções a respeito de si mesmo podem garantir vantagem social. Os autores acreditam que as habilidades intelectuais não tiveram tanto destaque no aumento de popularidade dos garotos porque entre adolescentes a inteligência pode ter importado menos do que o sucesso nos esportes.
RAZÕES PARA EVOLUIR
Por que teria levado tanto tempo para que surgissem comprovações científicas das hipóteses de Trivers? Em parte, porque a tese era substancialmente teórica. Além disso, o biólogo acredita que outros pesquisadores não consideraram a autoestima ou motivação razões suficientes para a evolução.
O cientista Hugo Mercier, pesquisador do Instituto de Ciências Cognitivas da França, que não esteve envolvido nos novos estudos, está familiarizado com a teoria, mas a questiona. Ele acredita que, a longo prazo, o excesso de confiança pode ser contraproducente. Mercier e outros também debatem se os preconceitos sobre si mesmo podem ser chamados de autoengano. “Todo o conceito é, pelo menos em parte, enganoso; não podemos pensar que haja uma parte de nós deliberadamente ludibriando outra parte”, argumenta. Trivers, Von Hippel e Anderson, obviamente, discordam de Mercier a respeito da terminologia do autoengano.
“Meu conselho maquiavélico é que sugestionar a si mesmo a respeito do que queremos provar para os outros é uma ferramenta poderosa, que realmente funciona”, diz Von Hippel. “Se você precisa convencer alguém de alguma coisa, se sua carreira ou sucesso social depende da persuasão, então a primeira pessoa que precisa ser convencida é você mesmo.” Por outro lado, sempre que alguém lhe apresenta uma ideia com veemência, vale a pena pensar sobre o que poderia estar por trás dessa atitude. Afinal, mesmo que a pessoa não esteja deliberadamente mentindo para você, pode estar enganando a si própria – e aos outros.
PARA DETECTAR UM MENTIROSO, MAIS VALE OUVIR DO QUE VER
Como podemos perceber se estamos diante de um mentiroso? Durante muito tempo, as pessoas acreditaram que podiam identificar um mentiroso por comportamentos ou sinais corporais – como coçar a cabeça com frequência; movimentar-se de forma agitada ou ficar com as faces coradas. No entanto, um grupo de pesquisadores coordenado pela psicóloga Bella M. DePaulo, da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, garante que, em geral, as coisas não são tão simples. Há dez anos ela analisou resultados de 120 estudos sobre os sintomas físicos que acompanham mentiras – e concluiu que os estereótipos raramente são verdadeiros: mentirosos não escorregam nervosos na cadeira nem evitam o contato visual de seu interlocutor. Segundo a pesquisadora e seu colega Charles F. Bond, da Universidade Cristã do Texas, para a maioria das pessoas é realmente muito difícil discernir se uma declaração é verdadeira ou falsa. Em um trabalho mais recente, os dois cientistas revisaram 206 estudos sobre a cota de acertos em julgamentos sobre credibilidade. No total, apenas 54 desses julgamentos sobre a veracidade ou não de uma declaração estavam corretos, um valor estatisticamente pouco significativo – que talvez pudesse ter sido atingido também por meio de pura adivinhação. Mas convém levar em conta que, na média, os participantes dos experimentos reconheceram mais frequentemente afirmações verdadeiras do que mentiras. No entanto, há estratégias com as quais as enganações podem ser descobertas com alguma margem de segurança.
Tomando por base os estudos levantados por Bond e DePaulo, pesquisadores da mesma equipe compararam diversos canais sensoriais. Ao analisar os resultados dos exames, eles chegaram à conclusão de que sinais acústicos ajudam mais que os visuais na hora de reconhecer engodos. Nos experimentos, os voluntários podiam diferenciar de forma mais nítida as mentiras quando ouviam a declaração duvidosa com atenção, em vez de observar o falante, à procura de sinais reveladores. Se as pessoas assistiam a um vídeo sem som, a cota de acertos era apenas aqueles 50%, obtidos também por adivinhação. Mas se durante a exibição das imagens eram apresentadas as vozes correspondentes, a cota de acerto de seus julgamentos aumentava para 54%.
Mais uma vez, nada assombroso, mas de qualquer forma havia uma alteração estatística. O que de fato surpreendeu os pesquisadores foi o resultado não ser pior quando somente se apresentou o som sem imagem. Ou seja: quem se concentra apenas no comportamento não verbal reduz suas chances de desmascarar um mentiroso.
Aparentemente, nossos olhos se deixam enganar mais facilmente. Por isso, vale a pena prestar atenção principalmente no que uma pessoa diz, ficando alerta, por exemplo, para possíveis contradições.
Especialistas afirmam que os mentirosos contumazes são, em geral, pouco plausíveis e lógicos. Além disso, raramente admitem que tenham de corrigir sua descrição ou que não consigam se lembrar de algo – para “encobrir os brancos da memória”, eles simplesmente inventam informações. Se a pessoa ainda parece nervosa e fala em tom mais alto do que o de costume, então devemos ter cuidado: ela tem grandes possibilidades de estar mentindo. Os estudos avaliados por DePaulo e Bond revelaram também que vários participantes conseguiram reconhecer as declarações falsas de forma mais clara quando o mentiroso foi pego de surpresa e não teve tempo de planejar o que diria. Por isso, cobrar explicações imediatas pode desmascarar um provável mentiroso.
Para o psicólogo Aldert Vrij, pesquisador da Universidade de Portsmouth, na Inglaterra, uma boa estratégia é fazer a pessoa da qual desconfiamos que esteja mentindo falar o máximo possível. Nesse momento, ela precisa pensar rapidamente e corre o risco de contradizer-se. E, quanto mais ela falar, mais difícil será para ela controlar tanto o conteúdo do que diz quanto o próprio comportamento. Portanto, pedir que repita trechos do que foi dito também costuma ser eficaz para detectar brechas nos discursos. “Essa técnica de interrogatório, muito conhecida de romances e filmes policiais, revela-se, de fato, sensata”, observa Vrij.
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