O DESAFIO DE ENCONTRAR A UNIDADE PERDIDA
As mudanças nos relacionamentos interpessoais provocadas pela internet geram solidão real na era virtual; por isso, cada vez mais, é importante tentar compreender esse fenômeno.
Aristófanes foi um dos mais antigos dramaturgos da Grécia Antiga. Numa celebração de louvor a Eros conferida a ele, no livro O Banquete de Platão, encontraremos o mito do andrógino. No diálogo com Erixímaco, ele outorga grande poder à força do amor. Para ele, o amor seria um íntimo desejo de restituição de um reencontro com a totalidade, isto é, a plenitude outrora perdida.
Para ele, a humanidade originalmente compunha-se de seres completos e esféricos. Eram dotados de quatro pernas, quatro braços, um rosto de cada lado da cabeça e um genital de cada lado do corpo. Eram ainda filhos do sol, da terra e da lua, o que explicava sua forma esférica. Os filhos do sol possuíam dois genitais masculinos, os da lua, dois genitais femininos e os da terra, que possui a luz de um astro e a sombra de outro, um genital de cada sexo. A esses últimos, um tipo de terceiro sexo, era dado o nome de andrógino. Tais criaturas não andavam de pé, mas rolando, girando sobre seus muitos membros. Eram tão completas em sua redondice que resolveram escalar até o céu e desafiar os deuses. O que deixou Zeus furioso. Mas eliminá-las deixaria os deuses sem adoradores. Admirandose pela praticidade de sua solução, que dobraria o número de seus adoradores, Zeus, como punição, parte ao meio todos seres esféricos. Após o corte, Zeus envia Apolo, para que curasse as feridas e que virasse o rosto dos cortados e o pescoço para o lado em que a separação havia sido feita a fim de que o homem, pela contemplação do corte, se tornasse mais humilde e que se curasse de seu orgulho. Apolo alisou a maior parte das rugas criadas pelas cicatrizes. Como arremate final da costura, Apolo deixou o umbigo, para o qual as infelizes criaturas passaram o resto de sua vida tendo de olhar.
Desesperadas, as criaturas partidas passaram a buscar sua metade perdida. Quando ambas ex-metades se encontravam, se abraçavam até morrer. Num ato de piedade, Zeus novamente enviou Apolo à Terra para que virasse o genital dessas criaturas para o outro lado, assim, quando se encontrassem, as ex-metades poderiam fazer algo que por breve momento as restaurasse em uma só.
A partir do mito, o que se pode suscitar é que há um desejo humano de se unir com o ser amado e de dois formarem um só. E assim, desse modo, a espécie humana só poderia alcançar a felicidade no momento em que a metade da humanidade se encontrasse com sua outra metade.
Todavia, desde os primórdios da vida humana sabemos que há um papel considerado fundamental nas relações e que se dá início no período em que a mãe carrega seu bebê dentro de seu ventre e, posteriormente, a isso viriam os primeiros anos de desenvolvimento emocional e do sentimento de cumplicidade dessa relação inicial, que formariam todo pano de fundo para relações posteriores. Freud (1915) nos disse que o caráter essencial de todo estado amoroso é justamente que o amor consiste em novas edições de antigas características e que repete ações infantis. Para ele, não existe estado desse tipo que não reproduza protótipos da velha infância. A questão é como fica essa organização interna na vida adulta.
A sensação de plenitude advinda do amor sexual é, sem dúvida, uma das principais coisas da vida, e a união entre o físico e o mental na satisfação constitui um de seus pontos mais altos. Freud (1915) vai nos dizer que a intimidade e plenitude obtidas através desse encontro reconstituem a unidade perdida, que reproduz a primitiva relação um dia experimentada no útero de nossa mãe. E menciona que não é por acaso que, após um encontro amoroso pleno de intimidade e satisfação, os amantes, assim como os bebês satisfeitos de leite e amor, costumam dormir.
O advento da internet, fenômeno de nosso tempo, abre espaço para inúmeras indagações que emergem desse dispositivo. Uma delas seria refletir sobre o papel da intimidade e do vínculo em tempos de modernidade. Afinal, é a era da interface, dos relacionamentos virtuais, da rapidez, das redes sociais, dos contatos, dos relacionamentos fugazes, mas, nem por isso, fáceis assim. Lembremo-nos que esses contatos surgem protegidos em sua intimidade por uma tela. Paradoxalmente, com todo esse aparato e aparente facilidade é a era também de uma enorme solidão, uma busca incessante por essa unidade perdida.
APROXIMAÇÃO
Surgem novas tecnologias, vários sites e aplicativos para todas as categorias de aproximação. Abre se uma janela iluminada diante de olhos ávidos que procuram um mundo de oportunidades dos mais diversos tipos possíveis de encontros. Com base em um cadastro, cria-se um perfil e o primeiro contato vai ocorrer de forma virtual, protegido em suas privacidades geográficas, no conforto de seus refúgios e entre telas de computador ou do smartphone.
É nesse ciberespaço que os desconhecidos dissertam sobre suas expectações e projetam em seus perfis on-line algo como seu “ego ideal’ termo introduzido por Freud (1914) em Sobre o Narcisismo: uma Introdução. Isso ocorre por meio de fotos criteriosamente selecionadas e textos sobre aquilo que se é; que gostaria de ser; e que se acredita que o outro expecta; nada mais humano. “Esse ego ideal é agora o alvo do amor de si mesmo (self- love), desfrutado na infância pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância, na qual ele era seu próprio ideal”.
O enamorado projetaria no objeto de sua paixão o ego ideal, forjado segundo o modelo onipotente do narcisismo infantil. Sem nos esquecermos de que o amor primário é selvagem, quer devorar, possuir, controlar o objeto e negar qualquer diferença. Ao mesmo tempo em que essa sensação de plenitude do narcisismo primário exerce um fascínio, uma idealização e uma atração quase irresistível.
IDEALIZAÇÃO
Segundo Freud (1914), a idealização é possível tanto na esfera da libido do ego, isto é, a mim mesmo, quanto na da libido objetal, que é idealizar o outro no caso do enamoramento. Tudo isso para dizer que se a relação for construída em cima dessas bases mais frágeis da idealização ficará difícil estabelecer um relacionamento baseado na intimidade, cumplicidade e, por que não, realidade.
Quando pensamos na forma de relações que os sujeitos fazem protegidos no mundo virtual observamos que há a utilização de um espaço, nesse caso uma tela, entre ele e o outro. Nesse contexto, essa relação estaria sendo mediada por um computador. Buscar transformar o mundo desagradável e hostil e tentar ser mais feliz são também fantasiar, sem que possamos nos esquecer de que é na realidade que podemos de fato ser felizes. A internet poderia se configurar em um espaço lúdico onde o exercício da criatividade torna-se mais tolerável. Desse modo as fantasias se exteriorizariam nesse ciberespaço simbólico, num encontro entre a intimidade singular atualizada em construções fantasísticas do sujeito. Isso pode significar que os aspectos da intimidade poderiam estar de alguma forma protegidos no mundo real. E relacionamento sem intimidade e cumplicidade tende a naufragar.
Parece ser a fantasia um conceito psicanalítico apropriado que pode nos oferecer algum entendimento sobre as relações virtuais e algumas pistas para a compreensão entre a relação virtual e as dificuldades do relacionamento dito como real. Afinal, com tantos recursos e oportunidades dos mais diferentes tipos de encontros, ao fechar a tela do computador os sujeitos continuam a se sentir sozinhos, isto é, a solidão ainda é a grande companheira.
Nos encontros reais, ao se propor a construção de algo em parceria será preciso criar a tal intimidade do casal. Primeiro a intimidade precisa ser consigo próprio e depois com o outro. A intimidade seria, portanto, a arte de penetrar e se deixar ser penetrado pelo outro, mantendo a sua singularidade e se permitindo a cumplicidade com seu par. Por cumplicidade estamos falando de um processo de amizade, carinho e respeito entre o par.
MATCH
Voltando à problemática do relacionamento virtual ou aplicativos de relacionamento, os indivíduos se escolhem por meio de uma lista de fotografias e dizeres e, como falávamos, fantasias inconscientes, e, se tudo der “certo”, ocorre um match. A palavra match é usada para definir o momento em que duas pessoas se interessaram mutuamente e, portanto, ambas pressionam o botão like na tela. Esse match passa a ser então o ponto de partida para um encontro real, que pode ser uma experiência de alguns instantes, pode se transformar em um envolvimento amoroso duradouro ou não. Tudo isso para se falar que sempre estamos às voltas com o tema do relacionamento.
Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, em seu livro Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos, nos fornece algumas pistas sobre a dificuldade de se fazer vínculos. Ele vai dizer que existe um desespero em relacionar-se e uma tensão entre estar ligado ao outro e a perda da liberdade.
Para Bauman, “relacionamento é o assunto mais quente do momento, e aparentemente o único jogo que vale a pena, apesar de seus óbvios riscos”.
POESIA DE VINÍCIUS
No Samba da Bênção, Vinicius de Moraes, em meio a sua arte e poesia, vai nos contar que “a vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida”. Em outro trecho da canção, o poeta ilumina a noite escura da solidão e revela que “a tristeza tem sempre uma esperança, de um dia não ser triste não”. O mote central da canção é o amor e, consequentemente, o relacionamento. O assunto relacionamento nunca sai de moda. Os riscos intrínsecos ao assumir um compromisso parecem ser centrais na atualidade. Ansiedade de viver junto e também de viver separado parece ser uma equação que não fecha.
Com a utilização da internet, das formas tecnológicas de relacionamento e da rapidez de informações torna-se mais simples se conectar e mais fácil ainda se desconectar. Se não gosta, ou algo incomoda, é só apertar a tecla deletar (apagar) e desligar a máquina. As tecnologias são novas, mas os seres humanos continuam sendo humanos, isso quer dizer que possuem sentimentos e emoções e esse processo de ligar e desligar não funciona assim.
Bauman, em seu livro, aponta para um discurso ambíguo do ser humano na atualidade, como se os sujeitos estivessem preocupados com uma coisa, porém falando outra. Estariam garantindo que seu desejo e paixão têm por objetivo o relacionar-se. Entretanto, parecem estar evitando o relacionar-se, temendo que sejam aprisionados no congelamento da união. Ao que tudo indica, estariam mais preocupados em relacionamentos frouxos e leves, para que pudessem se desconectar a qualquer momento, a fim de rompê-los sem dor, evitando o sofrimento. O que acaba por tornar mais difícil o processo de intimidade e feitura de laços.
PROTEÇÃO
De nada adianta ter um computador de última geração no conforto de sua casa se o mundo mental da pessoa que maneja essa máquina é um desastre. Isso quer dizer que é preciso proteger o outro de nossos impulsos destrutivos e vice-versa. Ou então é possível que se fique nessa busca interminável, sem conseguir experimentar o sabor do relacionamento a dois de forma mais profunda.
Propõe-se para esse entendimento a observação entre o mundo real, a realidade – e estamos falando da realidade de ambos -, e o mundo virtual; direcionamos para não só as expectativas, como também as fantasias inconscientes. Klein, M., no prefácio de seu livro O Sentimento de Solidão, vai nos dizer que a escolha dos parceiros aponta para as raízes primitivas da nossa personalidade e os vínculos iniciais.
Ainda segundo a autora, o sentimento de solidão nunca desaparece no ser humano; mas não tem o sentido de estar só. Para ela, revela antes uma implicação de se sentir “mal acompanhado”, sob o ponto de vista interno. Isso é, resulta da fantasia da presença de figura ou figuras perseguidoras. “É ele, no entanto, que, no comum, impele a humanidade à busca inconsciente da imagem boa do começo de vida (a mãe ou substituta), na relação com o mundo, e, alienando-se à esperança de reencontrá-la, favorece e propicia a capacidade de estar só externamente, sem se sentir muito em solidão.”
A autora observou que para compreender como o sentimento de solidão se origina teríamos que nos reportar à primeira infância e reconhecer sua influência sobre os estágios ulteriores.
Segundo Francoise Dolto, psicanalista francesa, em seu livro intitulado Solidão, existe uma diferença entre a solidão que permite ao ser humano estruturar-se e a solidão que o impede de se estruturar. Para a autora, a solidão presente, a que está sendo vivida no atual momento pelo indivíduo, tem suas raízes lá atrás, nos anos que se passaram. Se isso não ficar compreendido, pouco ajudaria na compreensão dessa busca incessante por esse ser externo que possa trazer essa paz interna consigo próprio.
“Um ser humano não pode viver sem sentir solidão; não pode estar constantemente com alguém. O estruturante é estar habitado, desde pequeno, por uma solidão povoada de intercâmbios em palavras com os próximos, e não somente de intercâmbios de corpo a corpo ou de presença apenas visível”.
CONVITE À REFLEXÃO
Dolto nos convida a refletir que não é sempre factível estar na companhia de alguém, mas é sempre crível estar na própria companhia. Afinal, a relação que se estabelece consigo próprio é a única não factível de divórcio, portanto é melhor se conhecer bem, ou passará a vida com um desconhecido. E isso quer dizer que existe uma solidão que é estruturante e enriquecedora para um ser humano durante toda sua vida, que estaria emocionalmente unida às lembranças de momentos eleitos de relações psíquicas verdadeiras e não vinculadas tão somente às necessidades – vai estudar, vai tomar seu banho ou vai dormir -, mas àquele que povoa o mundo da afetividade. Quando a criança só escuta isso, ela não terá como alimentar sua solidão, seu mundo interno. Tudo está carregado de afeto, de relações humanas, de reminiscências de momentos felizes, comunicação entre lembranças de pessoas amadas que se amam mutuamente sendo como são, tanto nas horas de tristeza quanto de alegria.
Em Escritores Criativos e Devaneios (1908), a fantasia pode ter esse papel de “reajustar” o que se encontra em desajuste, como as brincadeiras ou o ato de comprar também podem fazer. Todos os objetos com os quais os sujeitos se relacionam tentam camuflar a falta que nos é intrínseca, assim como também é a solidão.
Observa-se que há um entrecruzamento do mundo virtual e real e que cenários que esbarram em nossas fantasias e traumas passeiam pelo mundo interno e provocam atualizações em nossas cadeias simbólicas. A modernidade da tecnologia pode ser um facilitador, um recurso para aproximar, desde que os seres humanos não se esqueçam de que são humanos dotados de seu mundo interno repleto de significados, sentimentos e emoções. O papel de estabelecer laços é feito no exercício diário do próprio relacionar-se. Todo indivíduo é marcado pelo desamparo primordial e pela falta do objeto para sempre perdido. O vazio é comum a todos os sujeitos; sempre falta alguma coisa. Buscar compreender como cada um lida com a falta e com a própria solidão é o desafio para se relacionar.
TECNOLOGIA NÃO SUBSTITUI FATORES HUMANOS NO RELACIONAMENTO
Em Black Mirror, série da Netflix. o episódio de nome “Hang the Dj vai apresentar, num mundo qualquer, relacionamentos em que, a partir de um aplicativo situado, uma espécie de bússola, os casais são escolhidos através do cruzamento dos perfis pelo sistema operacional, criando assim um encontro. No momento do encontro, os dois terão que pressionar o botão desse dispositivo tecnológico que vai prever o tempo que permanecerão juntos. Esse tempo pode ser contado em minutos, horas, meses ou anos. Vai depender do que o indivíduo terá que aprender com aquele relacionamento. Esses encontros vão ocorrendo sucessivamente. Vivem a experiência e, quando chega a hora de se separar, agradecem pelo tempo de união e começam uma nova história com outra pessoa. Essas breves histórias de amor ou não estariam preparando o sujeito para encontrar o tão almejado homem ou mulher de sua vida. Entretanto. um casal que já havia se encontrado antes através dessa tecnologia se esbarra novamente e decide não pressionar o botão do aplicativo. Essa proposta foi feita pela personagem feminina que, cansada de relacionamentos com prazo de validade previamente definido, acreditava não servir para ela, pois as trocas sexuais não estavam sendo o bastante; ela queria estabelecer vínculos. Nota-se que nesse momento ambos decidem por viver a experiência da relação sem saber previamente quanto tempo irá durar. E o que acontecerá? Só assistindo ao tal episódio, assim como na vida, só é possível viver vivendo-se. Isso quer dizer que os infinitos recursos tecnológicos podem facilitar a vida, mas não substituem as características humanas de se relacionar. Os sentimentos sempre irão existir, e seria importante se dar conta deles.
AMOR LÍQUIDO
“E no entanto, desconfiados da condição de “estar ligado”, em particular de estar ligado “permanentemente”, para não dizer eternamente, pois temem que tal condição possa trazer encargos e tensões que eles não se consideram aptos nem dispostos a suportar, e que podem limitar severamente a liberdade de que necessitam para sim, seu palpite está certo – relacionar- se. (prefácio do livro Amor Liquido).
RENATA BENTO – é psicóloga, especialista em criança, adulto, adolescente e família. Psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Perita em Vara de Família e assistente técnica em processos judiciais. Filiada a IPA – International Psychoanalytical Association, à Fepal – Federacion Psicoanalítica de América Latina e à Febrapsi – Federação Brasileira de Psicanálise.
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