A ESTRANHA ATRAÇÃO POR CRIANÇAS
Casos de abuso contra meninos e meninas costumam causar comoção social. Parece difícil acreditar que gente considerada “normal” seja capaz de cometer esse tipo de ato. No entanto, pessoas comuns costumam praticar crimes mais graves do que aquelas apontadas como doentes mentais; associar diagnósticos com a violência só tende a aumentar o estigma em relação aos distúrbios psíquicos.
O clube esportivo anuncia que está à procura de um voluntário para supervisionar a área das piscinas infantis. Yago se inscreve e, poucos dias depois, consegue a vaga. Cuidadoso e dedicado, rapidamente ganha a confiança das crianças. Para muitos pais e funcionários, o adolescente tem um verdadeiro dom para lidar com os pequenos. O que ninguém sabe é que o rapaz de 16 anos guarda um segredo: ele gosta de admirar o corpo seminu das crianças, o que lhe provoca excitação sexual – e culpa. Temendo colocar em prática o que se passa em sua cabeça, volta para casa e se masturba.
A atração por crianças apareceu cedo. O adolescente se deu conta das fantasias sexuais quando tinha 11 anos. Desde então, diz lutar contra esses impulsos. A angústia o levou a desabafar com um amigo antes de chegar a um profissional. Mas, assim que assumiu o que sente em relação aos pequenos, sofreu represálias e ameaças de responsabilização criminal – o que não é de admirar, afinal, casos de violência sexual contra crianças causam repugnância à sociedade. A antropóloga Laura Lowenkron, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que cenas de abuso infantil – reais ou fictícias – representam o inimaginável, o indizível, e podem violentar simbolicamente o espectador. Mas será que fantasia e comportamento devem ser considerados equivalentes?
ESTIGMA E SISTEMA PENAL
O horror de escutar um relato com esse conteúdo tende a nos fazer tomar a fantasia como algo que já aconteceu. Vejamos, entretanto, o que diz a lei sobre isso. As previsões que encontramos no Código Penal brasileiro e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) permitem o enquadramento daqueles que venham a praticar o abuso sexual em suas mais variadas formas. Do ponto de vista da Justiça, a responsabilização jurídica incide sobre atos, não sobre fantasias.
Yago conta que nunca fez sexo com nenhuma criança. Aliás, diz que não mantém relações sexuais com ninguém. No entanto, quem escuta que alguém fantasia sexualmente com uma criança, ainda que o abuso jamais se concretize, pode se sentir horrorizado. Para muitos, essa pessoa pode ser passível de punição, mesmo que pela lei o desejo não seja crime.
Claro, existe a preocupação de que o adolescente passe da fantasia ao ato. O que há com esse indivíduo? Será que é pedófilo? Abusador? Pode se transformar em um? Segundo definição da quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5), da Associação Psiquiátrica Americana (APA), a pedofilia é um transtorno psiquiátrico que envolve impulsos sexuais intensos, recorrentes e, por vezes, incontroláveis em relação a crianças. No entanto, no senso comum, muitas vezes o termo “pedofilia” é utilizado no contexto de qualquer ato de abuso sexual infantil, ainda que as características acima não estejam presentes.
Mesmo entre profissionais, é bastante comum a associação de pedófilos com abusadores. A literatura aponta, porém, que 75% dos pedófilos nunca chegam a passar da fantasia para o crime, segundo o psicólogo Antônio Serafim, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IP-q-HCFMUSP). O psiquiatra Miguel Chalub, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), esclarece que somente de 2% a 10% dos indivíduos que abusam de crianças podem ser considerados pedófilos. Uma pessoa que venha a praticar qualquer ato de natureza sexual contra os pequenos, sem dúvida, comete abuso e crime, mas não necessariamente se enquadra no diagnóstico pedofílico. A pedofilia é uma entre outras possibilidades de denominar e compreender o fenômeno da violência sexual infanto-juvenil. Casos de abuso contra crianças costumam causar comoção social. Para muitos, é difícil acreditar que uma pessoa considerada “normal” seja capaz de cometer esse tipo de ato, atribuindo, assim, a culpa ao “louco”, ao “perverso”, ao “pedófilo”. Mas Serafim relembra que pessoas comuns costumam praticar crimes mais graves do que aquelas apontadas como doentes mentais. Segundo ele, associar diagnósticos com a violência tende a aumentar o estigma em relação aos distúrbios psíquicos. O fato é que a maior parte dos abusos sexuais é praticada por quem não tem nenhum diagnóstico. Isso mesmo: por pessoas comuns e que não têm compulsão por se relacionar sexualmente com crianças nem fixação por elas. Um estudo recente conduzido pelo psiquiatra Alexandre Martins Valença, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostra que agressores sexuais em geral são pessoas conhecidas da criança e consideradas “normais”, sendo capazes de entender a gravidade de seus crimes.
O criador da psicanálise, Sigmund Freud, já sabia disso em 1905, quando publicou Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. “A experiência ensina que não se observam entre os loucos quaisquer perturbações da pulsão sexual diferentes das encontradas entre os sadios, bem como em raças e classes inteiras. Assim, com a mais insólita frequência encontra-se o abuso sexual infantil entre aqueles que cuidam de crianças, simplesmente porque a eles se oferece a melhor oportunidade para isso”, escreveu.
É comum que o abusador sexual tenha algum tipo de vantagem sobre a criança ou o adolescente, com acesso facilitado, e que esteja num nível hierárquico maior, como um parente ou amigo íntimo da família. Uma de suas características é que nem sempre sente forte e contínuo interesse por crianças, diferentemente do pedófilo.
Até hoje, me recordo de pouquíssimos casos que atendi em que a pessoa acusada de cometer abuso sexual infantil demonstrasse compulsão sexual ou fixação por crianças. O mais comum é escutar histórias em que, por exemplo, um avô – casado e com vida sexual ativa com a esposa – tenha tocado as partes íntimas da neta depois de a menina, um pouco mais crescida, se sentar em seu colo com vestido. Ou situações na escola, em que um garoto maior tenha chamado um mais novo para ir ao banheiro para comparar o tamanho do órgão genital e pedido que a criança menor o tocasse. Certa vez, uma tia que costumava cuidar do sobrinho foi flagrada pela família acariciando sexualmente a criança enquanto beijava seus lábios, sem violência física. Em todos esses casos, não se observou nenhum tipo de compulsão. Nossa tendência, no entanto, é alimentar um imaginário estereotipado a respeito da figura do abusador. Pessoas completamente diferentes – de qualquer classe social, etnia, profissão – são capazes de cometer esses atos.
CIVILIZAR, REPRIMIR, SUPRIMIR
Muito além da questão moral ou criminal, o abuso sexual é contra a cultura. Há rompimento da aliança social. No livro Pacto edípico e pacto social (Rocco, 1987), o psicanalista brasileiro Hélio Pellegrino, falecido em 1988, afirma que, na idade adulta, se acrescenta ao pacto com a “lei da cultura”, centrado em torno da renúncia aos impulsos sexuais, acrescentar-se o pacto social. “Civilizar é, portanto – e por um lado –, reprimir ou suprimir. A lei não existe para humilhar e degradar o desejo, mas para estruturá-lo, integrando-o no circuito do intercâmbio cultural”, destaca.
Bem, se a questão tem a ver com a cultura, qual seria então o impedimento da interação sexual com crianças pequenas nos casos em que o círculo social tolera? Não são raras as vezes em que, depois de ministrar alguma palestra sobre o tema, alguém me procure em privado para fazer essa pergunta. Para nos ajudar nessa reflexão, vejamos o que acontece, por exemplo, em algumas regiões do Afeganistão. O documentário The dancing boys of Afghanistan (Os meninos dançarinos do Afeganistão, em tradução livre), de 2010, dirigido pelo jornalista afegão Najibullah Quraishi, aborda a centenária tradição bacha bazi (meninos para brincar), em que homens ricos e influentes sequestram ou compram garotos pobres, entre 10 e 18 anos, para serem usados como escravos sexuais. Nessas situações, meninos maquiados, vestidos com roupas femininas, devem se apresentar dançando e, assim, satisfazer sexualmente homens mais velhos. Símbolo de autoridade e influência, a prática foi proibida pelos talibãs quando estiveram no poder no Afeganistão, entre 1996 e 2001, mas ressurgiu nos últimos anos e, surpreendentemente, é amplamente aceita em um país que condena a homossexualidade, sendo comum em zonas rurais do sul e do leste do país, assim como nas regiões tayikas do norte, segundo informações divulgadas pela agência de notícias francesa France-Presse (AFP).
Um relatório de 2014 da Comissão Independente de Direitos Humanos do Afeganistão (AIHRC, na sigla em inglês, que pode ser consultado em http://www.aihrc.org.af/home/research-reports/3324) denuncia estupros constantes desses garotos. O documento diz ainda que eles “apresentam sinais de estresse e de perda da autoestima, desesperança e pessimismo”. O bacha bazi desperta temor entre as outras crianças, mas também sentimentos de vingança e hostilidade. O que sustenta a prática, segundo a AIHRC, é a falta de um estado de direito e de acesso à Justiça, assim como a corrupção, o analfabetismo, a pobreza, a insegurança e a presença de grupos armados.
E, mais uma vez, recorremos também ao criador da psicanálise. Freud revolucionou e ampliou a compreensão sobre a sexualidade, trazendo a ideia de que ela está presente desde a infância e que, nesse momento, está ligada à sobrevivência e ao prazer que a criança encontra no próprio corpo, por exemplo, quando suga a mamadeira. No entanto, jamais defendeu a vivência da sexualidade infantil como na vida adulta. Isso seria uma violência e poderia provocar traumas, pois o psiquismo da criança não é capaz de traduzir as sensações provocadas por esse tipo de experiência.
DA PRODUÇÃO AO CONSUMO
Resumir o complexo fenômeno da violência sexual de crianças à figura do pedófilo nos impede de olhar com mais atenção para muitos fatores envolvidos na violência sexual infantil, como as desigualdades de poder, que, segundo Lowenkron, é problemática central dessa discussão. “O estigma em relação à pedofilia tende a nos levar a focar na ‘ameaça’ das perversões, como se a causa do abuso sexual infantil e da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes pudesse ser atribuída predominantemente a uma tara ou perversão sexual”, afirma a pesquisadora.
De fato, a pornografia infantil, por exemplo, envolve uma relação de mercantilização dentro de uma estrutura capitalista muito bem organizada, que não se resume a um diagnóstico ou a uma estrutura psíquica. Nesses casos, o ciclo começa na produção, passa pela comercialização e a divulgação e se encerra no consumo das imagens.
A antropóloga detalha o circuito da exploração sexual. No primeiro estágio, crianças e adolescentes participam de alguma cena de sexo explícito ou pornográfica. A segunda etapa da cadeia é a comercialização do material produzido, o que torna a pornografia infantil um negócio lucrativo e retroalimenta a produção de fotos e vídeos infantis. O terceiro passo é a divulgação. A aquisição, a posse e o armazenamento dessas imagens fecham assim o ciclo que inclui todas as etapas do fenômeno da pornografia infantil. É importante saber que qualquer envolvimento, por menor que seja, em qualquer parte desse circuito é crime.
Nesse contexto, o voyeurismo é absorvido como demanda de consumo e os pequenos, tratados como mercadoria erótica. Esse processo mais amplo de abuso e exploração sexual comercial alimenta os anseios de lucro da máfia de aliciadores e vendedores de crianças, bem como produtores e negociantes de pornografia infantil.
A maioria dos pedófilos não se relaciona sexualmente com menores de idade de forma direta. No livro Child pornography: an internet crime (Psychology Press, 2003, não publicado no Brasil), os pesquisadores de comunidades e redes de pedofilia Max Taylor e Ethel Quayle observam que quem consome pornografia infantil costuma colecionar, catalogar e classificar imagens, interagindo sexualmente com elas por meio da masturbação e da fantasia. Muitos passam horas na rede em busca de pornografia infantil ou em salas de bate-papo na internet, onde se sentem à vontade para dar vazão a suas fantasias, ambiente que, segundo Lowenkron, é um lugar privilegiado de falseamento das identidades e outras fabulações.
Aqui é preciso esclarecer que, ainda que não pratiquem sexo com menores de idade, esses indivíduos participam do abuso contra crianças, pois consomem pornografia infantil. Nesse ponto, não faz diferença se a pessoa é pedófila, abusadora, doente mental ou apenas curiosa – qualquer envolvimento com cenas de sexo com menores de idade é crime, pois a integridade física e psicológica da criança está em primeiro lugar e quem atentar contra isso deverá sofrer as sanções penais cabíveis. Já em relação ao tratamento ou a qualquer tipo de intervenção, a distinção é imprescindível – é o que permite diferenciar cada situação e elaborar estratégias para lidar com o problema.
A FANTASIA E O ATO
Pornografia, prostituição e tráfico e venda com propósitos sexuais com crianças são formas de exploração sexual infantil. Sem dúvida, os casos envolvendo a mercantilização do corpo são os mais complexos e hediondos de que me recordo. Ainda assim, algo pode ser feito. Eu me lembro de uma adolescente que, com apenas 16 anos, já estava numa rede de exploração havia uma década. Aos 6 anos, começou a fazer favores sexuais para estranhos em troca de comida para a mãe e os irmãos, a pedido da própria família, que vivia na miséria. Foi assim que aprendeu a ganhar balas, bolachas, brinquedos. Com apenas 10 anos, negociava em dinheiro. O lucro ia para o aliciador e o pouco que sobrava acabava nas mãos do traficante, em troca de alguma droga.
Dependente de cocaína e outros entorpecentes, a garota passou boa parte da vida nessa rede de exploração, em meio à degradação, numa área pobre no limite entre São Paulo e Guarulhos – uma realidade bem conhecida pela mídia e pela população local. Seus clientes? Caminhoneiros de todo o Brasil que continuam, ainda hoje, parando por lá antes de seguir viagem. Um pequeno detalhe sempre chamou atenção da garota: a aliança dourada no quarto dedo da mão esquerdados clientes.
Depois de muito esforço multiprofissional, uma boa articulação com o Sistema de Garantia de Direitos (SGD), infindáveis discussões de caso e perseverança dos profissionais envolvidos e da adolescente, ela saiu da rede de exploração sexual. Não sem intimidações e ameaças, inclusive de morte a ela e sua família. De um ponto de vista mais subjetivo, ainda há muito trabalho pela frente com a adolescente, mas ela começa a vislumbrar outras possibilidades de experiência, de trocas afetivas e de relações.
Muitos que cometem atrocidades, como nos exemplos mencionados aqui, recebem o diagnóstico de perversão (ou, como prega o senso comum, de psicopatia), como se o fenômeno em si, o ato moralmente condenável, correspondesse a determinada estrutura psíquica. É muito comum, mesmo entre profissionais, a associação entre perversão e crueldade.
Entretanto, para quem trabalha com esses casos, faz toda a diferença distinguir entre o sentido comum do termo “perversão” (que está associado com depravação, imoralidade, desumanidade, maldade) e o da perversão como diagnóstico. É o que permite orientar o tipo de intervenção. Mas isso não é nada fácil. O jeito de pensar a saúde mental é, em grande parte, orientado pela observação e comparação dos comportamentos. Assim, uma pessoa com determinadas condutas pode ser enquadrada em tal categoria. Desse ponto de vista, é natural atribuir o diagnóstico de perversão a alguém que tenha praticado um ato que julgamos perverso.
A psicanálise, entretanto, tem uma proposta diagnóstica que considera os fenômenos apenas como ponto de partida, mas não como definidores da estrutura psíquica. Diagnosticar um sujeito perverso, assim, requer escutar sutilezas. Em Kant com Sade (1963), o psicanalista francês Jacques Lacan nos ensina que não basta detectar um cenário de gozo perverso, mas é preciso identificar a posição que o sujeito ocupa diante do outro na fantasia e como isso aparece em relação ao seu desejo inconsciente.
Afinal, como reconhece Freud (1905), a perversão sexual é encontrada em todos. “A disposição às perversões é a disposição originária e universal da pulsão sexual dos seres humanos”, escreve. No clássico artigo O estranho, de 1919, o criador da psicanálise faz também uma importante distinção entre construções imaginárias e ato, esclarecendo que a fantasia é capaz de realizar, sem realizar, o desejo. E completa que, na fantasia, o sujeito se encontra diante de algo que diz respeito a si, mas que vê como estrangeiro, que gera prazer, mas também é repugnante.
Os mais diferentes e insólitos tipos de satisfação estão presentes em todos nós, de forma atenuada, disfarçada ou restrita, segundo o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia, da Universidade de São Paulo (IP-USP). “Não é pela ausência ou presença dessas tendências que podemos definir a perversão. Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos. O problema para definir a perversão, nesse sentido, é que temos de resolver o chamado paradoxo ético do ato. Não basta saber se ele é conforme ou contrário à lei, mas saber qual tipo de experiência ele produz em quem o realiza e o tipo de posição que ele confere ao outro”, esclarece.
Aliás, há vários tipos de fantasias perversas comuns, como exibicionismo, voyeurismo, sadismo e masoquismo – mas, novamente, não é a categoria da pulsão que determina a perversão como estrutura psíquica. Dunker não nos deixa esquecer as montagens perversas da vida cotidiana. “Nessa medida, há tanta perversão nos excessos alimentares – no bulímico e no anoréxico – quanto no discurso de vigilância sanitária sobre nossa alimentação, para não falar do exibicionismo de uma infância sexualizada pela moda, o voyeurismo de nossos reality shows, a estética pornográfica de nossas produções culturais, o sadismo de nossos programas de violência ao vivo, o masoquismo do trabalho e da ‘vida corporativa’, o descompromisso ‘líquido’ de nossa vida amorosa, a cultura da drogadição (legal e ilegal) e tantos fenômenos”, destaca.
Segundo o psicanalista, ao contrário da perversão clássica, em nossos tempos a perversão é flexível, silenciosa e pragmática. E as articulações que a constituem, como a transgressão, a exageração e a dissociação, se tornaram aspectos decisivos do nosso laço social cotidiano.
TERRENO NEBULOSO
Muitos que souberam do caso de Yago rapidamente propuseram que a melhor resposta ao relato de um adolescente que confessa desejar crianças sexualmente seria tratar a situação no âmbito judicial e o mais indicado seria a internação do rapaz na Fundação Casa (antiga Febem), com privação total de liberdade. Embora precipitada, a ideia de encarceramento parece justificável, pois abusadores existem e o adolescente diz sentir atração sexual por crianças.
Em geral, nosso primeiro impulso é procurar resguardar os pequenos de um crime tão abominável. Desde 2014, o Ministério da Saúde (MS) prevê aos serviços públicos de saúde em todo o território nacional, por meio da portaria GM/MS nº 1.271, a obrigatoriedade de notificação imediata (24 horas) de casos de violência sexual à Secretaria Municipal de Saúde. A psicóloga judiciária Elizabeth Constantino, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, entretanto, chama atenção para o excesso de judicialização dos casos. Ela argumenta que a expectativa de que as instituições legais possam trazer a solução para o problema da violência sexual contra crianças tende a nos fazer levar essas situações principalmente à Justiça, embora, não raro, seria indicado tratar o problema também em outros âmbitos, no campo social, político e psíquico.
Precisamos tomar muito cuidado para não colaborar com injustiças tão graves quanto as que pretendemos combater. No entanto, é um grande desafio atender esses casos por causa da repulsa que pode causar no profissional. Assim, muitas vezes, agimos sem procurar fazer um exercício de escuta que nos permita avaliar as particularidades de cada situação e tomar melhores decisões. Mas, sem maior neutralidade, que impacto nossas ações podem causar?
O filme A caça (2012), de Thomas Vinterberg, retrata de forma admirável a complexidade que se esconde atrás da intensa perseguição que costuma ocorrer nessas situações. O longa conta a história de uma criança que, depois de entregar uma cartinha de amor ao professor e se sentir desprezada, insinua à diretora da escola que sofreu abuso sexual. Com uma averiguação questionável, o relato se torna evidência do crime e, a partir daí, os mecanismos sociais para punir o “pedófilo” são acionados. A acusação transforma o professor num monstro aos olhos de quem está ao redor, e isso traz consequências desastrosas.
A reação da diretora e da comunidade, porém, é natural. O terreno é nebuloso. Assim como Yago, o personagem do filme acusado de pedofilia apresenta certa ambiguidade e tem uma atividade que favorece o contato com crianças. O que realmente teria ocorrido? É muito difícil fazer uma avaliação objetiva. Até mesmo quem se propõe a escutar esses casos também pode ser visto com maus olhos. Ainda assim, com todas as dificuldades que se apresentam, não podemos perder de vista que a complexidade humana exige avaliações profundas, cuidadosas e com muita seriedade, pois a linha de demarcação entre normalidade e patologia é frágil e incerta.
THE DANCING BOYS OF AFGHANISTAN (2010): documentário trata do sequestro de garotos para serem vendidos como escravos sexuais.
O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO
As previsões que encontramos no Código Penal brasileiro que tipificam os crimes sexuais contra vulnerável, descritos nas categorias “estupro de vulnerável” e “corrupção de menores”, permitem o enquadramento daqueles que venham a incorrer em:
- Art. 217-A – Estupro de vulnerável
- Art. 218 – Mediação de menor de 14 anos para satisfazer a lascívia de outrem
- Art. 218-A – Satisfação da lascívia mediante a presença de menor de 14 anos
- Art. 218-B – Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de criança, adolescente ou vulnerável.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também trata de crimes envolvendo o abuso sexual infantil e prevê responsabilização criminal nos casos em que há:
- Art. 240 – Utilização de criança ou adolescente em cena pornográfica ou de sexo explícito
- Art. 241 – Comércio de material pedófilo
- Art. 241-A – Difusão de pedofilia
- Art. 241-B – Posse de material pornográfico
- Art. 241-C – Simulacro de pedofilia
- Art. 241-D – Aliciamento de menores (O art. 241-E se trata de norma explicativa dos crimes previstos no art. 240, art. 241, art. 241-A a art. 241-D, do ECA).
A VIOLAÇÃO DA ALIANÇA
Vivemos em uma sociedade em que os relatos de violação sexual são muito frequentes. “Abusa quem pensa que pode forçar um beijo. Legitima a violência sexual a pessoa que apresenta um programa de televisão e chama uma fã de ‘arrombada’ ou que convida um ator para relatar um caso de estupro como se fosse piada. As estatísticas de abuso infantil são graves e, muitas vezes, não consideramos aqueles que estão próximos como possíveis agressores. Muitos acham aceitável pagar para ter sexo com outro ser humano ou consumir filmes sem se importar se há crianças e adolescentes envolvidos”, denuncia a escritora feminista Maria Gabriela Saldanha, apresentadora do programa online Elas por Elas, veiculado pela Web Radio Petroleira. Ela destaca dados nacionais escabrosos: “Qual é a solução para um país que hospeda quase 80% dos sites do mundo que exibem sexo com crianças, sendo que 12% do total deles expõem abusos contra bebês com menos de 6 meses? Qual é a solução para um país que cria mil novos sites desse tipo por mês? Qual é a solução para um país onde aproximadamente 70% dos abusos notificados ocorrem com menores, sendo que 50,7% envolvem crianças de menos de 13 anos? Qual é a solução para um país onde a média de idade dos relatos de primeiro assédio é de 10 anos?”, questiona.
ONDE PROCURAR AJUDA?
Encontrar serviços públicos que atendam pessoas que reconhecem sentir atração sexual por crianças nem sempre é fácil, mas existem algumas opções, como o Ambulatório de Transtornos da Sexualidade (ABSex), da Faculdade de Medicina da Fundação do ABC (FMABC), em Santo André. As consultas podem ser agendadas no próprio ambulatório de segunda a sexta-feira, das 8h às 16h, na Avenida Príncipe de Gales, 821, em Santo André. Há também um programa terapêutico para esses casos no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia (Nufor) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP). As consultas pelo telefone (11) 2661-7929. O Centro de Estudos Relativos ao Abuso Sexual (Cearas), do Instituto Oscar Freire, em São Paulo, atende famílias incestuosas e indica especialistas, telefone (11) 3061-8429. Em Belo Horizonte, o Centro de Estudos e Atendimento de Abuso Sexual, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), oferece tratamento. Informações pelo telefone (31) 3409-9458.
LUCA LOCCOMAN – é psicólogo e psicanalista, especialista em atendimento clínico infantil do Serviço de Proteção a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (SPVV), de São Paulo.
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