TECHNOFERENCE
Pesquisa mostra que a tecnologia interfere no convívio dos pais com os filhos, afetando o comportamento das crianças e trazendo riscos de problemas emocionais e de saúde.
No início do mês de junho, um vídeo exibindo um coral infantil de uma escola privada do Rio de Janeiro ganhou espaço nas redes sociais do país. As crianças emocionaram os espectadores ao apresentarem uma música que falava sobre passar tempo demais conectado no celular e não com os filhos. Em um gesto sofisticado, os filhos estavam criticando os pais que, segundo a própria letra da música cantada, permaneciam: “de corpo presente, cabeças ausentes, visitando um mundo paralelo”. A letra prossegue com versos que criticam o uso excessivo de bluetooth, wi-fi, selfies e diferença de energia dos “dedos” e no “coração”.
Não há dúvidas de que o celular se transformou no HUB* social do século XXI, que nos conecta ao mundo de uma forma diferente e nos impele a responder mensagens de parentes, do trabalho ou de pessoas a quem vendemos ou de quem compramos serviços. É um HUB que comunica de forma eficiente e rápida, mas em troca nos cobra o tempo e exige atenção dedicada aos bipes e “pingos” da enxurrada de mensagens recebidas.
Um estudo publicado em 2018 mostrou que existe uma correlação entre deixar de interagir com uma criança para verificar o celular e o aparecimento de problemas comportamentais nessa criança. O trabalho investigou a chamada “technoference” – termo cunhado a partir das palavras “tecnologia” e “interferência”. Brandor MacDaniel e Jane Radesky, da Universidade do Estado do Illinois e da Universidade de Michigan, respectivamente, entrevistaram pais norte-americanos, os quais, em sua grande maioria, relataram que o uso da tecnologia interrompia as interações entre as crianças três ou mais vezes por dia. Os pesquisadores constataram que isso se relacionava, nas crianças, a comportamentos como agitação, frustração, irritação e fúria. Segundo os pesquisadores, comportamentos internalizados e externalizados estão associados à technoference. Dito de outro modo, as crianças começam a agir ou talvez a chorar e a agitar-se mais quando se sentem desconectadas de seus pais devido à frequente interrupção pela tecnologia. Alguns pais tentam dividir a atenção entre o presencial e o virtual, dizendo: “pode falar que estou ouvindo” – enquanto permanecem com os olhos vidrados e os dedos tocando a tela. Mas não adianta, a criança percebe que ela não está recebendo toda a atenção que solicita e precisa para se comunicar. É verdade também que nosso cérebro é limitado demais para lidar com eventos simultâneos. No mínimo, a comunicação entre emissor e receptor, nesse contexto disputado, é prejudicada. O prejuízo é imediato e também futuro, haja vista que o comportamento dos pais no uso de tecnologia é um fator importante para promover resultados positivos do seu uso pelas próprias crianças – é o que aponta um estudo realizado por pesquisadores holandeses. Nikken (2017), que avaliou o tempo que os pais e as crianças passam em diversas mídias, levando em consideração variáveis quantitativas (status socioeconômico, nível educacional, número de dispositivos digitais com telas em casa, número de horas despendidas pelas crianças em mídias) e qualitativas (tipo de conteúdo consumido e facilidade na mediação com as crianças).
Como esperado, o uso de tecnologias pelos pais é um importante preditor do consumo de tecnologia pelas crianças. Crianças criadas em famílias com alto uso de tecnologia são motivo de preocupação, podendo estar associado a maior risco de excesso de peso, problemas relacionados à concentração, TDAH, baixo desempenho escolar etc. Essas crianças são usuárias mais proficientes e interagem mais com conteúdos de entretenimento e educativo. Os pais desse grupo também se sentem mais confiantes para realizar uma mediação e escolher conteúdos educacionais específicos e configurar uma dieta balanceada de atividades analógicas e digitais. Possivelmente, esses pais têm menos medo de tecnologia e estão mais aptos a utilizá-la. No entanto, quando há uma “overdose” de possibilidades de tecnologias em casa, diminui a familiarização da tecnologia pela criança, gerando mais ansiedade e menor envolvimento dos pais com os filhos. Outro resultado revelador do estudo apontou que as famílias com alto uso de tecnologias tendem a ser menos instruídas e menos ricas, mas são equipadas com mais telas em casa, inclusive no quarto da criança. Em 14% das famílias desse grupo, crianças de O a 7 anos têm pelo menos uma tela eletrônica (TV, videogame, tablet) no quarto, o que pode explicar o alto uso de tecnologia por essas crianças.
Em minhas palestras sobre uso de tecnologias digitais e videogames sempre alerto sobre essa situação, recomendando para que os dispositivos digitais, tanto da criança quanto dos pais, permaneçam sempre em áreas comuns, justamente para favorecer o convívio familiar. Em relação ao uso do celular é necessária uma vigilância constante do próprio comportamento. A maioria de nós acredita que o uso que faz dos aparelhos não afeta nossas crianças, mas as pesquisas mostram que as pessoas costumam subestimar a quantidade de tempo que gastam em seus aparelhos e que é muito fácil o celular levar-nos a situações preocupantes, como o uso em demasia ou o uso como uma tentativa de regular a tristeza e outras emoções. Se não somos conscientes e não prestamos atenção nisso quando estamos com nossos filhos, é muito fácil sermos atraídos para o celular em prejuízo da interação face a face com eles.
*HUB (traduzido do inglês “pivô”) ou “concentrador” é o processo pelo qual se transmite ou difunde determinada informação, tendo, como principal característica, que a mesma informação está sendo enviada para muitos receptores ao mesmo tempo (broadcast). Este termo é utilizado em rádio, telecomunicações e em informática.
TIAGO J. B. EUGÊNIO – é mestre em Psicobiologia e Estudos do Comportamento Humano. É designer de aprendizagem na Rhyzos Educação e escreve sobre educação, tecnologias e Neurociências. E-mail: tiagoeugenio20@gmail.com:site: www.tiagoeugenio.com.br
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