APRENDA A OUVIR SEM JULGAR
Em um mundo onde todos têm espaço para falar, mas poucos se mostram dispostos a escutar, é natural nos sentirmos, por vezes, tão desconectados e fragilizados.
Nancy havia tentado tirar a própria vida mais de uma vez e sua postura indicava que estava longe de desistir da ideia. Até o dia em que o psiquiatra da clínica de prevenção ao suicídio precisou tendê-la após um longo período sem sono e sem descanso. Com a percepção abalada pelo esgotamento, ele teve a sensação de estar vendo o mundo pelos olhos da paciente. E não era um mundo colorido. Essa experiência resultou em uma nova abordagem, mais próxima da perspectiva de Nancy, sem o julgamento da mente analítica. Ele mostrou que compreendia a gravidade da sil1iação. Disse que se ela realmente desistisse da vida, ele sentiria falta dela, mas não a julgaria. Assim que disse aquilo, se arrependeu: e se suas palavras fossem interpretadas como permissão? Mas naquele momento, a paciente o olhou nos olhos pela primeira vez e disse: “Se você realmente consegue entender as minhas razões, talvez eu não precise me matar”. E, assim, seguiram a terapia que devolveu sentido à vida da menina.
Nancy é o codinome da garota que mudou para sempre a forma como o psiquiatra americano Mark Goulston trata seus pacientes. A partir daquele episódio, ele percebeu que olhar e escutar são diferentes de perceber, de buscar uma conexão verdadeira a partir de uma escuta sem julgamentos. Ele desenvolveu uma série de técnicas de comunicação que fazem com que outras pessoas sintam-se verdadeiramente ouvidas e compreendidas. E estendeu esse conhecimento para além do consultório com seu livro Just Listen (Simplesmente Ouça), valioso a qualquer um que busque relações mais significativas e gratificantes – do mundo dos negócios ao núcleo familiar.
Em um cenário bem diferente das clínicas de prevenção a suicídio, outro homem salvou centenas de vidas usando o mesmo recurso: ouvidos interessados. O sargento Kevin Briggs, conhecido como “guardião da Golden Cate”, encontrou formas eficazes de se comunicar com aqueles a quem, literalmente, estendia o braço.
Ao fazer perguntas e ouvir com atenção, impediu cerca de 200 pessoas de pularem da ponte nas duas décadas em que trabalhou ali. Uma das táticas que ele infinitivamente usava para alcançar um nível maior de conexão com aquelas pessoas era tirar a jaqueta e vestir-se como elas: só de camiseta, mesmo em temperaturas muito baixas. E então, em meio à conversa, as convidava para uma bebida quente para que ambos pudessem se esquentar. Seus relatos estão no livro The Guardian of The Golden Gate (O Guardião da Golden Gate).
São histórias que evidenciam que a escuta atenta é uma das formas mais eficazes de conexão. E por isso salva vidas. Somos tão dependentes de afeto quanto de alimentos e sono. Apesar de menos evidentes que as dores físicas, as dores sociais pedem buscas desesperadas por alívio. Drogas de todos os tipos, lesões auto infligidas, sono excessivo e, de forma extrema, o suicídio, são sedutores convites para a fuga de um mundo que se mostra hostil e de uma realidade à qual pode parecer muito difícil de se adaptar.
Essa dificuldade está assustadoramente comum: em países desenvolvidos, o suicídio hoje representa um risco maior para os jovens que qualquer doença física. Em todo o mundo, o número de pessoas que desafiam o instinto de sobrevivência para aliviar aflições geralmente incompreendidas cresce em índices alarmantes.
As cansas podem não divergir de um único fator. Mas não podemos ignorar o peso do contexto social nessas tendências. Afinal, não se trata de um fenômeno homogêneo, mas extremamente suscetível a variáveis fáceis de identificar. Ainda no final do século XIX, o sociologista francês Émile Durkheim analisou dados de diversos países europeus e percebeu a estreita relação entre a economia de uma sociedade e o suicídio. A medida que o país enriquecia, as taxas de suicídio aumentavam.
O individualismo resultante de uma sociedade que nos convence, desde cedo, de que o sucesso está ao alcance de todos e depende das nossas próprias escolhas seria, segundo ele, uma das consequências da Modernidade que podem parecer penosas para muitos. Em paralelo a essa carga de responsabilidade que carregamos sozinhos, somos expostos às inúmeras possibilidades de sucesso, representadas por valores extrínsecos, produtos e estilos de vida que, ao se apresentarem ao nosso alcance, nos fazem permanentemente insatisfeitos com o próprio desempenho quando não podemos tê-los.
As pressões sociais e o individua lismo analisados por Durkheim encontram sua representação extrema na forma como hoje nos relacionamos. A carga que nos foi lançada em sua época, quando começamos a nos desprender dos grupos sociais para uma busca solitária aos novos conceitos de sucesso, passa a ser muito maior quando as conexões são fragilizadas por uma comunicação ineficaz. Vale analisar a comunicação feita hoje com uma carga virtual que pauta as relações gratificantes dependentes da fama e da quantidade de curtidas em redes sociais.
Mas quando aprendemos a escutar atentamente e encontramos alguém que nos olhe nos olhos e nos ofereça consolo, a felicidade nos parece tão possível e tão inalcançável ao mesmo tempo.
MICHELE MULLER – é jornalista, pesquisadora, especialista em Neurociências, Neuropsicologia Educacional e Ciências da Educação. Pesquisa e aplica estratégias para o desenvolvimento da linguagem. Seus projetos e textos est reunidos no site www.michelemuller.com.br
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