A ANGÚSTIA DOS ACUMULADORES
O sintoma de guardar muitos objetos, mesmo inúteis, é catalogado como transtorno de acumulação e essa classificação é apoiada no comportamento do indivíduo, não levando em conta a subjetividade, afetos, pulsões, desejos e gozos.
O transtorno de acumulação (TA), que pode ser definido como o gosto imoderado por acumulação, é um distúrbio psíquico ainda muito pouco conhecido, no qual o indivíduo acumula os objetos, sem os utilizar, com uma dificuldade maior de se desapegar, mesmo que esses sejam inúteis, perigosos, volumosos e insalubres. Essa acumulação afeta o espaço de vida e a mobilidade do sujeito e dos seus próximos. Pode ser a causa de incêndios, de condições insalubres, ferimentos, 1mas, sobretudo, de um empobrecimento do funcionamento social e prejuízo dos relacionamentos familiares. Esses sujeitos demonstram medo enorme de perder ou se desfazer dos objetos que possam vir a ser importantes no futuro. Por isso, desenvolvem determinadas crenças acerca da posse e privação de objetos. São sujeitos que perderam o senso de autocontrole, têm dificuldades na organização de seus espaços físicos, tornando o ambiente de convívio praticamente inabitável.
O TA possui uma diferença afetiva significativa que serve para distinguir um colecionador de um acumulador. Essa diferença é que o colecionador tem orgulho e, muitas vezes, se vangloria disso para as pessoas que o interessam. Enquanto o acumulador, em geral, sente vergonha e procura esconder dos outros, com o objetivo de não mostrar o transbordamento da desorganização do seu ego sobre os objetos da realidade.
O acumulador, segundo a Psicanálise, para evitar a ameaça de castração que vem do Outro em forma de críticas, censuras e desvalorização de sua pessoa, ou grupo social, usa principalmente o mecanismo de defesa de “isolamento”, o que conduz a um paradoxo, pois ao tentar preencher o seu vazio acaba criando outro vazio social.
Já o colecionador terá uma intenção inconsciente de ordenar os objetos, a través da classificação, seriação e catalogação. Acreditando, assim, ser valorizado, reconhecido e amado pelo outro, ao preço de ficar recalcada a significação inconsciente do afeto ligado ao objeto, desligando-se da representação. E, com isso, além do isolamento do afeto em relação à representação, ainda tem o evitamento desse afeto. Portanto, é possível afirmar que existe uma ênfase nesse caso, do mecanismo de defesa “anulação”.
Essa diferença é muito marcante na clínica psicanalítica, desde que Freud criou essa nomenclatura nosográfica chamada neurose obsessiva compulsiva. Ou seja, o acumulador tem uma tendência maior em utilizar do mecanismo de defesa “o isolamento”, enquanto o colecionador tende a utilizar como mecanismo de defesa mais a anulação que o isolamento.
O avanço das Neurociências, através das tecnologias das imagens na Medicina, permite mapear os sinais de resposta cerebral a partir da estimulação comportamental, e vem cada vez mais confirmar o que a clínica psicanalítica já havia distinguido através do pai da Psicanálise, que, diga-se de passagem, podia ser considerado um dos melhores neurologistas da sua época. E essa constatação foi confirmada a partir da diferenciação que o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, classificação norte-americana de Psiquiatria) se viu obrigado a fazer entre TOC e acumuladores. Atualmente, o transtorno de acumulação compulsiva está classificado isoladamente, o que demonstra um grande avanço das Neurociências.
Embora o diagnóstico do TOC apresente semelhanças com o TA, um a das principais diferenças entre essas duas psicopatologias é que os sujeitos que acumulam apresentam pensamentos obsessivos intrusivos, rituais ou sentimentos de angústia e desconforto emocional. As pessoas tentam resistir, mas não conseguem parar o pensamento, agem com uma pressão contínua, gerando muita angústia ao se desfazer dos objetos que possuem.
O DSM-5, oficialmente publicado em 18 de maio de 2013, inclui em seus novos diagnósticos o transtorno de acumulação. Utiliza um critério de bom insight (autocrítica pessoal) e ausência de insight (sintomas delirantes), para diferenciar e reconhecer os pensamentos obsessivos como sintoma de um transtorno mental, situação em que a convicção da veracidade dos sintomas pode alcançar características psicóticas.
O diagnóstico de TA foi criado para descrever indivíduos que acumulam objetos e experimentam sofrimento e prejuízo pela persistente dificuldade de se desfazer ou de se separar de determinados bens (independentemente do seu real valor) devido à percepção de que necessitam guardar esses itens, apresentando angústia frente a descartá-los.
Os estudos mais recentes apontam que 2,3% a 4,6% dos casos de TA concernem mais aos homens em relação às mulheres, e sua frequência aumenta com a idade. Isso pode variar de um processo funcional e de adaptação normal até a de mecanismos excessivos ou patológicos. Mesmo quando é excessivo não se pode falar imediatamente que é patológico, já que o comportamento de colecionar e acumular objetos encontra-se presente em todas as populações, variando entre espectros. Ressalta-se que esse tipo de comportamento pode ser considerado adaptativo em momentos de privação, a fim de preservar e assegurar a sobrevivência da espécie humana. Contrário a isso, é possível verificar a gravidade do comportamento das pessoas que acumulam patologicamente.
Estas acabam se envolvendo em processos judiciais, despejos, reclamações de vizinhos ou impedidas judicialmente de cuidar de sua prole. Os ambientes entulhados, com odores insuportáveis, impedem o desempenho de atividades básicas relacionadas à alimentação, ao sono e higiene, tornando os espaços inócuos e comprimidos. A vida vai se estreitando, a desordem interna vai se materializando nos espaços externos.
Esse tipo de distúrbio pode aparecer em diversas estruturas clínicas, sendo registrado na esquizofrenia, como um a defesa contra a despersonalização, com a sua característica de angústia de fragmentação do corpo. Mas também nas neuroses, tomando um sentido de sintoma para tentar solucionar, através da negação, a ameaça de castração, advinda do complexo de castração. Em ambos, deve-se temer pela frequência desses distúrbios, tanto na psicose como na neurose, pelo perigo em que a pessoa se coloca.
Tendo demarcado uma pequena borda entre as visões dos diferentes saberes que abordam esse assunto, é possível dar um passo a mais na visão que a Psicanálise pode oferecer.
FENÔMENO
Primeiramente, vale destacar que a Psicanálise irá partir do fenômeno para chegar à causa deste. O fenômeno em causa que está sendo tratando é o sintoma de acumulação. Se o sintoma acumulação foi nomeado, é porque tem um motivo. Tal motivo decorre da própria noção que a Psicanálise tem do que é um sintoma. O sintoma é a representação da realização disfarçada de um desejo inconsciente, que por ter sido censurado, sofreu a ação do recalcamento e, posteriormente, tal recalcamento encontrou um caminho para se manifestar, fazendo uma conciliação entre o Isso, enquanto desejo originário, e o Supereu, que o censurou. O sintoma será mais ou menos resistente à interpretação, dependendo da viscosidade da libido investida no mesmo.
Desse modo, quando se diz que a acumulação é um sintoma, concebe-se que ele é efeito da sexualidade do ser falante. Que ele é um dizer de outra coisa, que diz respeito à sexualidade e que está deslocada e condensada, metonímica e metaforicamente.
Esse sintoma de acumulação é a expressão inconsciente de um desejo recalcado, desejo esse que revela o indivíduo como sujeito e, ao mesmo tempo, assujeitado pelas leis da linguagem, assim como revela esse indivíduo enquanto ser falante, que tem um gozo próprio. Tal gozo provém do ponto de fixação que predominou para essa pessoa no desenvolvimento de sua sexualidade infantil. Esse ponto de fixação, Freud o chamará de disposição da libido.
Os acumuladores apresentam uma forte fixação libidinal na fase sádica anal. Por isso, querem reter para si todo objeto que pode ser dispensado para o outro, privando este do objeto libidinal. Tais pessoas têm fortes tendências sádicas em relação ao outro e expressa isso ao acumular para si os objetos que, inconscientemente, são os representantes desse objeto sádico anal, que é tido como valioso. Esses objetos passam a dominar a vida da pessoa, são investimentos simbólicos, alheios à consciência, e aprisionam as pessoas em seu habitat. Estas, não conseguindo se desfazer das coisas úteis e inúteis, tendem, muitas vezes, ao impulso de comprar ou catar lixo ou restos alheios ou coisas que são determinadas pelo desejo infantilizado. Os acumuladores procuram “forcluir” a ética do desejo daquele que leva em consideração a castração simbólica, que, por sua vez, possibilita o declínio do complexo de Édipo. Para evitar os riscos de ter que pagar com o seu ser, e, com isso, enfrentar o mundo com as suas escolhas e suas consequências, incluindo perdas, separações, frustrações e privações, com a esperança de colocar limites no espaço, preenchendo o vazio, e de controlar o tempo, prevendo um futuro de privações, fazendo da vida uma repetição obsessiva predominantemente imaginária, acumulando bugigangas. Não suportando a falta, e na tentativa de supri-la com esses objetos necessários, restos, coisas, eles não desejam ter, mas tentam repetidamente negar a presença de uma ausência.
Tais tendências são desencadeadas por perdas importantes na infância, adolescência ou mesmo na vida adulta que reativam o complexo de castração infantil que não foi assumido, ou ainda por fortes sentimentos de ódio recalcado em relação a pessoas amadas. Esse ódio que foi censurado fica recalcado e reaparece de forma disfarçada, através do sintoma de acumulação, privando o outro de poder desfrutar de tal objeto de amor.
COMPLEXO DE CASTRAÇÃO
A causa desses desencadeamentos está na relação que o indivíduo tem com o seu complexo de castração. Essas pessoas, ao fixarem parte importante de sua libido na fase sádica anal, irão reagir frente a qualquer ameaça de perda ou frente às perdas de fatos, recorrendo a tal procedimento que ficou como um DNA psíquico.
Frente à perda, que pode significar inconscientemente a ameaça de castração, tais pessoas poderão responder de formas diferentes, rejeitando e, portanto, se estruturando enquanto psicótica ou negando e se estruturando de forma neurótica. Tanto numa quanto noutra, poderão ter a influência das marcas e efeitos de certa fixação ou intensa fixação na fase sádica anal.
No caso das pessoas psicóticas que rejeitaram o complexo de castração, que tiveram certa fixação nessa fase da organização da libido, isso não impedirá que seu ponto de fixação de maior viscosidade seja o oral canibalesco. Assim sendo, tais pessoas regredirão à fase oral, carregando traços da fase sádico-anal. Isso explicaria os casos de esquizofrenia que encontram certa suplência na acumulação.
Por outro lado, certas pessoas irão proceder negando o complexo de castração e sua consequente ameaça de perda de seu objeto libidinal. Essas pessoas irão se estruturar como neuróticas, apesar de não terem assumido o complexo de castração. Este se escreveu pela própria negação, efeito paradoxal da negação que, ao negar, afirma.
No caso do sintoma de acumulação na neurose, é possível acompanhar, ao longo da vida, outros representantes simbólicos desse sintoma que podem estar associados ou se apresentarem intercaladamente, que, entre outros, pode ser a constipação patológica, onde irão acumular suas fezes a ponto de colocar a sua saúde física em risco.
FUNÇÃO MATERNA
A origem relacional desse sintoma ou da suplência é em relação à pessoa que cumprir a função materna. A criança procura ser avessa a realizar o desejo do Outro. Esse Outro que irá pela primeira vez demandar da criança que realize o seu desejo – desejo do Outro. Pela primeira vez a criança pode considerar que tem algo de valioso para preencher a falta do Outro. Nesse momento, ela realiza que pode dar ou reter. Dar representará presentear e, desse modo, preencher a falta no Outro, e reter para si representará agredir o Outro o deixando em falta.
Tal procedimento de agredir o Outro tem sua causa na angústia de desaparecer, pelo vazio instaurado pela falta no momento de dar ao Outro o que está retido em si. Destarte, essas pessoas desenvolvem esses sintomas para tentar fugir do suposto vazio que imaginam poder se instaurar em suas vidas. Por essa razão, esse sintoma sempre acompanha um profundo medo da escassez no futuro, e, assim, pode-se dizer que é um sintoma ligado ao futuro e não ao passado.
Procurando fugir do vazio, irão provocar um vazio no Outro, o que é possível observar através do isolamento e do evitamento que estão sempre presentes nesses indivíduos, que provocas um grande empobrecimento das relações afetivas com outros seres humanos.
Após o exposto, verifica-se que a Psicanálise não trabalha apenas com o comportamento, e sim com a causa, o porquê de se iniciarem determinados sintomas, atacando, então, no cerne da questão. Porém, vale salientar que o paciente pode estar em risco e, ao mesmo tempo, recusar se submeter a uma experiência psicanalítica. Nesses casos, devem-se oferecer alternativas no sentido de favorecer que essa pessoa possa formular um a questão a respeito de sua relação com esse sintoma. Para tanto, pode-se utilizar uma equipe multidisciplinar, incluindo assistente social, atendimento familiar e, quando necessário, o acompanhamento terapêutico.
Esses casos extremos não evoluem de uma hora para outra. Quando se pesquisa a história da doença, verifica-se que tais sintomas já apareceram, de forma bem menos intensa, em vários momentos da vida. Vale lembrar que na infância se constatam os primeiros sinais, nas constipações citadas acima. Assim sendo, não se deve negligenciar uma escuta psicanalítica nos primeiros sinais que indicam a estruturação desse sintoma. É através da análise que a pessoa significará as perdas, frustrações, limites, separações, e simbolizando poderá fazer um a retificação subjetiva da sua relação com o Outro.
A RELAÇÃO ENTRE TRANSTORNO DE ACUMULAÇÃO E ESQUIZOFRENIA
Entre as inúmeras estruturas clinicas que podem apresentar o transtorno de acumulação está a esquizofrenia, funcionando como uma defesa contra a despersonalização, com a sua forma de angústia de fragmentação do corpo. Doença psiquiátrica endógena, a esquizofrenia se caracteriza pela perda do contato com a realidade. O indivíduo pode se fechar e se tornar indiferente a tudo o que se passa ao seu redor, ou, ainda, sofrer de alucinações e delírios. A pessoa em questão escuta vozes que ninguém ouve e imagina estar sendo vítima de uma conspiração diabólica elaborada para destrui-la. Não existe qualquer tipo de argumento que a convença do contrário ou a faça mudar de opinião ou comportamento. Há muitos anos esses indivíduos eram jogados em sanatórios para “loucos”, porque pouco ou nada se sabia sobre a doença. Entretanto, ao longo das últimas décadas, foram registrados grandes avanços no estudo e tratamento da esquizofrenia, que, quanto mais cedo for diagnosticada e tratada, menos danos provocará.
TOC
O transtorno obsessivo-compulsivo, conhecido como TOC, incomoda milhares de pessoas em todo o mundo. Frequentemente, os sintomas são leves e quase imperceptíveis, mas em outras vezes são extremamente graves, podendo incapacitar a pessoa para o trabalho e impedi-la de se relacionar socialmente. São acompanhados de ansiedade, medo e culpa. Alguns exemplos: lavar as mãos a todo o momento, observar repetidas vezes se a porta está trancada, necessidade exagerada de arrumação, entre outros.
COMPLEXO DE ÉDIPO
Conceito criado por Freud, mas descrito e balizado por Jung, o complexo de Édipo foi baseado na tragédia Édipo Rei, de Sófocles. De acordo com a Psicanálise, a criança do sexo masculino é acometida por sentimentos opostos, de amor e ódio, em relação à mãe. Isso acontece quando ela atravessa a fase fálica, durante a segunda infância, e toma consciência da diversidade entre os sexos. Geralmente, se sente atraída pelo sexo oposto de sua própria família.
JOSSELINE CÁPUA RODRIGUES SANCHES – é psicóloga psicanalista com especialização clínica em Psicanalise membro do Sedes Sapientiae em Psicanálise com crianças, membro da Associação Livre, membro do Núcleo de Estudos da Sexualidade do Ser Falante em Psicanálise. Prêmio Voluntários do Ano 2009 como coordenadora de oficinas terapêuticas do Ambulatório de Saúde Mental de Araçatuba.
PAUL KARDOUS – é psicanalista, psicólogo, com mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, membro da Associação Livre, membro internacional do campo lacaniano, fundador do Núcleo de Estudos e Pesquisa da Sexualidade do Ser Falante autor do livro: Impotência Sexual, o Real, o Simbólico e o Imaginário, coautor do livro Semiótica Psicanalítica.
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