SOLIDÃO REAL NA ERA VIRTUAL
Um grande desafio da atualidade é descobrir como compreender as mudanças nos relacionamentos interpessoais provocadas pela internet, baseadas na falsa sensação de pertencimento criada pelo mundo virtual.
Quem sou eu e o que faço aqui? De onde venho? Para onde vou? Até hoje, ainda buscamos respostas para essas perguntas. O homem é o único animal que conta a sua própria história, que está sempre se lembrando dos atos passados. Segundo Derrida (2002), é um “animal autobiográfico”, e essa autobiografia, a história de si, depois do pecado original, torna-se confissão, testemunho de um erro inaugural, uma dívida estabelecida entre criador e criatura.
Ao criar a sua história, questionando a sua existência, interpreta um mundo repleto de enigmas a serem decifrados. Cada resposta constitui um mito criado para tentar responder ao que não tem resposta.
Quando a criança olha no espelho e se surpreende com o seu próprio reflexo, surge o primeiro enigma, a primeira interrogação e a primeira exclamação, eu existo! Reconhece maravilhada que ela é ela. É quando Narciso olha para as águas do lago e se percebe. O herói da mitologia nos representa, seres humanos, em sua eterna autopercepção. A busca especular é uma forma legítima de amor, sendo a busca pelo reconhecimento uma marca da nossa humanidade.
A partir da marca inicial do primeiro espelho, cada pessoa que passa em nossa vida vai deixando o seu reflexo. Sim, porque precisamos do espelho do outro para nos refletir e construir a nossa própria imagem. A humanização se fundamenta no respeito e valorização da pessoa humana. Precisamos ter relações que confiram significado à nossa vida. Quando isso não é viável, nos dissociamos afetiva e emocionalmente.
O outro como espelho pode trazer aspectos negativos para a nossa experiência, como a inibição que podemos ter, decorrente da nossa exposição, mas carrega inegável papel importante pelo fato de que o outro e as relações podem ser um veículo para o nosso autoconhecimento. No teatro da vida, o outro pode entrar em cena constituindo o pano de fundo de determinados papéis, que muitas vezes sem saber delegamos para eles. Como nos diz o sociólogo da Sorbonne Michel Maffesoli: “Cabe a qualquer um reconhecer-se e comungar com os outros tipos sociais que permitem uma estética comum e que servem de receptáculo à expressão do nós” (Maffesoli, 2006).
Sem um vínculo com o próximo, portanto, aceito conscientemente, nós não conseguimos nos realizar plenamente. Mas será que no veloz mundo contemporâneo, com as suas relações virtuais, as pessoas estão conseguindo se conhecer (e reconhecer) ou estão solitárias, cada vez mais fechadas em seus casulos sem janelas? Parafraseando Zeca Baleiro, na música Dezembros, será que os nossos olhos têm a fome do horizonte e a face do outro, no artifício das cidades contemporâneas, é um espelho sem promessas? Podemos, como o poeta, nos edifícios sem janelas do mundo contemporâneo, desenhar os olhos do outro?
COMMODITY DO AMOR
O mundo contemporâneo tem vivenciado mudanças e transformações que, gradativamente, vêm alterando a estrutura e os valores da sociedade. Estamos imersos no que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001) chama de modernidade líquida. O mundo líquido é caracterizado pelo esgarçamento e liquefação do tecido social, ou seja, a sociedade torna-se amorfa, paradoxalmente, como os líquidos. É o mundo onde os adolescentes “ficam”, as relações amorosas se desfazem, a depressão assola as pessoas. Os casais trocam de amores como trocam de roupa.
As principais características da modernidade líquida são desapego, provisoriedade e acelerado processo da individualização; tempo de liberdade, ao mesmo tempo, de insegurança. Há uma diversidade de tribos, com as suas diferentes éticas e estéticas. Há uma ansiedade generalizada e a vida passa a ser construída na fluidez da rede, na incerteza, no não saber. O acaso é uma força determinante.
A angústia gerada pelas contradições psicológicas contemporâneas, individuais e interindividuais, assim como a falta de um suporte ideológico capaz de dar sentido ao ser humano, fazem com que as pessoas acionem sistemas de defesa sólidos e legitimados pela sociedade. As instituições, o trabalho, a religião e o capitalismo, muitas vezes, tornam se verdadeiros templos de veneração, invadindo a vida do indivíduo, de uma forma psicologicamente tão profunda em seu alcance que se chega a questionar se existe efetivamente algo como “o indivíduo”.
A velocidade é a marca atual do espírito do tempo. Podemos ver Hermes, com as suas sandálias ala das, como o patrono da cibercultura. Experienciamos uma nova relação espaço-tempo. Queremos falar com alguém e imediatamente nos conectamos ao outro. Ocorrem trocas simbólicas na internet, como uma segunda pele a reger a nossa vida.
Estamos na era dos amores líquidos, termo cunhado por Bauman (2004) para referir-se às relações efêmeras, frágeis, descartáveis e superficiais que caracterizam o mundo pós-moderno. Os relacionamentos escorrem das nossas mãos por entre os dedos feito água. Relacionar-se é caminhar na neblina sem a certeza de nada. Curtimos e deletamos pessoas na rede, como se fôssemos um pacote humano de delivery. O amor na atualidade entra na lógica do mercado e se apresenta como transitório, feito de conexões e desconexões.
Na commodity do amor há um excesso e deformação do indivíduo, cujo papel na sociedade fica definido primordialmente como consumidor. E como se o mundo fosse um grande shopping center, com prateleiras lotadas de atrações que são trocadas diariamente, inclusive as pessoas. Há a emergência de um novo tipo de consumo subjetivo, emocional ou experiencial, muito mais voltado para a satisfação do eu do que para a exibição social e a busca de status.
A dissociação do sujeito e a perda de suportes sociais e éticos, somadas ao modo narcísico de ser, criam as condições para a intolerância à diferença, e o outro é visto não como parceiro ou aliado, mas como ameaça. O individualismo, que nasceu com o modernismo, na contemporaneidade faz sua apoteose narcísica.
WEBNARCISISMO
Na atualidade, ficamos presos na hipertrofia e deformação do eu (precisamos a todo custo ser observados). Existe, no entanto, um grande vazio existencial. Tornamonos alienados, cegos, insensatos e ignorantes de nossas raízes. Proclamamos, de forma audaciosa, porém falsa, que “não há nenhum outro Deus perante nós”.
Esse eu grandioso, hipertrofiado, é o Narciso deformado, paralisado e olhando compulsivamente para o espelho, somente enxergando a si mesmo. Os outros tornam-se ecos e reverberações da sua própria imagem. Narciso hipertrofiado, afogado em sua autocontemplação egoica, acha feio o que não é espelho, como diz Caetano Veloso.
Nessa vertente, Lasch (1983) dá aos tempos atuais o nome de “cultura narcísica”, e Debord (1997), de “sociedade do espetáculo” ora ressaltando o individualismo, o culto ao corpo e a supervalorização dos aspectos da aparência estética, ora ressaltando o exibicionismo, a captura pela imagem e o comportamento histriônico que se realiza como espetáculo.
A forma narcísica de ser no mundo contemporâneo está associada à solidão. Estamos cada vez mais solitários, porque buscamos a ilusão de segurança como forma de controlar o que não tem controle, que é a própria vida. Solitários, por que cada passo de autonomia que damos em relação à participação mística primitiva e instintiva com o rebanho nos afasta da segurança tão almejada, que, em termos psíquicos, poderia ser obtida por uma volta ao passado (que não existe mais) ou por uma mudança no modo de viver e na cosmovisão (que não existe ainda).
METÁFORAS DAS VITRINES
Uma das ilusões criadas pelo mundo virtual é a falsa sensação de pertencimento, o nosso desejo básico de ser refletido, amado e aceito pelos outros. Essa necessidade traduz o nosso desejo de estar próximo das outras pessoas, compartilhar das suas alegrias, construir amizades sólidas, obtendo um bom relacionamento interpessoal.
A internet pode parecer um continente de pertencimento para as pessoas. Podemos acreditar que todo o aparato tecnológico que nos cerca é capaz de suprir cada uma de nossas necessidades e que por estarmos “conectados” jamais estaremos sozinhos. Preferimos varrer nossas próprias neuroses para debaixo do tapete, para não termos que encarar o mundo real, que se insurge como uma ameaça à nossa aparente comodidade.
O que criamos no espaço virtual nada mais é do que uma vitrine, através da qual esperamos ser reconhecidos, ainda que essa seja apenas uma montagem forjada por nós. Muitas vezes, na internet, podemos criar falsos personagens, eus aprimorados, perfeitos, que reflitam os padrões que a sociedade deseja. A “segurança” do anonimato na web favorece a ilusão. A internet pode nos aproximar do mundo, mas nos distanciar da vida.
Estamos de forma consciente conectados com determinados papéis que desempenhamos na sociedade, constituindo o arquétipo de adaptação social, chamado por Jung de persona, ou seja, a persona sumariamente corresponde aos diversos papeis, que assumimos na vida, coletivos, que servem como função de relacionamento com os outros e com o mundo. Esses “papeis” que representamos, como os de pai, filho, cônjuge, profissional liberal etc., vão sendo moldados pela sociedade.
Para Maffesoli (2000), a persona corresponde ao “figurino” utilizado pelo indivíduo, o qual facilita o seu reconhecimento social. É a máscara que o sujeito utiliza para conviver em sociedade, no teatrum mundi da existência. Nesse sentido, a persona é necessária; só se torna negativa quando o indivíduo se identifica com ela, acha que realmente é apenas aquela máscara de adaptação construída, tornando-se assim proporcionalmente mais coletivo (abdicando de suas peculiaridades individuais).
Ainda para Maffesoli (2006), as personas nos subordinam às nossas sociedades secretas (grupos afinitários escolhidos). Aí, existe a “desindividualização”, a participação no sentido místico do termo, em um conjunto mais vasto. A máscara faz de mim um conspirador contra os poderes estabelecidos, mas me une a outros, e isso não acontece de maneira acidental, mas estruturalmente operante.
O figurino, a aparência, é um meio de experimentar, de sentir em comum, de agregação ou desunião e também um meio de se reconhecer. Há um desejo de se encontrar ou se perder no outro. O que predomina é o momento vivido, o que interessa é o presente compartilhado com outros, num determinado lugar. Não é mais necessário renunciar ao hoje, acreditando num amanhã melhor ou num futuro porvir, o presente, hoje, é vivido intensamente. E essa forma de vida contamina as representações e as práticas sociais (Maffesoli, 2000).
Na internet podemos ensaiar diferentes personas. Se as diferentes máscaras que ensaiamos estão em ressonância com a nossa individualidade, isso facilita a nossa expressão pessoal no mundo. Por outro lado, quando não há um alinhamento entre a persona e a nossa individualidade, a mesma se torna patológica, rígida ou falsa e pode nos levar a uma dissociação. Ou ficamos como um ator que representa um personagem e vive a vida achando que ele é apenas aquele personagem, ou representamos um falso papel, que nos leva a viver uma vida dupla (uma vida real desalinhada da vida virtual). Nesse caso, adquirimos um rosto artificial, produzido pela sociedade, muitas vezes completamente diferente do rosto que essencialmente possuímos.
PARADIGMA DO PARADOXO
”Paradigma do paradoxo, esta poderia ser a chave da compreensão do mundo em gestação. E paradoxo vamos encontrar, justamente, a partir do momento em que pensamos a relação da pessoa com a comunidade que a envolve. A pessoa, em seu aspecto plural, só adquire sentido no contexto comunitário” (Maffesoli, 2007, p. 133).
Um paradoxo existe sempre que encontramos dois estados aparentemente inconsistentes, duas realidades opostas e aparentemente inconciliáveis. Esse mundo cindido, dividido, está no cerne do mundo contemporâneo. Enquanto sujeito, o ser humano está bem no ponto de cruzamento de duas grandes dimensões históricas: a verticalidade e a horizontalidade. A verticalidade é a dimensão da sua história individual, é o desenvolvimento no tempo da constituição de sua identidade. A horizontalidade é a história do grupo social a que pertence. É aí, bem no centro, bem nesse ponto, que estamos nós, unidades bio-psico-sócio-espirituais, inseridos no tempo, individual, social e espiritualmente.
Bauman (2003) nos diz que há um preço a pagar pelo privilégio de viver em comunidade. O preço é pago em forma de liberdade, também chamada autonomia. Qualquer que seja a escolha, ganha-se alguma coisa e perde-se outra. Não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isso ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade.
Como sair da encruzilhada em que nos encontramos? Como encontrar o nosso eixo? Lévy (1999) nos dá uma dica: “O desafio consiste em mergulhar nesse vasto oceano e conseguir controlar a própria deriva no meio de suas correntes”. Controlar a deriva implica em utilizarmos a mudança como o movimento interno da contradição. Isso significa sustentarmos a tensão entre os opostos (o que gera angústia), até que possamos encontrar a síntese, que seria um estado criativo. Com a criatividade, começamos a entender os nossos mecanismos internos de reforço, emergindo um sentimento de paz.
Precisamos primeiro partir da noção de que somos seres em construção. Tornarmo-nos pessoas requer romper com a massificação e rejeitar a aceitação passiva das convenções de toda ordem para desenvolver o ser próprio relacional, aquele ser que se faz e se descobre ao longo da rede de relações em que nos vemos envolvidos e que estabelecemos. “A construção da pessoa não pode operar-se senão na medida em que seja possível juntar na unicidade os diversos pedaços – melhor seria dizer cacos – que a compõem” (Maffesoli, 1998, p. 105).
Cada um de nós é como um nó numa rede grupal. Constituímo-nos e ganhamos forma em situações de interação. A dinâmica circular não tem pontos de partida, nem pontos de chegada, apenas pontos de passagem. É a experiência que nos prepara a experiência. Nós aprendemos nas conversações com os outros. Novas formas de comunicação surgem, podendo propiciar novas formas de conversação.
Quando encaramos a internet e os relacionamentos humanos que emergem a partir dela com alteridade, podemos, a partir dela (e não só com ela), afirmar e confirmar o outro, e ambos se beneficiam com a troca. Enfrentando desafios e ganhando coragem podemos utilizar a nossa mente fértil e imaginativa para entrar no mundo simbólico e criativo da rede.
Podemos utilizar as imagens virtuais como o nosso álbum perdido de fotos anônimas rasgadas, brincando com a curiosidade sobre quem é o outro enigmático, utilizando as fotos desse álbum para nos comunicarmos, complementando o álbum com nossas fotos, muitas vezes ainda mascaradas – quer me conhecer? Eu sou você. A partir dos encontros virtuais, podemos utilizar uma sequência de encontros presenciais (na rua, na chuva, na fazenda, ou numa casinha de sapé) para a entrega do álbum, descrevendo com incrível bom humor as nossas dificuldades de relacionamento, ao mesmo tempo revelando a criatividade e o uso da imaginação a serviço da transformação e do encontro.
O romance com o outro pode ser uma bela retomada do mito do amor romântico, idealizado (ou não), aquele/aquela que está desde sempre em nossos sonhos, aquele que vem banhado nas águas de um narcisismo saudável e necessário, principalmente se pensarmos que muitas vezes não tivemos espelhos simbólicos adequados na infância – relacionamentos afetivos significativos e saudáveis que nos propiciassem o desenvolvimento da autoimagem e da autoestima, e que precisam ser vividos, pelo menos uma vez, pelo menos a primeira vez, mesmo que depois seja desconstruído e reconstruído, quantas vezes se fizerem necessárias.
NARCISO
Narciso é um dos principais protagonistas da mitologia grega. Filho do deus do rio Cefiso e da ninfa Liríope, ele representa um forte símbolo da vaidade, se transformando, ao longo da história, como um dos personagens mitológicos mais citados em questões ligadas às áreas de Psicologia, filosofia, em letras de música, artes plásticas e literatura. Na Psicologia, narcisismo é o nome dado por Freud, que determina o amor exagerado por si próprio, principalmente pela imagem.
OS MUNDOS INTERNO E EXTERNO NA TEORIA JUNGUIANA
O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, criador da Psicologia analítica, preconizou: “Ao longo da enorme estrada do mundo, tudo parece devastado e desgastado. Certamente é por isso que o instinto, em sua busca de satisfação, abandona as estradas feitas e passa a caminhar a esmo, exatamente como o homem antigo se livrou de suas divindades do Olimpo e se voltou para os cultos misteriosos da Ásia Menor” (Jung, 1993, p. 91-92). Para Jung (1993), esse homem solitário, que anda a esmo, buscando atingir a “experiência primordial”, busca encontrá-la no mundo externo e no mundo interno. Na verdade, o que está por trás do Narciso de hoje é uma busca pela experiência primordial, contemplativa. Essa experiência é atingida na relação, na comunhão com os outros (Maffesoli, 2006). No entanto, cabe um questionamento: como podemos atingir essa comunhão com os outros se ao olharmos no espelho social do oceano virtual nos vemos como mercadorias?
ERMELINDA GANEM FERNANDES – é médica, psicoterapeuta junguiana e doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC). Coordena o curso de especialização em Processo Criativo e Facilitação de Grupos (abordagem junguiana) do Instituto Junguiano da Bahia.
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