DISCIPLINA NO DOMÍNIO SORE AS EMOÇÕES
Entenda por que a autodisciplina está mais relacionada ao bom desempenho acadêmico que a resultados em testes de inteligência.
Costumamos associar rotina a algo chato e sem graça pelo simples fato de que é sempre bom sair dela. Para as crianças, que adoram novidades, fazer uma coisa diferente pode ser muito empolgante. Mas para que possamos curtir esses momentos é preciso haver uma rotina a ser quebrada. Sem ela, os dias passam a ser caóticos, a alimentação e o sono são prejudicados, a criança não desenvolve a persistência e não exercita o controle da atenção.
A relação com a atenção pode não ser óbvia, mas é direta: toda atividade que requer concentração exige esforço, traz um desconforto que nos leva a adiar a tarefa até o último momento. Se já temos um tempo determinado para atividades nas quais precisamos nos concentrar, não damos chance à procrastinação.
Entre crianças, a rotina é uma forma de tirar seu poder de decisão; de não deixar espaço para que decidam quando farão a tarefa, por exemplo. Isso as poupa de uma ansiedade desnecessária, acionada pela projeção do momento desconfortável de estudo. Um horário muito flexível e variável para as obrigações também dá margem para que elas lutem contra esse momento não apenas com procrastinação ou distrações, mas com birras e desobediência.
A rotina está relacionada ao comportamento porque se impõe, fecha espaço para negociações e torna-se inquestionável. Quando criamos e seguimos uma rotina, paramos de consultar a vontade e partimos para a ação.
Disciplina é exatamente isso: colocar a ação acima da vontade e dos sentimentos. Não se trata de obediência e sim de assumir um compromisso – geralmente consigo mesmo – e cumpri-lo, independentemente das condições emocionais. Ela nos ensina a termos mais controle sobre as próprias emoções e a focarmos na produtividade, no processo. Ao direcionarmos a atenção àquilo que nos comprometemos a fazer, somos transformados pela ação e deixamos de ser dominados pelos desejos.
Estabelecer horários para as atividades das quais costumamos fugir, por exigirem esforço cognitivo ou físico, nos permite maior produtividade e ganho de destreza em qualquer domínio – pois o desenvolvimento de habilidades necessariamente passa pela repetição, persistência e disciplina, atributos que se recusam a se submeter à disposição. Se esperamos que uma criança desenvolva sozinha e naturalmente habilidades de seu interesse, acabamos privando-a da satisfação de se descobrir capaz de fazer algo com maestria e de perceber que o exercício programado transforma o esforço inicial em uma ação automática, realizada de forma ágil e com prazer.
Ao experimentar os ganhos relacionados à ação sem procrastinação, as crianças aprendem a se autodisciplinar – uma capacidade que está mais relacionada ao bom desempenho acadêmico que a resultados em testes de QI. Foi o que descobriram pesquisadores da Universidade da Pensilvânia em um estudo longitudinal com adolescentes a partir de uma série de questionários relacionados aos hábitos.
A conclusão foi de que autodisciplina é um preditor preciso de notas e frequência acadêmica, com impacto maior nesses quesitos que testes de inteligência.
A disciplina é uma virtude muito presente nos ensinamentos do pensamento oriental. E um dos fundamentos da terapia japonesa Morita, voltada para a transformação por meio da ação. Em Constructive Living, um de seus livros sobre essa visão oriental, o filósofo David Reynolds destaca: “Escrevo mais sobre rotinas que sobre variedade (embora ambas sejam importantes), porque a maioria das pessoas que encontro são naturalmente atraídas pela variedade, por mudanças, pela dispersão. Elas necessitam da estabilidade da rotina para superar a tendência de serem controladas por seus sentimentos”.
Apesar de parecer uma afirmação contraditória em uma primeira leitura, a rotina nos gratifica com mais espaço para a criatividade. Isso porque ao cumprirmos uma agenda livramos nossa mente das pequenas decisões e, portanto, da atenção que novas situações ou ambientes requerem. Por tornarem-se automáticas, as tarefas realizadas sistematicamente exigem um esforço mental menor e permitem que os recursos cognitivos sejam empregados em momentos mais criativos e produtivos.
Isso quer dizer que, como define Reynolds, variedade, ou seja, novidades, também é importante no nosso processo de criação e produção. Somos naturalmente tão ávidos por novidades, que são elas – e não a rotina e a repetição – que ativam o sistema de recompensa do cérebro, nos fazendo querer mais. No entanto, uma vida produtiva e criativa depende do equilíbrio entre o inesperado e o costumeiro, de um direcionamento inteligente de energia.
As obras inovadoras e os trabalhos mais admiráveis não surgem do caos nem aparecem por acaso para alguns raros sortudos que foram escolhidos pela inspiração. Pelo contrário: eles podem aparecer quando menos esperamos, mas só escolhem aqueles que enfrentaram os longos, lentos e pouco românticos períodos de dedicação e disciplina.
MICHELE MULLER – é jornalista. pesquisadora, especialista em Neurociências, Neuropsicologia Educacional e Ciências da Educação. Pesquisa e aplica estratégias para o desenvolvimento da linguagem. Seus projetos e textos estão reunidos no site www.michelemuller.com.br