DIVERSIDADE FAMILIAR
As novas configurações da família moderna impõem inúmeras alterações comportamentais que transformam os perfis convencionais de pai e mãe.

Era uma vez a história da fundação de Roma. Os gêmeos Rómulo e Remo são cuidados (e amamentados) por uma loba. Essa é a história mítica de dois bebês que, criados por um outro animal mamífero não humano, sobrevivem, se tomam humanos, crescem e fundam Roma.
Por mais que se respeite as lobas, nos diz Donald Winnicott, pediatra e psicanalista, esse mito só não se sustenta… Um bebê não pode existir por si só, mas é parte essencial de uma relação humana (1988). Para se ter um bebê humano é necessário que um outro ser humano cuide dele, na melhor das possibilidades, exista uma mãe e ela seja um membro de uma família nuclear?
Para alguns estudiosos a família atual está mais sólida do que nunca. Com o nascimento do anonimato urbano e na ausência de qualquer comunidade profissional estável, a família se tornou hoje o único referencial e o único lugar onde ficar, repousar e ser compreendido. Para outros, muito pelo contrário, trata-se aí apenas de reações sintomáticas a uma crise profunda da família moderna: casais separados, famílias monoparentais ou recompostas, incompetência crescente dos pais na educação dos filhos, o declínio da imagem social do pai, o celibato prolongado das mulheres ou a postergação do nascimento dos filhos por motivo profissional etc. (Burd, 2015).
A família na atualidade se reinventou, como os cuidados ditos “maternos”, também se reinventaram. Só a mãe biológica pode maternar? Ou haveria outras pessoas que poderiam exercer essa função? Há possibilidades de terceirizar a maternagem?
“Essa é a nossa questão de hoje: Existe uma nova forma de maternagem e quem atualmente desempenha essa função?”
Vamos tentar responder essa pergunta porque hoje, (como na época de Rómulo e Remo, precisaremos de mais do que uma loba para isso. “Um bebê e alguém mais…”
Estamos no transcurso do século XXI e a função de maternar não se coloca especificamente na figura da mãe biológica, uma mulher que engravidou, gestou, deu à luz o seu bebê e cuidou dele. Através do panorama da evolução dos costumes e papéis sociais constata-se a caminhada das mulheres ao mercado de trabalho e dos homens aos cuidados com os filhos e a casa. As avós (e já vemos também as bisavós) estão ajudando a criar seus netos (e bisnetos). Outras vezes, a mulher posterga a maternidade para depois da universidade, da consolidação no trabalho, da sua independência financeira e, como o seu relógio biológico para engravidar vai se extinguindo, ela precisa recorrer à reprodução assistida. Por vezes não há o desejo de engravidar, a mulher (ou o casal) quer apenas adotar uma criança.
A colocação das crianças nas creches e escolinhas desde muito cedo e por períodos de tempo muito longos é uma alternativa aos pais que trabalham fora em regime de tempo integral. Outra possibilidade são as babás que cuidam das crianças. E essa terceirização do cuidado das crianças pode se estender ao celular, ao tablet, ao laptop, com filmes e jogos eletrônicos, da câmara de vídeo que monitoriza casa e a deixa à mostra em tempo e hora, sem falar da TV que foi e ainda é uma “babá eletrônica.
Estamos assistindo também à formação de novas configurações familiares. Casais homoafetivos, tanto masculinos quanto femininos, estão se formando e desejam ter filhos, biológicos ou adotados. Famílias separadas estão se recompondo com outros parceiros e os filhos de um se unem aos do outro e os filhos de ambos se reúnem numa mesma casa formando uma família recomposta e extensa.
UMA GRANDE CONTRIBUIÇÃO
Winnicott, pediatra e psicanalista, depositava grande confiança na capacidade natural das mães para a maternagem. Sua preocupação era de que esse talento inato não fosse prejudicado. As expressões de winnicottianas “mãe devotada comum “e “mãe suficientemente boa” criaram um ambiente aberto no qual a mãe passa a ter mais possibilidades de se sentir livre o suficiente para ser ela mesma. Ele dizia que passado o período da “preocupação materno-primária”, no qual o bebê é o centro de tudo para ela, começa a existir um período de desilusão gradativa, necessária à construção do self interior do bebê e do mundo objetal à sua volta, e que a mãe, em contrapartida, tenha um espaço próprio para buscar outras satisfações e ineresses que não o bebê ou o ser exclusivamente mãe.
Isso quer dizer, em última análise, que a mãe não pode ser perfeita, pois corre o risco de não favorecer o desenvolvimento físico-psicológico do filho. A mãe (ou quem a substitua) não pode superproteger o bebê nem ser negligente. Isso também quer dizer que o “bebê cria a mãe”, ela começa a perceber que, apesar da importância da maternagem, o conhecimento das suas imperfeições é parte do processo do par cuidador e que isso constitui um momento mais liberador do que opressivo.
A mãe winnicottiana é empática, embora ainda preocupada consigo. Ela quer proporcionar cuidados, prazer e brincadeiras a seu filho, mas sabe que o mundo e a vida exigem limites, restrições, frustrações e desilusões graduais. A mãe dentro dessa ótica é uma pessoa comum que faz coisas comuns: segurá-lo (dar o holding), ter um bom manejo (o handling) que dê acalento ao filho, e ter a sensibilidade necessária para a “apresentação do objeto (o mundo) no momento ideal.
O bebê winnicottiano é a criança que descobre o mundo dessa forma e se torna a tempo preparada para receber bem as surpresas que o mundo oferece. Winnicott acreditava que, sendo uma mãe zelosa, ela pode evitar que o mundo (e ela própria) invada demais a criança antes que ela o descubra. Ele denomina a mãe e o bebe como o “par cuidador’; e os pais devem desempenhar um papel fundamental na proteção desse par contra as adversidades. O pai winnicottiano é necessário pelos seus próprios direitos e não como uma réplica da mãe. Winnicott sabia que “há certos pais que efetivamente seriam melhores mães que sua esposa” e que “homens maternais podem ser muito úteis. Quando não há o pai é preciso que alguém tome a si o papel protetor – que assuma a função paterna. O papel do pai é “abrir o mundo para a criança”, que o vê através de um novo par de olhos.
A família winnicottiana é o grupo que normalmente proporciona à criança segurança e força (um ambiente sustentador e um “grupo transicional”) que facilitam a individualização da criança, sua separação da família e adaptação à sociedade. O ambiente humano, para Winnicott, deve ser “suficientemente bom”, é adaptativo da forma correta, apropriado, de acordo com as necessidades do bebé. Winnicott diz em relação aos gêmeos Rómulo e Remo que alguém que era humano encontrou e cuidou dos bebês…
“A princípio éramos absolutamente dependentes, e por sorte fomos satisfeitos pela devoção comum (1988).
CONSTELAÇÃO
Daniel Stern, outro psicanalista, fala da “constelação da maternidade” (1997), e enumera quatro temas que, na nossa cultura, surgem quando alguém que cuida de um bebe deve se perguntar:
Serei capaz de manter a vida e o crescimento do bebe? Serei capaz de me envolver emocionalmente com o bebê, de maneira pessoalmente autêntica, e será que esse envolvimento psíquico assegurará o desenvolvimento psíquico que se quer para o bebê? Saberei como criar e prover os sistemas de apoio necessários ao cumprimento dessas funções? Serei capaz de transformar a auto identidade para permitir e facilitar essas funções?
A constelação da maternidade não é universal e inata. Em outras épocas, histórias e culturas, esses temas não seriam tarefas da mãe, seriam diferentes ou quase inexistentes. Os homens poderiam elaborar uma nova constelação da maternidade quando as condições se mostrassem propicias. Além das influências hormonais, ou melhor, psicobiológicas, que preparam a mãe para cuidar de seu bebê, as condições socioculturais, também parecem dominantes em como e se essas vão agir.
Na nossa sociedade, nos diz Stern (1997), as condições culturais importantes na moldagem da forma final da constelação da maternidade conforme nós a conhecemos incluem os seguintes fatores:
“A sociedade atribui um grande valor aos bebês, à sua sobrevivência, bem-estar e desenvolvimento ótimo; supõe-se que o bebê seja desejado; a cultura atribui um grande valor ao papel maternal, e a mãe (ou quem a substitua) é, em parte, avaliada como pessoa por sua participação e sucesso no papel maternal; a responsabilidade básica pelos cuidados com o bebê é colocada na mãe {ainda o é hoje), mesmo que ela delegue grande parte das tarefas a outras pessoas; é esperando que a mãe ame o bebê; é esperado que o pai e outros proporcionem um contexto apoiador em que a mãe possa desempenhar seu papel maternal por um período inicial. Quanto aos pais, Stern distingue os “pais tradicionais” e os “novos pais”. Os primeiros não vivem muito a constelação da maternidade, podem até dar o apoio prático; os segundos podem participar de todas as tarefas de cuidados e do apoio prático. O “novo marido” é deixado com metade do trabalho e, se sentir gratificado no seu papel parental, deve apoiar a mãe.
Cada pessoa que cuida do bebe (mãe biológica ou quem o substitua) desenvolverá uma constelação de maternidade própria.
Daniel Stern (1997) se pergunta:
“E se o pai for o cuidador primário, será que ele também vai desenvolver uma constelação da maternidade? Afinal de contas, seu cuidador primário foi sua mãe (com toda a probabilidade), ou sua necessidade de se identificar com o pai vai alterar essa situação?”
NOVAS CONFIGURAÇÕES
ADOÇÃO
Adotar significa acolher, por meios legais e de livre e espontânea vontade, uma criança, como se filho fosse essa criança, que estaria ora desamparada pelos pais legítimos, dando-lhe o direito que um filho natural teria. Quando alguém decide se tornar pai ou mãe, um desejo de adoção colocase em ato. Esse ato é uma declaração pública que diz sim à responsabilidade de ostentar um processo particular de filiação/adoção.
Na adoção, o cuidado necessário de uma criança pode ser exercido por qualquer indivíduo que supra essas necessidades, não sendo mais função exclusiva da mãe biológica. A maternagem, nesse caso, é entendida como uma vinculação de qualidade, de alguém que tenha a função do cuidar e de uma criança a ser acolhida. Tem base psicológica e é construída ao longo do tempo através das relações estabelecidas com os objetos escolhidos.
Paro que uma adoção seja bem-sucedida, o desejo de ser mãe ou pai deve estar presente, sendo essencial que haja capacidade de compreensão, disponibilidade e doação para com o outro.
ADOÇÃO POR CASAIS HETEROSSEXUAIS
Para os pais adotantes, ter um filho por meios não naturais, ou seja, adotar, seria apenas um meio diferente, já que a ansiedade pela espera do filho, o sexo, saúde, preocupações com a educação, de comportamento, entre outros são os mesmos que se teria com um filho natural. Para Françoise Dolto (1998), a relação mãe-bebê vai além da herança genética e perpassa também pelo vinculo estabelecido entre eles, pois é na cultura e na linguagem que essa relação se estrutura. Laços consanguíneos não garantem o amor entre pais e filhos, pois este é construído e conquistado.
ADOÇÃO POR CASAIS HOMOAFETIVOS
Conforme a legislação, não há impedimento para que pessoa homossexual adote uma criança. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no seu art. 42, menciona que a adoção pode ser realizada tanto por homem, quanto por mulher, de forma “conjunta ou não”, estando ausente a necessidade de enlace matrimonial.
A educação de crianças por pais homossexuais não é novidade, embora a estabilidade do relacionamento entre pessoas do mesmo sexo e o desejo de terem filhos ainda despertem a curiosidade de muitos. Pesquisas recentes revelam que aqueles que foram adotados e criados por pessoas homossexuais tiveram vida digna e feliz, da mesma forma que os filhos adotados por pessoas heterossexuais. Os interesses dos menores estarão mais bem protegidos se as famílias homoafetivas forem vistas sem preconceitos, sem temores e sem mitos.
As mães lésbicas são capazes de exercer perfeitamente o papel materno. Precisam se preocupar em cercar a criança de figuras masculinas adequadas para a identificação (irmãos, tios, avô). Estudos realizados demonstraram que crianças educadas por pais homossexuais desenvolvem identidade sexual apropriada e assumem atitudes heterossexuais, como aquelas criadas em lares de mães e pais heterossexuais.
REPRODUÇÃO ASSISTIDA
POR CASAIS HETEROSSEXUAIS
Em 1984 foi anunciado o nascimento do primeiro bebê de proveta brasileiro, seis anos depois de ter nascido o primeiro bebê de proveta do mundo, na Inglaterra. As novas tecnologias de reprodução; no seu início, eram medicamente definidas como tratamentos da infertilidade e teriam sido desenvolvidas em função de uma demanda preexistente: o desejo de filhos, de continuidade pela reprodução, portanto uma demanda dirigida à “vida de fato, sem o desejo de filhos não há infertilidade.
POR CASAIS HOMOAFETIVOS
Cada vez mais, os casais homoafetivos tem procurado clínicas de reprodução assistida. As novas normas aprovadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) devem beneficiar um número maior de mulheres e homens homossexuais que desejam ter filhos biológicos. A medida permite que a técnica seja desenvolvida, independentemente do estado civil ou orientação sexual ou seja, pessoas do mesmo sexo e / ou mulheres solteiras.
No caso de mulheres homossexuais não se pode utilizar o sêmen de um familiar (irmão) de uma das parceiras para fertilizar os óvulos da companheira dessa forma. O especialista esclarece que o doador não pode ser um irmão, familiar ou conhecido da paciente, pois os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa. Obrigatoriamente, é mantido o anonimato.
Nos casais de homens, o processo envolve mais pessoas, pois é necessário o óvulo de uma doadora desconhecida e depois uma mulher da família que possa gerar o bebê. Eles dependem dos óvulos de doadora desconhecida e da gestação do útero, que, ao contrário dos óvulos doados deve ser de parente próxima, irmã ou mãe (que nem sempre aceitam gerar um bebê). O procedimento só é permitido em uma mulher parente do casal homossexual – a chamada “barriga solidária”.
MUDANÇAS
Os homens (tanto heterossexuais como homossexuais) estão cada vez mais participantes dos primeiros contatos com o bebê, como coparticipantes das atividades antes consideradas apenas atributos femininos. Na medida em que esse processo se dá, podemos falar de pais “suficientemente bons”. Todas as estruturas familiares são capazes de promover o desenvolvimento positivo da criança, desde que o ambiente seja afetuoso, estimulante e livre de conflitos e estresse.
O bebê humano nasce dependente de cuidados de maternagem e esses cuidados devem ser compartilhados pelas pessoas que cuidam dele; a mãe que amamenta ao seio, os homens que trocam fraldas e preparam a alimentação do bebê etc. São funções de ordem prática que possuem uma série de diferentes atributos, de acordo com a fase de desenvolvimento da criança, e são exercidas por adultos tutelares (mãe e pai, biológico ou adotivo).
A dinâmica por meio da qual atualizam-se as funções materna e paterna se organiza a partir de um Inter jogo de fatores conscientes e inconscientes. Portanto, as funções materna e paterna vão além dos papéis de pai e mãe.
Desde os primórdios da vida percebemos que essas funções se constituem numa relação dual – os pais formam os filhos/os filhos os tornam pais. O fato de descobrir e ir aprendendo ao viver a experiência nos remete à noção de processo: tomar-se mãe e tornar-se pai.
Tradicionalmente a função materna é exercida principalmente pela mãe biológica, mas não necessariamente é da quem a exerce. Em alguns casos, outras pessoas assumem o exercício dessa função. Nas novas configurações familiares, ela é, em geral, compartilhada pelos membros próximos da família e, eventualmente, por profissionais e funcionários de instituições. Entretanto, ao executar tais tarefas, os homens ainda são comparados com a mãe e frases como “esses pais que são verdadeiras ‘mães’ são usuais para definir os novos interesses masculinos. Isso já está mudando.
É fundamental, no entanto, que exista uma pessoa que seja a principal cuidadora do bebê, que represente uma referência constante e seguro. Essa pessoa deve, além de ser responsável pelos cuidados básicos de saúde, higiene e alimentação do bebê, nele investir emocionalmente. Isso significa que deve haver vínculo afetivo entre essa pessoa e o bebê de que ela cuida.
Diz a lenda que Roma foi fundada no ano 753 a.C. por Rômulo e Remo, filhos gêmeos do deus Marte e da mortal Rea Sílvia. Ao nascer, os dois irmãos foram abandonados junto ao rio Tibre e salvos por uma loba, que os amamentou e protegeu.
Um pastor de ovelhas os recolheu e lhes deu os nomes Rômulo e Remo.
Ele foi esse alguém mais na vida dos gêmeos humanos.
E não foi uma mãe!
WINNICOTT
Donald Woods Winnicott desenvolveu sua Psicanálise com base nas relações familiares entre a criança e o ambiente. Todo ser humano, segundo o pediatra inglês, tem um potencial para a evolução. Contudo, para tornar esse potencial algo real, o ambiente se faz necessário. Inicialmente, esse ambiente é a mãe – ou alguém que exerça a função materna – apoiada especialmente pelo pai.
SER PAI E MÃE
Ser pai e ser mãe na ótica psicanalítica não implica apenas paternidade biológica, demanda também, sentimentos e atitudes de adoção que decorrem do desejo pelo filho. O exercício da função materna e o exercício da função paterna são considerados necessários para a estruturação e desenvolvimento do psiquismo da criança.

MIRIAN BURD – é psicóloga com experiência em atendimento clínico e autora de diversos artigos científicos em revistas especializadas.
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