POSIÇÕES QUE OSCILAM
O conceito de violência sempre envolve um emissor e um receptor e é percebido apenas por um dos dois polos: a vítima assim a denomina, mas o emissor pode nem se dar conta dessa relação.
Estamos diante de um tema que não é agradável – muito pelo contrário, seria preferível não falarmos de violência ou, melhor, negá-la. Mas ela chega a nós sorrateiramente no trânsito, no caos das metrópoles, na TV, nas relações sociais, nos jornais, nas nossas casas. Como lidar com a violência?
Uma primeira tarefa pode ser defini-la, afinal, o que é violência? Podemos admitir que tudo o que excede nossa capacidade de absorção de estímulos (sensoriais, perceptivos, psíquicos) pode ser considerado um ato de violência. Violência é: acordar muito cedo para trabalhar, quando se mora distante, passar fome por falta de recursos; enfrentar o trânsito neurótico, numa cidade que cresceu desordenadamente; ser desrespeitado por outra pessoa (estranho ou amigo) etc. Mas não é bem essa qualidade de violência que mais nos impacta, não é?
Vamos adiante: é curioso que o conceito de violência sempre envolva um emissor e um receptor e seja percebido apenas por um dos dois polos: a vítima da violência assim a denomina, mas o emissor pode não se dar conta desse modo de relação. Muitas vezes, as posições oscilam: hoje, vítima, amanhã, agente.
A violência também não é um fenômeno da Modernidade. A humanidade sempre viveu guerras que resultaram em vencedores e vencidos, e apena, para os vencidos (ou derrotados) houve registro da violência, no caso dos que sobreviveram a ela.
Um primeiro exercício pode ser a identificação de violências cotidianas sutis, e a tarefa mais difícil: nossa posição não só de vítimas, mas também de pequenos agentes de violência, pela própria alienação que muitas vezes toma conta de nós. A expressão violência psicológica nos leva diretamente a outra violência: a física, que tem o corpo como alvo e deixa marcas. Primeira conclusão: violência física contém algo de violência psicológica, mas o inverso não é verdadeiro. Como se a violência psicológica ocorresse num plano sutil, que deixa marcas psíquicas, que podem ou não ser digeridas.
Somos interrogados todo o tempo por essa percepção de violência, e cabe uma reflexão: o que há de inquietante na violência? Para onde ela nos remete? Qual o critério objetivo de definição de violência?
Um dos grandes problemas, ao tratarmos da violência, é diluir seu impacto e minimizar o horror, que ela carrega. Nesse exercício de pensamento, corremos o risco de sacralizá-la – por exemplo, utilizando conceitos psicanalíticos como Id, pulsão de morte, trauma, tratando-a como parte inerente à natureza selvagem e animal dos humanos, portanto, inexorável; ou de banaliza-la, quando a reconhecemos em todas as camadas de relações humanas: na família, nas escolas, na igreja, no Estado, no mundo corporativo, na política, nas grandes metrópoles, nos regimes autoritários etc.
Como se trata de um fenômeno complexo, resultante de múltiplas causas, corremos o risco de banalizar qualquer análise. Contextualizar os episódios de violência e escutar narrativas advindas de diversos ângulos podem ser um bom começo.
CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE
A psicanálise, aqui definida como um campo de conhecimento profundo sobre o mundo psíquico, pode fornecer algumas ferramentas. Cabe lembrar que a Psicanálise surge propondo um desenho do mundo psíquico, levando em conta nossa pulsionalidade, ancorada no corpo, na condição animal, em conversa com o mundo civilizado e a cultura, que nos insere no grupo social. Uma das questões que a Psicanálise ilumina é a usina inconsciente, fonte e matriz de nossas produções, que às duras penas procuramos domesticar para garantir a vida em grupo.
Freud propõe um modelo psíquico caracterizado pelo conflito: como humanos, estamos negociando, sempre, entre nossos ideais e nossos desejos mais secretos entre nossa vontade a vontade do grupo; entre a civilização e a barbárie. Nem sempre essa negociação é equilibrada aceita; tampouco é consciente. Há perdas, renúncias, frustrações, restos.
Estamos mergulhados no território dos afetos, manifestações genuínas de nosso estar no mundo. O Par de afetos primordial é amor-ódio, expresso em todas nossas produções. Como símbolo desse afeto, está o Eros grego, muitas vezes traduzido por amor, o que deixa de lado as inclinações menos nobres e aceitas desse deus. Se Eros é paixão, é ligado, traz também em si o ódio, aqui tomado não como oposto do amor, mas como seu polo carregado de agressividade.
O afeto que caracteriza violência é o ódio, que nos desestabiliza e dá muito trabalho. Muitas vezes, o ódio fica como resto de relações amorosas frustrantes, abusivas, invasivas que nos marcaram. Cabem aqui os casos de separações, litígios, brigas por herança em grupos de irmãos, decisões por guarda de filhos após divórcios complicados, lutas históricas entre povos e tribos etc.
O ódio e o sentimento basal da violência. Se cavoucarmos fundo situações violentas, chegaremos a um núcleo de ódio. Também é comum que o ódio tenha uma história longa, transgeracional, passando de pai para filho e pautando relações sociais tensas.
A civilização criou códigos para nos defender desse afeto tão desestabilizador. As leis, o direito e as religiões estabeleceram um protocolo de delitos e penalidades que se transformam ao longo do tempo, mas sempre alertam: Cuidado! Homens à vista! Os códigos de conduta e as penalidades nos protegem, mas até certo ponto. Crimes, abusos, uso de poder, ameaças, humilhações, estão por aí nos rondando, constituindo as notícias escabrosas da mídia: abandono de crianças, teste do sofá de grandes executivos com candidatos/as a celebridade: corrupção; uso da máquina pública para enriquecimento pessoal; hostilidade a migrantes, minorias, classes desfavorecidas. A lista é infinita e nos causa espanto.
LÁ NO INÍCIO
Nossa condição de desamparo e despreparo, quando nascemos, nos coloca em situação de vulnerabilidade. O homem, mais do que qualquer outro mamífero, nasce precário, dependente de um outro que o acolherá para satisfazer suas necessidades básicas e inserção no mundo simbólico de dependência do outro poderá deixar marcas de difícil digestão.
Autores como Ferenczi e Laplanche; com base na natureza traumática da sexualidade, pilar da teoria freudiana, apresentam reflexões profundas sobre as relações de poder e assimetria desde o grupo familiar, que podem desembocar em condutas violentas.
A primeira vulnerabilidade, portanto, é nossa condição infantil: nascemos num mundo construído e desemborcamos numa ordem simbólica que demanda tempo para ser digerida, internalizada, adquirida. Essa vulnerabilidade poderá ser ressignificada toda vez que o desamparo, o abandono, a hostilidade do meio circundante se apresentar.
Para enfrentarmos o mundo, interno e externo, somos dotados de arsenal de defesas, como acontece com nosso sistema imunológico: algumas defesas mais precárias, outras mais eficazes. Algumas defesas para enfrentar ameaças que se apresentam podem ser aqui enumeradas: negação, isolamento, esfriamento dos afetos, agressividade/ ataque. Cada situação convoca reações diversas, algumas mais sintônicas, outras mais patológicas. Os sintomas são criativos, produções próprias de cada sujeito, mas carregam uma história que nem sempre vem à luz.
Vamos tomar algumas reações que aqui nos interessam: a negação da realidade é um mecanismo básico e econômico que visa suprimir um conflito carregado de dor diante do mundo. Por exemplo, uma criança que sofre ameaças verbais em casa pode apresentar como reação apatia e desencanto, evitando estabelecer contatos. Nesse exemplo hipotético, mas bastante comum nos consultórios, instituições e nas escolas a apatia e a alienação podem estar na raiz de queixas escolares, meros sintomas, que escondem uma criança assustada, impotente, que não se contrapõe ao adulto violento, temendo a perda de seu amor. Um outro sintoma, oposto a este, seria uma reação agressiva e hostil diante de todos os que se apresentam na vida da criança: professores, escola, amigos e o próprio brincar.
Nos dois casos, estamos diante da violência e do ódio, produzindo efeitos nefastos, que constituirão um indivíduo que provavelmente terá dificuldades de negociar e criar saídas interessantes para sua vida. O custo é alto: a dessubjetivação, no caso da apatia; ou a propagação de uma rede de violência ininterrupta que sempre se reatualiza, independentemente do contexto, no caso de reações agressivas.
Um campo de violência, dual, familiar, grupal, não importa, parece requerer a presença de uma escuta, de um terceiro, que propiciará que uma narrativa aconteça, permitindo que a história se revele.
Se a violência é um sintoma, precisamos acolhê-la como expressão de um indivíduo e de um grupo. É muito comum que situações de violência representem esquemas repetitivos, automáticos, que impedem que o sujeito saia do circuito empobrecedor e assustador.
Estamos aqui lidando com fenômenos grupais complexos, nos quais a violência surge como emergente de um modo de relação potente, baseado no desejo (nossas pulsões de vida e morte) e na história cultural do grupo em questão. Hannah Arendt aponta que sem poder a violência não se sustenta. Portanto, é necessário um olhar que contemple o terreno do afeto e do desejo (esfera individual), e da história (dos grupos, das culturas, dos momentos), o que coloca a violência como estratégia racional de enfrentamento do mundo. Arendt nos lembra que o homem se comporta como um animal porque, afinal, é um animal.
Um filme recente, O Insulto (L’lnnsulte, França / Líbano, 2017), nos coloca diante da violência em várias camadas. Uma questão banal, cotidiana, (uma calha que vaza da varanda de um cidadão libanês), põe em tensão, em guerra, dois moradores da cidade: um libanês e um palestino.
Parece que a água que vaza é o pretexto, ou o detalhe, ou o resto que movimenta questões de ordem pessoal, familiar, global, racial, turbinadas por ódio e restos que não puderam ser metabolizados.
O ódio se manifesta através do insulto verbal (que dá nome ao filme), acompanhado de agressão física. E estes dois homens criam uma guerra particular, acompanhada por seus grupos étnicos. Entra um terceiro: o tribunal, o Direito. E, nessa instância, uma das discussões passa pela comparação entre insulto e agressão física. Afinal, o que seria um crime: insultar ou agredir?
O tribunal também apresenta uma situação peculiar: os advogados escolhidos têm um parentesco importante. Trata-se de pai e filha, outra situação de poder e assimetria que tensiona as decisões.
O ódio entre os dois sujeitos transborda para toda a comunidade, levando a discussões de extrema importância, nas quais se contempla o individual e o coletivo, grupal. O filme caminha para a narrativa das histórias de cada agressor/vítima. Tomamos contato com seu percurso sofrido, com suas perdas, com a destruição das cidades, o desenraizamento: o palestino era um engenheiro, em busca de trabalho, que se contenta com uma função de mestre de obras, uma vez que não é reconhecido pelo Estado. O libanês, a duras penas, rememora sua infância, durante o qual presenciou a destruição de sua cidade e ele também era um estrangeiro em seu próprio pais.
Aos poucos, o ódio vai dando espaço a histórias de perdas, rancores, humilhações e busca de um lugar de dignidade e afeto. Nesse filme podemos reconhecer os aspectos que Freud levanta em seus textos mais culturais, que tratam do mal-estar, do medo das perdas, das memórias que não passam e que muitas vezes retornam em forma de ódio e destrutividade.
DESTRUIÇÃO
Retomando nosso tema, após algumas considerações, podemos concluir que a violência não é um instinto e que nem sempre é fruto do irracional. Se assim fosse, estaria naturalizada e aceita. A violência é o emprego da agressividade visando a destruição do outro, das redes simbólicas, dos contratos que cada cultura tem para si. Nas guerras, a violência é um método. E certas guerras emergem para denunciar esquemas violentos, como se decretassem: “daqui para frente, não mais”
Porém, como a Psicanálise nos ajuda a refletir, a irracionalidade reside no fato de que muitas vezes os homens desconhecem as raízes de seus atos, suas verdadeiras intenções. O próprio alvo da violência, usando uma linguagem freudiana, pode ser um mero deslocamento de objetos do passado, de traumas do passado impassado, que emergem de forma desviada e distorcida.
A culpa, ou o sentimento inconsciente de culpa que tanta angústia mobiliza, é fruto do conhecimento de uma norma que condena o ato. A partir dessa angústia, que pode ser grande catalizadora de atos violentos, é possível construirmos uma reflexão. Assistimos, em muitos grupos, a ideia utópica de uma última violência, de um novo ato fundante, espécie de sacrifício que interromperia, ao menos temporariamente o circuito de violências.
FREUD DIZ A EINSTEIN QUE A VIOLÊNCIA TEM VÁRIAS FACES
Por que a guerra? Numa correspondência de 1932 entre Freud e Einstein, que versava sobre as possíveis razões das guerras, Freud reconhece que a história da humanidade é marcada por movimentos dinâmicos em que a violência surge com diversas roupagens. Da violência física, passamos ao Estado de direito, muitas vezes rompido, que não deixa de guardar em si certa violência, uma vez que exige renuncias instintivas de cada indivíduo. Lendo essas considerações, acompanhando o raciocínio complexo de Freud, pensamos que a convivência em grupo nos salva e nos escraviza. O equilíbrio é tênue e facilmente rompido. A passagem da barbárie à civilização não conseguiu evitar a solução violenta de conflitos no interior dos grupos. Parece que os resultados das conquistas não são duradouros, o que nos leva à conclusão de que nunca nos livraremos plenamente das guerras. Embora os vínculos afetivos sustentem nossa vida em grupo, nossa natureza humana cria um campo tenso, no qual a destrutividade e o ódio comparecem. Parece que não é possível abolirmos as tendências agressivas que habitam os homens, o que nos inclui.
SIMPLIFICAÇÃO
Edgar Morin no livro Introdução ao Pensamento Complexo aponta para o risco da simplificação, que habita, inclusive as ciências. A realidade sempre nos convoca a repensarmos os fenômenos que se apresentam e o tema da violência e do ódio mostra que a realidade humana não é uma máquina perfeita, que evolui como a tecnologia. A hiper simplificação dos fenômenos, as ideologias, a rapidez dos novos tempos representa grandes riscos que podem dar lugar a fenômenos do campo da violência. É importante considerar o conhecimento como limitado, insuficiente e colocá-lo também como objeto de investigação.
EGO E ID
No texto de Freud “O ego e o Id”, que retoma algumas ideias expressas em Além do Princípio e do Prazer, o ego não é senhor de si: escravo da natureza pulsional, sexual, do mundo externo e do superego, representante inconsciente de imperativos categóricos. O ego passa a ser considerado uma superfície tênue ancorada no id inconsciente irredutível, quase um estrangeiro dentro de nós. Se o ódio que a violência atualiza é sintoma, resta percorrer o caminho regressivo e as trilhas internas inconscientes para que o sujeito não fique alienado nem frente a seu mundo pulsional, nem nas demandas externas alheias à sua constituição.
DORA TOGNOLLI – é psicanalista, membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. É psicóloga e mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo e publica artigos em revistas e livros especializados.
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