CRIANÇAS TRANSTORNADAS
São cada vez mais evidentes os males provocados pela medicalização indiscriminada, especialmente na vida escolar, o que pode trazer consequências irreversíveis para a pessoa
Tivemos momentos na história em que o indivíduo era altamente prejudicado pela carência de critérios diagnósticos confiáveis que permitissem seu tratamento médico, muitas vezes chegando a óbito. Contudo, no século XXI vivemos uma grande ebulição das práticas diagnósticas. Crê-se que nos diagnósticos são encontradas as respostas para o tratamento e cura do indivíduo. Todavia, nem sempre essas práticas contribuem para o desenvolvimento de uma vida plena e saudável, pois muitas vezes são realizadas de forma indiscriminada, sem discussão sobre a massificação de casos de supostas doenças, síndromes ou transtornos de ordem psíquica que conduzem o indivíduo a modificações comportamentais por meio de sua medicalização. De maneira geral, os critérios diagnósticos acusam, nomeiam e classificam incapacidades, problemas, déficits, anormalidades que categorizam os indivíduos segundo resultados homogêneos, deixando à margem suas singularidades, sua subjetividade. Lamentavelmente, grande parte desses indivíduos é constituída por crianças em idade escolar.
O diagnóstico, quando realizado de maneira indiscriminada e/ou equivocada, traz consigo efeitos iatrogênicos que impactam até mesmo de forma perigosa a vida do indivíduo. Quando as características do que foi diagnosticado se apresentam como mais evidentes do que o próprio ser humano, encontramos nas relações humanas um comportamento que gera a “coisificação ” do indivíduo. Ele não é mais uma pessoa concebida e considerada pela sua subjetividade, mas sim a evidência, a materialização daquela “coisa” que antes era abstrata, o rótulo e as características dessa “coisa”. Infelizmente, em grande parte dos casos, passa a ser maior do que o próprio indivíduo frente à sociedade a qual pertence. Por essa causa encontramos em muitas escolas professores que, quando se referem a certos aprendizes, dizem: “aquele é o TDAH, aquele é o autista e aquela é a Down”, ou seja, essas crianças são nominadas não mais pelos seus nomes próprios, mas sim pelo quadro sintomático que a partir do diagnóstico emitido nelas foi materializado. Vale ressaltar que a homogeneização visa o controle do indivíduo pela sociedade contemporânea e o diagnóstico tem esse poder. Em outras palavras, o indivíduo curioso, questionador, superativo, resistente a cumprir todas as tarefas propostas, autêntico, criativo em sua maneira de ser acaba por incomodar a sociedade. Portanto, incomoda também a escola, que é a própria sociedade na forma de uma instituição que molda os indivíduos para serem segundo o que lhes foi predestinado pelas normas já estabelecidas como padrão de comportamento, padrão de vida. Quem assim não é foge aos padrões, logo é anormal ou rebelde.
Segundo Barbier, espera-se não um diagnóstico focado no quadro sintomático, mas a construção de sentido e significado sobre a doença para o indivíduo. No caso das muitas crianças concebidas como “transtornadas” por alguma suposta doença, síndrome ou transtorno deveria haver uma preocupação sobre o significado destas para suas famílias e para si mesmas; sobre a relação da pessoa com seu corpo, sua singularidade, sua forma de ser e viver.
Por causa da soberania dos diagnósticos fundamentados, principalmente na observação comportamental, é que se construiu uma imagem exacerbada sobre os comportamentos das crianças com transtorno do espectro do autismo, transtorno do déficit de atenção e com hiperatividade dentre outros e, como consequência, crê-se que essas crianças são hiperativas, agressivas, alienadas, desafiadoras, sem condições de aprender como as demais, submersas em seu mundo particular e até mesmo uma ameaça para outras crianças e que por isso devem frequentar ambientes terapêuticos segregados.
FATORES PARTICULARES
A medicalização indiscriminada tem se estabelecido como um poderoso elemento no desmantelamento dos direitos humanos, pois a partir de seu cientificismo emanam discriminações, estigmas e preconceitos que dão margem às desigualdades entre os indivíduos desencadeados por fatores particulares. De acordo com Moysés e Collares, ”A normatização da vida tem por corolário a transformação dos problemas da vida em doenças, em distúrbios. O que escapa às normas, o que não vai bem, o que não funciona como deveria… tudo é transformado em doença, em problema individual. Afasta-se a vida, para sobre ela legislar, muitas vezes destruindo-a violenta e irreversivelmente”.
Nesse contexto, a medicalização tem o objetivo de restringir, modificar, diminuir ou cessar certos comportamentos concebidos como anormais e que fogem ao padrão conservador da sociedade. Como exemplo, podemos citar o objetivo de modificar o comportamento mais ativo de crianças com diagnóstico de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade para que estas se apresentem mais quietas, atenciosas e concentradas na sala de aula.
Segundo a OMS, cerca de 4 % dos adultos e de 5 % a 8 % de crianças e adolescentes têm TDAH e calculam que pelo menos duas crianças de uma sala de aula de 40 alunos tenham o transtorno (Medeiros, 2013). Nota-se, mais uma vez, a presença da supervalorização do diagnóstico que nomeia, classifica e rotula o indivíduo a partir de seu comportamento.
Sob o prisma do tratado das doenças que evidenciam comportamentos diferentes como se fossem um desvio em relação ao que é considerado normal do ponto de vista fisiológico, essa criança deve ser medicalizada precocemente por entenderem que a “transtornada” terá alterações de conduta por toda sua vida, podendo, inclusive, se envolver em ações criminosas ainda na adolescência.
Nesse caso, o medicamento mais utilizado tem sido a Ritalina (nome comercial), que atua como um estimulante do sistema nervoso central e potencializa a ação da noradrenalina e dopamina. O Brasil é o segundo maior consumidor do planeta de Ritalina.
Percebe-se que há uma irresponsabilidade a respeito do impacto da medicalização na vida das crianças. Na verdade, não há nada que comprove cientificamente que o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade comprometa a aprendizagem das crianças. Entretanto, por certo que os efeitos colaterais da “droga da obediência” podem trazer prejuízos de todo tipo para seu desenvolvimento global, afetando profundamente seu processo de aprender como sujeito singular com possibilidades de aprendizagem como é próprio da espécie humana.
AUTISMO
Sobre o transtorno do espectro do autismo, a ONU acredita haver mais de 70 milhões de pessoas em todo o planeta, afetando a maneira como esses indivíduos se comunicam e interagem.
Em 2007, na Conferência e Exposição Nacional da Academia Americana de Pediatria, realizada em São Francisco, EUA, um estudo de observação dos padrões de prescrição médica apontou que 80% das crianças diagnosticadas com autismo ou síndrome de Asperger (TEA) são tratadas com pelo menos um medicamento psiquiátrico. Para aproximadamente 30% dos pacientes foram prescritos medicamentos antipsicóticos, 40% antidepressivos, 40% estimulantes e aproximadamente 30% receberam alguma outra classe de medicamento, incluindo estabilizador de humor e anticonvulsivantes. Alguns pacientes foram tratados com vários medicamentos. Segundo comentário de George W. Rutherford, professor de Epidemiologia na Universidade da Califórnia, em São Francisco, ao periódico Medscape Pediatrics: “Se você procurar ver o que seus colaboradores estão fazendo, há uma tendência para tratar uma grande parte destes pacientes com medicamentos psicotrópicos”, disse em uma entrevista.
E ainda complementa: “Assim como em muitas condições psiquiátricas em crianças, sabemos realmente muito pouco sobre como esses medicamentos realmente funcionam, e como deveriam ser usados na prática. Esse realmente é um primeiro passo na pesquisa que deveria basicamente motivar mais pesquisas”.
Nota-se que não existe um padrão específico para o tratamento do TEA, tampouco esse transtorno, tal como também é concebido, é uma doença para ser curada. Os medicamentos utilizados se apresentam como uma tentativa de ensaio e erro para averiguar qual deles é mais promissor para a modificação de comportamentos não desejados. Sujeita-se, portanto, a criança à medicalização sem levar em conta os efeitos colaterais sobre sua vida, muito menos sobre seu processo de aprendizagem, uma vez que é com um concebê-las como seres incapazes de aprender junto a outras crianças.
A medicalização da vida da criança é hoje popularmente aceita pela maioria das famílias em razão da falta de conhecimento e informação sobre os desencadeamentos iatrogênicos que podem ocorrer. Ainda sobre o TEA, segundo um estudo feito por Holland, por cerca de 20 anos o governo federal americano negou publicamente a relação entre vacinas em crianças e autismo. Contudo, o Programa de Compensação por Lesões Causadas por Vacinas pagou indenizações por danos de vacinas para crianças que apresentaram quadros de lesão cerebral, convulsão e autismo.
Face a esse trabalho, o diretor executivo da Safe Minds, Lyn Redwood, comentou: “Esse estudo muda dramaticamente o debate sobre autismo e vacinas. A questão não é mais se é possível que as vacinas causem o autismo. A resposta é clara. Agora, temos de perguntar: quantos casos de autismo as vacinas causaram e como nós podemos prevenir novos casos?”.
O estudo realizado investigou aproximadamente I.300 casos de lesão cerebral infantil como resultado de vacinas em que o Juizado Especial da Vacina deu ganho de causa para os demandantes, em busca de referências ao autismo, sintomas de autismo ou desordens comumente associadas ao autismo. A hipótese de que o TEA pode ser desencadeado na criança após determinadas vacinas é crescente e tem instigado pesquisadores a estudarem mais o assunto.
Não é uma questão de se posicionar veementemente contrário às vacinas. Isso não resolve o problema da dúvida sobre elas. Mas sim averiguar como se dão a fabricação e a aplicação das vacinas e medicamentos, bem como seus efetivos riscos contra a saúde humana. Será que precisamos da medicalização de tudo? É preciso ampliar os estudos diante dessa hipótese.
Outras pesquisas sobre o impacto da medicalização na vida das crianças indicam que nosso organismo tem condições de gerar anticorpos para muitas doenças e que, portanto, não haveria necessidade da criação de vacinas para todas as doenças que talvez pudéssemos contrair em algum momento de nossas vidas. Em 2010, o Instituto Nacional de Saúde da Finlândia (THL) suspendeu o uso da vacina H1N1 pela decorrência de distúrbios neurológicos gerados em crianças e jovens, especificamente a narcolepsia, que tem como sintoma o aumento da necessidade de sono e que resulta no indivíduo adormecer, de repente, sem nenhum tipo de aviso, além de seus músculos poderem se enfraquecer e, subitamente, colapsar. Até a presente data, nenhuma cura é conhecida para a doença. Além da Finlândia, houve um número elevado de casos de narcolepsia na Suécia após uma campanha da vacina H1N1 em 2009 / 2010. E, ainda, tanto as vacinas contra a gripe tradicional como a H1N1 estão associadas a uma série de efeitos colaterais em todo o planeta, incluindo casos da síndrome de Guillain-Barré e distonia. A vacina contra a gripe tradicional tem sido associada às convulsões em menores de 5 anos de idade.
Segundo Kent Holtorf, especialista em doenças infecciosas, a dose de mercúrio na vacina contra gripe é 25 mil vezes superior ao que é considerado seguro para o ser humano, além de níveis elevados de timerosal e esqualeno.
Embora os governos federais, diversos profissionais da saúde e laboratórios afirmem não serem verdadeiras as hipóteses dos casos caóticos acima mencionados, há que se pensar que também não sejam motivo para descartes e fúteis avaliações. As controvérsias são reais e vários profissionais da saúde se pronunciam a respeito do perigo da medicalização da vida e da sociedade. Estariam todos enganados ou mentindo?
IMPACTO IATROGÊNICO
A criança cujo diagnóstico lhe é imposto tem sua marca biológica espelhada como um fator determinante para o fracasso em seu processo de aprendizagem. Ela sofre o peso do estigma de ser percebida como alguém doente ou anormal, carrega sobre si a culpa pelo não aprender e passa a ser invisível como sujeito singular. Ela é a materialização da doença, síndrome, anormalidade ou transtornos imputados pelo diagnóstico. Ao referirem-se a ela, apontam ser a autista, o TDAH, o esquisito, sua identidade é o reflexo da anormalidade. Nessa percepção é comum ouvirmos as frases: “Os autistas vivem isolados”, “Os TDAHs são agressivos”, “Muitos Downs aprendem”.
Já não há mais a singularidade, a subjetividade do João, da Juliana, do Marcos, há nomeações e classificações coletivas baseadas nos parâmetros patológicos. Esse talvez seja o pior dos efeitos iatrogênicos que se perpetuam de modo histórico, social e cultural na vida dessas crianças.
A crença por parte da escola e da família no diagnóstico e nas características que trazem dos quadros sintomáticos também é um fator iatrogênico. Enraizada nos princípios da normalidade, eles, cegamente, veem comportamentos agressivos e hiperativos apenas naquelas crianças diagnosticadas com algum tipo de transtorno, esquecendo-se que a agressividade, a ansiedade, a euforia, a emoção em sua totalidade, são próprias de seres humanos e que todos nós as manifestamos dependendo do contexto no qual estejamos inseridos. A criança assujeitada à medicalização indiscriminada se encontra numa condição passiva de apresentar quaisquer dos efeitos colaterais dispostos e cientificamente comprova dos pelos laboratórios farmacêuticos. Portanto, ao invés de a sociedade (da escola) aprender a lidar e a trabalhar com as novas configurações subjetivas que as crianças apresentam, e com seus novos modos de se relacionarem com o mundo que as cerca, prefere se render à psiquiatrização e à medicalização da vida, sem se questionar sobre o impacto iatrogênico sócio- educacional na vida da criança, tampouco sem questionar sobre os interesses comerciais da indústria farmacêutica.
Até o momento, não há comprovações da existência de uma doença neurológico-psiquiátrica que real mente comprometa a aprendizagem. Até porque cada um tem seu próprio jeito de aprender. Todos nós aprendemos o tempo todo.
A questão, na verdade, é: temos todos que aprender a dar conta de tudo o que a escola nos demanda? Se olharmos para toda a nossa vida escolar/acadêmica, quanto de conhecimento, de fato, nós acumulamos e nos lembramos de termos aprendido na escola? Tudo o que a escola nos obrigou a estudar é, verdadeiramente, imprescindível para nós? Precisamos nos comportar, nos concentrar, aprender as mesmas coisas, no mesmo tempo, no mesmo ritmo, com o mesmo método, com o mesmo rendimento e para os mesmos propósitos? Será que todos aprenderiam melhor se a escola valorizasse seus eixos de interesse?
O professor deve ser um agente de transformações e o aprendiz deve ser concebido como sujeito ativo da construção de sua história, de seu aprendizado, um sujeito com possibilidades de aprendizagem. A supervalorização dos diagnósticos pela escola e seu apoio à medicalização são caminhos opostos, cujo enfoque é a desconsideração da subjetividade do sujeito e aniquilação de sua personalidade. É a expressão mais nítida de barreiras atitudinais que adjetivam uma escola excludente e esse não deveria ser o reflexo de uma instituição formadora de cidadãos. Se a Psiquiatria é a responsável pelos inúmeros desencadeamentos iatrogênicos na vida das crianças convertidas em “transtornadas”, a escola que se rende à psiquiatrização e perpetua esse mal é cúmplice e coadjuvante dos resultados agravados na vida da criança, bem como de todo impacto sócio- educacional que corrobora para seu fracasso escolar.
ORGANIZAÇÃO SOCIAL
A escola deve promover e favorecer a educação de todos e para todos, a partir da organização do meio social, e a favor de um processo de ensinar e aprender repleto de sentido e significado para os aprendizes. Preparar-se continuamente para uma prática pedagógica, na qual tanto a coletividade quanto a individualidade sejam favorecedoras e promotoras do desenvolvimento da aprendizagem de todos os aprendizes, de modo que todos se relacionem, sejam acolhidos, participem e compartilhem de todas as atividades desenvolvidas.
Cabe à escola rever sua concepção de aprendiz, de professor, seus métodos de ensinar, seus propósitos frente à sociedade e não se expropriar da educação de todos e para todos cedendo espaço para a normalização e medicalização da vida escolar de suas crianças.
BULA ALERTA PARA SÉRIOS EFEITOS COLATERAIS
Segundo a própria bula, a droga “Ritalina é um estimulante do sistema nervoso central. Seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente elucidado, mas presumivelmente ele exerce seu efeito estimulante ativando o sistema de excitação do tronco cerebral e o córtex. O mecanismo pelo qual ele produz seus efeitos psíquicos e comportamentais em crianças não está claramente estabelecido, nem há evidência conclusiva que demonstre como esses efeitos se relacionam com a condição do sistema nervoso central. Os pacientes em uso de Ritalina normalmente se queixam de desconforto abdominal, náusea e azia no início do tratamento. Essas queixas diminuem espontaneamente ou após alguns dias, tomando-se os comprimidos durante as refeições. Ritalina pode causar diminuição de apetite e isso pode resultar em perda de peso ou atraso de crescimento (peso e altura), especialmente em crianças. A suspensão regular do medicamento nos fins de semana e nas férias ajuda a restringir os efeitos indesejados ao mínimo, mas tal esquema somente deve ser adotado sob orientação do médico. A retomada de crescimento normalmente ocorre após a descontinuação do tratamento. Ritalina pode causar insônia, se for administrada muito próximo da hora costumeira de dormir” (Novartis, 2013).
SILVIA ESTER ORRÚ – é graduada em Pedagogia, pós-graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional, com mestrado e doutorado em Educação. Pós-doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. É professora colaboradora na Universidade Federal de Alfenas, campus Poços de Caldas, MG. É autora de livros, capítulos e artigos em periódicos nacionais e internacionais, é coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e inclusão (Lepai/UnB).
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