FORMAS FABRICADAS
Por trás da busca obsessiva de um corpo escultural, a clínica psicanalítica revela traços de desorganização, experiências de vazio e estados melancólicos depressivos.

Todos os dias, a mídia nos oferece uma legião de pessoas sorridentes, bonitas e bem-humoradas que exibem beleza, poder, inteligência, dinheiro. São cidadãos do mundo que viajam, valorizam seus dotes, cultivam seu corpo, enaltecem seus feitos e divulgam fórmulas de sucesso. Convidam à admiração, suscitam inveja, capitalizam sua marca, alimentam especulações em torno de sua vida, fazendo a fortuna de uma verdadeira indústria de produtos e imagens de celebridades. Parecem felizes ao exibir uma satisfação aparentemente sem fim. Sofreriam também?
Para alguns, trata-se de vaidade. Para outros, de auto – estima elevada ou ainda, simplesmente da sensação de “estar de bem com a vida”. Sem dúvida, é bom sentir-se bem consigo mesmo, com o corpo, com a vida social e profissional, sonhar e fazer projetos, ter sucesso em realizações. Mas chama a atenção o excesso: a exuberância e a insistência de sorrisos que parecem nunca se desfazer, de biografias que não registram derrotas, dúvidas nem decepções. Uma felicidade plastificada, impermeável às intempéries da vida.
Mais que a própria satisfação, essas pessoas solicitam permanentemente o reconhecimento e a admiração do outro. Porém, mesmo quando a recebem, a admiração esperada logo se revela insuficiente, provocando uma busca duradoura de superação de seus atributos.
Vislumbramos em cenas como essas as tramas nas quais, desde o nascimento, se tecem as relações do humano com seu semelhante. As marcas de satisfações e prazeres, os traços narcísicos, as forças pulsionais no Inter jogo com seus objetos de satisfação, os anseios e inspirações que forjam a subjetividade, as dinâmicas identificatórias, a busca por um lugar satisfatório no mundo e nas relações sociais. A luta para existir para si e existir para o outro.
As características físicas, a inteligência, as habilidades, o poder, o dinheiro são apenas alguns dos meios através dos quais o homem busca ser reconhecido por seu semelhante e por si mesmo. Entre esses atributos, o corpo e as experiências a ele relacionadas ocupam um lugar especial como referência para a apreensão das relações com o mundo, com os outros, consigo mesmo.
Matriz da subjetividade, o corpo guarda as marcas de nossa chegada ao mundo, da acolhida e dos cuidados pelo outro, do reconhecimento, da satisfação ou da frustração de nossos desejos. O corpo é nosso principal capital. Nem todos podem oferecer ao olhar do outro o poder, os sinais de status, o dinheiro. Mas, em busca do reconhecimento, oferecemos o corpo a esse olhar. Da mesma forma, somos solicitados pelo corpo do outro a reconhecê-lo com nosso olhar.
O corpo é nosso primeiro universo. Ele nos concebe, abriga, registra as primeiras impressões que temos do mundo: cheiros, sabores, luzes, sons, calor, frio. São estados e movimentos do corpo que estabelecem as primeiras formas de comunicação, muito antes do pensamento e da linguagem. Nele se constrói uma história marcada por sensações, movimentos, percepções e traços do encontro com o desconhecido do mundo. É o corpo, ainda, o último reduto ao qual nos recolhemos nos momentos de dificuldade, tristeza, desamparo. Reconhecemos, assim, uma verdadeira dimensão hipocondríaca de nossa relação com o mundo, para sempre presente no humano.
Não surpreende, portanto, encontramos o corpo na linha de frente das formas de expressão do modo de existir contemporâneo, e, particularmente, como porta-voz privilegiado, das dificuldades do sujeito em lidar com o outro, com suas expectativas, com sua própria condição de vida.
Insatisfeitos com a degradação da qualidade de vida, com a violência crescente no mundo, inseguros quanto à situação econômica, solitários e empobrecidos por relações pessoais e sociais esgarçadas e vazias, incapazes de considerar a importância de valores e símbolos para nos situarmos, uma vez mais, buscamos o reconforto em nosso corpo. Porém, surpreendentemente, nesses tempos em que, como nunca, se promove o culto a exibição e o cuidado do corpo, também ele nos decepciona. É fato: estamos de mal com nosso corpo.
Uma pesquisa realizada pelo Observatoire Cidil des Habitudes Alimentaires (Ocha) na França, em 2003, num universo de mil mulheres, revelou que 86% delas se dizem insatisfeitas com suas formas anatômicas. Apenas 14% afirmaram sentir-se bem com seu corpo sem terem para isso utilizado qualquer procedimento de modificação. No Brasil, o quadro não é diferente. Pesquisas divulgadas pela revista Veja em 2014 revelam que somos o segundo país do mundo em número de cirurgias plásticas, 400 mil em 2013, metade delas puramente estéticas (40% lipoaspiração, 30% mamas, 20% face), na maioria realizadas entre os 20 e 34 anos. Dos 12.477 entrevistados pelo Instituto lnterScience, 90% das mulheres e 65% dos homens afirmam sonhar com mudanças no próprio corpo; 5% já tinham feito alguma plástica, e 90% pretendiam fazer outra. Entre os que nunca fizeram uma cirurgia plástica, 30% declararam que esperavam criar coragem para realizá-la.
Dos simples tratamentos cosméticos às cirurgias mais radicais, é ampla a gama de recursos utilizados para tentar ficar de bem com o próprio corpo. Adereços, roupas, maquiagens, tatuagens, piercings, atividades esportivas, musculação, cirurgias plásticas buscam dar conta de um mal-estar que, mesmo que referido ao corpo, geralmente tem pouco a ver com ele. Tentativas muitas vezes vãs de aplacar inquietações, angústias e experiências mais profundas de vazio que apenas no corpo encontram um porta-voz de mensagens incompreensíveis, de pedidos de socorro que não conseguem se fazer ouvir de outra forma. Diante da dificuldade de encontrar em si mesmo uma imagem que satisfaça, busca-se no olhar do outro, no social a imagem que possa agradar.
É frequente a experiência de cirurgiões plásticos que vêm pacientes chegar ao consultório com um retrato de uma atriz pedindo para ficar igual a ela. Diante deles, desfilam mulheres que anseiam poder encontrar no espelho reflexos de corpos que não são o seu, os seios turbinados de Daniele Winnits, o delicado nariz de Vera Fischer, toda a exuberância de Angelina Jolie. Muitos cirurgiões plásticos consideram com naturalidade esses pedidos, lembrando que a beleza, hoje, é um componente essencial no competitivo mercado de trabalho, nos negócios e na sociedade.
Para responder a expectativas e a ideais de beleza, não se medem esforços, despesas e, menos ainda, riscos físicos e psíquicos implicados em tais transformações. Cada vez mais, homens e mulheres procuram os tratamentos estéticos e a cirurgia plástica. Também adolescentes e até crianças vêm se preocupando com as formas e as condições de seu corpo, querendo adequá-lo a padrões estéticos e culturais, apesar de ainda estarem em transformação, o número de jovens que colocaram próteses para “turbinar seus peitos aumentou 300% nos últimos dez anos segundo reportagem publicada pela Folha de São Paulo.
Nesse ponto, é importante lembrar a distinção entre os procedimentos estéticos e reparadores. É inegável que os progressos da traumatologia, da medicina estética, da reabilitação e da cirurgia plástica propiciam para milhões de pessoas recuperações significativas de sequelas de catástrofes, guerras, malformações congênitas e de características anatômicas nocivas. Porém, em muitos casos, a dificuldade em compreender a natureza do “sofrimento emocional” que acompanha o desejo de uma plástica nubla essa distinção.
MAL ESTAR NO CORPO
Cientes dessas questões, alguns profissionais mais sensíveis convidam seus pacientes à reflexão sobre o exagero de muitas solicitações que lhes são dirigidas, ponderando sobre a necessidade de levar em conta a singularidade e a estrutura anatômica de cada paciente. Eles reconhecem que cirurgia plástica não faz milagres, não salva casamentos, nem sempre acaba com a angústia, tampouco com a depressão. Porém, diante da insistência dos pedidos que lhes são feitos, muitas vezes cedem às solicitações, inclusive por saber que não será difícil para o paciente encontrar um colega que se disponha a realizar a operação, mesmo que descabida.
Os ímpetos de transformação corporal alcançam ainda manifestações extremas. Sintonizada com o espírito dos tempos, a mídia transforma em espetáculo os dramas humanos. A rede americana ABC exibe semanalmente o programa Extreme makeover, que mostra a transformação radical de pessoas que se submetem a cirurgias, tratamentos, dietas, ginástica, aulas de moda e cabeleireiros para apagar todo e qualquer defeito que viam em seu corpo. Além das clássicas imagens de “antes” e “depois”, são minuciosamente exibidas também as etapas da “transformação”: a ação do bisturi sobre os tecidos, detalhes de manipulações cirúrgicas, inchaços, expressões de dor, lágrimas de sofrimento e de encantamento diante dos “milagres” operados, a reação de surpresa e fascínio de familiares e amigos.
Outro programa, The swan, promove um concurso em que as participantes passam por todos os recursos estéticos existentes, sem poder jamais se olhar no espelho durante o processo. Ao final, a ganhadora pode contemplar sua nova imagem. Nesse momento, é frequente as participantes declararem: “Essa não sou eu”. Do ponto de vista psicanalítico, podemos reconhecer nesse comentário um insight.
Descobrir-se, de súbito, num corpo radicalmente diferente daquele com o qual sempre se conviveu, coabitar, de repente, com um estranho em si: naquele programa, aparentemente, não ocorre estranhamento, medo, horror, apenas prazer, alegria, espetáculo. Na legitimação coletiva das fantasias mais onipotentes, na banalização de complexos desejos e da prática médica, no insidioso convite à despersonalização, todos parecem encontrar satisfação: os participantes, o público, muitas clínicas de estética e, naturalmente, as redes de televisão que ainda se comprazem com a imagem de fada madrinha que propicia a realização de desejos para quem não tinha condições de realizá-los. Nada de novo. A mídia continua preenchendo os vazios, formatando até mesmo a carne das vacilantes formas de subjetivação contemporâneas.
A experiência clínica nos convida a suspeitar de mundos encantados como esses. À radicalidade de todas essas manifestações e à tentativa de banalizar a violência de tais procedimentos, devem corresponder, no interior de cada personagem dos dramas da transformação corporal, fenômenos de brutalidade e violência comparáveis aos que são negados e que, mesmo contidos e silenciados, fermentam seu potencial nocivo, desorganizador e algumas vezes letal. Com efeito, longe dos palcos, das câmeras, dos holofotes, na intimidade dos consultórios, entre sofrimento e vergonha, muitas vezes não são felizes as lágrimas que brotam ao contato com os estranhos que alguns pacientes descobrem em seu próprio corpo.
Como as lágrimas de repulsa de uma mulher que, após uma plástica mamária considerada perfeita pelo médico, impedia qualquer aproximação do marido; as de solidão e de arrependimento daquela adolescente que, depois de muita insistência junto aos pais, realizou uma plástica no nariz e passou a se sentir “uma intrusa” na família, na qual muitos parentes, de geração em geração, possuíam o formato característico do nariz que operara, ou ainda as lágrimas que acompanhavam as intensas crises de angústia e alguns episódios delirantes que mantinham reclusa em sua casa uma bela mulher submetida a uma cirurgia de redução de estômago. Apesar de desaconselhada por duas equipes de gastrenterologia, ela encontrou uma terceira que aceitou operá-la. Perdeu os 20 quilos que desejava, mas passou a não conseguir mais se olhar no espelho para ver o corpo que tanto imaginara.
CORPOS SÃOS?
Na busca pela perfeição do corpo, também a atividade esportiva se vê marcada por dinâmicas semelhantes. Para alcançar formas socialmente valorizadas, frequentemente o esporte é esvaziado de sua dimensão lúdica, de prazer e de vivência coletiva tornando-se um imperativo social e estético, malhar horas a fio na academia, praticar esportes radicais, submeter-se a regimes draconianos, tudo isso complementado com a utilização de anabolizantes, esteroides e outras substâncias para a modelagem da massa muscular e para o aumento das performances esportivas. Uma legião de “sarados” e “bombados” vem cada vez mais povoando as cenas do cotidiano. Impulsionadas por doses crescentes da testosterona natural da juventude e pela adrenalina – não tão natural, mas intensamente secretada pela vida urbana – essa legião muitas vezes se aglutina em torcidas organizadas, gangues como skinheads e pitboys, e facções criminosas, sempre em busca de objetos para a descarga da poção explosiva que combinaram em si.
Porém, ao lado de corpos olímpicos, com habilidades e conquistas invejáveis, observamos também lesões, ligamentos que se rompem, articulações que se desgastam, repetidas cirurgias para corrigi-las, desrespeito pelo tempo de recuperação, noites mal dormidas antes e depois das competições. Os corpos-máquina acabam por revelar sua verdadeira natureza, limitada e frágil, nem sempre confiável. Constatação insuportável para muitos que, no anseio por mais uma partida, vitória ou recorde cedem à tentação de produtos dopantes para tentar superar tais fragilidades com mais riscos e sacrifícios do próprio corpo.
Diferentemente da anatomia imaginária revelada pela histeria, que mostra um corpo marcado por fantasias, prazeres e dores, muitas vezes aqueles belos corpos esculpidos por fármacos e exercícios extenuantes carecem de sonhos, de fantasias, encontrando-se anestesiados para tais afetos, pura massa, puro volume, força bruta, sem essência, sem alma. Para além das miragens de corpos esculturais revelam-se paisagens desérticas.
Marcada pelo excesso, essa ânsia pela busca do corpo ideal e as formas de alcançá-lo constitui apenas uma das pontas de um imenso iceberg que pode ser caracterizado como uma “psicopatologia do corpo na vida cotidiana”, como sugere Maria Helena Fernandes no livro Corpo. Ou seja, manifestações que evidenciam a precariedade de organizações subjetivas com dificuldade para manifestar o sofrimento em tempos psíquicos, que desafiam não apenas a clínica psicanalítica ou psicoterapêutica, mas, sobretudo, a clínica médica à escuta e à compreensão de fenômenos primitivos, aquém da palavra, impelindo terapeutas e pacientes a atuações sem fim.
O desenvolvimento humano visa a superação de dimensões automáticas e programadas da ordem biológica para alcançar funcionamentos mais abstratos e complexos da ordem psíquica. Esse processo ocorre segundo movimentos de organização progressiva de estruturas, funções e comportamentos, das mais simples às mais complexas, simultaneamente a movimentos de desorganização, de sentido oposto. Todas as etapas e todos os níveis de funcionamento anatômicos, fisiológicos, sensoriais, motores, afetivos e psíquicos – são marcados por essas dinâmicas.
A anatomia, a fisiologia, as funções sensório-motoras e psíquicas obedecem a esses princípios, marcados pelas dinâmicas organizadoras e desorganizadoras das pulsões de vida e de morte. A partir do nascimento, por exemplo, observamos no bebê a integração progressiva de movimentos e funções antes desorganizados, a convergência ocular, a coordenação motora, a discriminação auditiva, o reconhecimento e a distinção entre seres familiares e estranhos, o desenvolvimento da linguagem e do pensamento, entre outros mecanismos. Experiências traumáticas podem provocar a perda da especificidade e da complexidade dessas mesmas funções (desorganização psíquica, regressões psíquicas e motoras, perturbação do sistema imunológico etc.).
FUNÇÃO MATERNA
Nos primeiros tempos de vida, a sobrevivência e o desenvolvimento da criança dependem da presença de outro ser humano, bem como da qualidade dessa presença. A mãe (ou aqueles que exercem essa função) busca propiciar não apenas a satisfação das necessidades vitais do bebê, mas também estimular seu desenvolvimento. Ela também funciona como uma espécie de “película” de proteção contra os estímulos internos e externos que a criança ainda não é capaz de assimilar. Denominado por Freud de “para-excitações”, esse recurso tem um papel essencial nos processos de organização e desenvolvimento da criança. A qualidade dessa presença materna determina a possibilidade de aquisição e a qualidade de competências específicas, da autonomia e dos recursos mais evoluídos e harmônicos de funcionamento.
É também a qualidade dessas relações que determina a passagem da vivência biológica para a experiência do corpo erógeno, do instinto para a pulsão, da necessidade para o desejo, da excitação para a angústia, do sono fisiológico para o sonho. As relações objetais primitivas marcam também a qualidade do desenvolvimento do narcisismo e de todas as instâncias e funções do aparelho psíquico, bem como do equilíbrio entre as pulsões de vida (organizadoras) e de morte (desorganizadoras).
Nesse contexto, forjam-se também as representações do próprio corpo e as possibilidades de experimentá-lo como fonte de prazer para si e para o outro. Para além de critérios estéticos e de atributos anatômicos, a representação da beleza do corpo é também construída pelas experiências de satisfação e frustração, prazer e desprazer, de acolhimento e de rejeição que, no encontro com o semelhante e com o ambiente, o corpo pôde experimentar. A partir dessas experiências, configura-se um corpo imaginário, caixa de ressonância privilegiada das relações com o outro e com o mundo.
Desde a experiência do desamparo, prototípica do nascimento, somos permanentemente solicitados por estímulos e excitações internos (fisiológicos, instintivos e pulsionais) e externos (realidade, outras pessoas), fonte de desprazer, de traumas e conflitos. As manifestações orgânicas, da motricidade e psíquicas (normais ou patológicas) são recursos para alcançar um equilíbrio entre tais solicitações. Segundo P. Marty, os recursos psíquicos, mais evoluídos e complexos, são aqueles que, economicamente, melhor se prestam para lidar com solicitações às quais o ser humano é submetido. Porém, diante da impossibilidade de utilização das funções mais organizadas e hierarquizadas, muitas vezes esse equilíbrio só é alcançado por meio de funcionamentos anacrônicos, primitivos e insatisfatórios.
Falhas do desenvolvimento, determinadas por elementos congênitos, pela precariedade das relações parentais primitivas e do ambiente, por experiências traumáticas e desorganizadoras comprometem a estrutura e o funcionamento psicossomático, de forma duradoura ou temporária. Diante de deficiências estruturais ou funcionais dos recursos psíquicos podem ser mobilizadas tentativas de reorganização através de descargas motoras e comportamentais, ou ainda, no extremo, de manifestações e desorganizações orgânicas, como as doenças. É no contexto de tais deficiências que as manifestações corporais marcadas por excesso, repetição, fragilidades narcísicas e identificatórias e pelo vazio representativo fazem sua aparição.
OS GALÉS VOLUNTÁRIOS
Houve um tempo em que as “galeras eram outras. Na Antiguidade, as galeras eram embarcações de guerra impulsionadas por cerca de 15 a 30 grandes remos por bordo, cada um manejado por até cinco homens. Os remadores eram em geral escravos ou pessoas sentenciadas a trabalhos forçados. Acorrentados a seus postos, os galés remavam de 12 a 16 horas por dia, às vezes mais.
Em nossos dias, uma multidão de homens e mulheres, apesar de livres e sem grilhões, parece condenada a uma permanente repetição para além do princípio do prazer. Como aponta G. Szwec, essas pessoas, galés voluntários, parecem fascinadas por uma espécie de robotização de seu corpo e de sua vida.
Apresentam modos de funcionamento que carecem de sentido e de prazer, frequentemente buscando utilizá-los como anteparos a situações de perigo e de desamparo.
A atividade esportiva, a música estridente e ritmada, os esportes de risco, os filmes de “adrenalina” e mesmo comportamentos cotidianos como bater
portas, dirigir bruscamente no trânsito ou o tabagismo podem, exercera função de descargas automáticas do nível de tensão, mesmo que, paradoxalmente, promovam também aumento da tensão. Essas atividades geralmente se realizam em um clima imperativo de urgência, exigindo constante repetição.
Esses procedimentos, denominados “auto- calmantes”, são fruto da precariedade da organização subjetiva, carente de recursos psíquicos para lidar com as exigências da vida. Eles “curto-circuitam” a via representativa e de fantasia, utilizando a realidade de forma específica, bruta, factual, operatória, sem carga simbólica. Eles se caracterizam por comportamentos motores ou perceptivos, passando pela dor, podem, inclusive, chegar a automutilações. Manifestam-se também em pessoas que procuram e se excitam com situações de perigo que colocam em risco sua integridade física e mesmo suas vidas.
Os procedimentos auto – calmantes são tentativas de trazer a calma ao aparelho psíquico empreendidas por um ego fragilizado e carente de um recurso de “para-excitações” autônomo. Ocorrem quando o ego é ameaçado pelo potencial traumático do excesso de excitações. Eles se assemelham a tentativas da mãe que procura acalmar seu bebê a qualquer custo, sem, no entanto. propiciar-lhe experiências de satisfação que poderiam verdadeiramente tranquilizá-lo, abrindo caminho para a autonomia psíquica e subjetiva.
Carências nas relações primitivas podem promover na criança a internalização da excitação de apaziguamento do embalo, calmante não gratificante da mãe, como forma de evitar as experiências depressivas do vazio, vividas a partir do próprio amparo da criança, mas também, muitas vezes, no contato com a depressão e o vazio maternos. A aproximação ou o contato com os núcleos primitivos de desamparo ou com experiências de vida desorganizadoras podem desencadear tentativas de reduzir a tensão resultante pela exacerbação da excitação materna internalizada. Essas tentativas são, entretanto, frustradas pela incapacidade de prescindir da presença real do corpo materno, ou de seus sucedâneos, como objeto calmante. Tanto nas experiências da mãe com o bebê, como nos procedimentos auto calmantes, os comportamentos são esvaziados de fantasia e de prazer.
Percebemos a intimidade dessa constelação com as que encontramos em alguns estados-limite, em condutas aditivas (toxicomanias, transtornos alimentares etc.) e nas “neonecessidades” descritas por D. Braunschweig e M. Fain. Estas se caracterizam como urna tentativa persistente da mãe de propiciar satisfações ao bebê independentemente da existência de uma necessidade a ser satisfeita, evidenciando muito mais o desejo da mãe de acalmar seu filho a qualquer preço do que de realmente satisfazê-lo. Cria-se assim na criança uma falsa necessidade, imperativa como as que caracterizam os instintos de auto – conservação, marcada por uma dependência acentuada do sujeito ao objeto real de satisfação, em detrimento da experiência alucinatória. Ficam perturbados a formação de um objeto materno satisfatório, o desenvolvimento do auto – erotismo e dos recursos representativos.
A precariedade do mundo interno e das representações resulta na hiper valorização da realidade e a grande dependência do sujeito dos objetos externos de satisfação. Agradar os outros, satisfazê-los, corresponder a suas expectativas e a seus ideais é vivido muitas vezes como uma questão de sobrevivência.
É perturbadora, impensável a possibilidade de desafiá-los ou contradizê-los. O sujeito torna- se refém de pessoas, ou mesmo de instituições, investidas de um poder que beira a onipotência. Com facilidade, ele se torna refém dos ideais de tais pessoas e instituições, refém dos ideais sociais de beleza, de modas, comportamentos, valores culturais dominantes, consumo etc.
LUTA INGLÓRIA
A fragilidade narcísica, a precariedade de recursos internos e a extrema dependência formam uma combinação explosiva que torna o sujeito presa fácil de qualquer imagem ou produto que lhe prometa a possibilidade de afastar-se da proximidade perigosa de seus terrores, de suas dores, de seu sofrimento. Presa fácil de qualquer um que lhe ofereça uma identidade, um corpo, uma vida que mascare seu desamparo e suas dolorosas feridas narcísicas.
A criação, a aquisição e a ostentação de sinais socialmente valorizados que favoreçam o reconhecimento e a aceitação do sujeito pelo outro torna se imperativa. A manutenção a todo custo de uma aparência que corresponda aos ideais do grupo, excluindo qualquer coisa que possa sugerir o vazio existencial ou a castração, vira uma questão de sobrevivência. A possibilidade de que uma falha se revele nessa complexa, mas frágil montagem torna-se insuportável.
Vive assim o sujeito uma luta inglória, sem fim, na qual – por melhor que seja a aparência – é sempre insatisfatória e qualquer nova conquista, insuficiente. Uma escalada na qual, a cada vez, algo mais deve ser acrescentado, apresentado, consumado, sacrificado, um novo carro, um novo milhão, uma nova mulher, um novo corpo, um novo recorde.
Em meio à excitação e à angústia inesgotáveis, acelera-se cada vez mais esse circuito infernal, impossível de ser interrompido pelo próprio sujeito. Como o jogador que, para bancar suas apostas, nada mais tem a oferecer a seus parceiros, esses escravos da excitação oferecem a seus tiranos, que não podem afrontar sua liberdade, sua alma, sua carne, sua vida.
RUBENS MARCELO VOLICH – é psicanalista. Doutor pela Universidade de Paris VII e professor do curso de psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae, é autor de Psicossomática – De Hipócrates à psicanálise, Hipocondria – Impasses da alma, desafios do corpo e, co-organizador e autor dos livros da série Psicossoma, todos editados pela Casa do Psicólogo.