EM BUSCA DO “EU”
Diversas regiões cerebrais participam do reconhecimento de nosso próprio rosto. Fenômenos complexos como memória, planejamento ou autoconsciência não podem ser encontrados numa única área, e os cientistas estão apenas começando a desvendar a sede do eu no cérebro.
Pouco depois de ter iniciado meu trabalho com Gordon Gallup, em Albany, conheci Bruce McCutcheon. Como biopsicólogo da escola antiga ele havia trabalhado com roedores em laboratório e, além disso, era conhecido por seu detalhismo. McCutcheon sabia de meu interesse por autoconsciência e técnicas de imageamento, já que eu tinha acabado de concluir uma pesquisa sobre o cérebro de jovens alcoólatras. Certa tarde, ele me levou ao seu escritório, e mostrou um gráfico e diversas tabelas num quadro negro. O gráfico tinha dois rostos e um cilindro. Ele se perguntava se com a ajuda de técnicas de neuroimagem desenvolvidas nos anos 90, a chamada “década do cérebro”, seria possível localizar as regiões relacionadas ao “eu”.
Segundo imaginara, alguém estaria deitado no interior do cilindro – que representava um tomógrafo por ressonância magnética funcional (fMRI) – e seria apresentado primeiro a uma imagem de seu próprio rosto e depois, como comparação, à de outro rosto. Se marcássemos as regiões cerebrais ativas enquanto essa pessoa observava seu, rosto e depois “subtraíssemos” as áreas ativas durante a observação de outro rosto, as regiões ativas restantes corresponderiam à autoconsciência. McCurcheon estava convencido de que a fMRI poderia nos ajudar a localizar o “cu” no cérebro, pelo menos inicialmente. No fim de sua explanação, meu colega, habitualmente circunspecto, estava entusiasmadíssimo e me perguntou minha opinião. Eu logo percebi que ele tivera uma ideia grandiosa.
Achamos melhor primeiramente confrontar os participantes do estudo com o próprio rosto. Concordamos em realizar um experimento por meio de fMRI no qual contrastássemos o estimulo de nosso interesse (o rosto do participante) com algo semelhante. Como nos interessava saber qual o efeito de X, queríamos comparar a atividade cerebral diante da visão de XYZ com a de YZ. A atividade restante poderia, portanto, ser associada exclusivamente a X. O objetivo era o isolamento das regiões responsáveis pelo reconhecimento do próprio rosto, diferentes daquelas encarregadas de reconhecer rostos de maneira geral.
A escolha de estímulos de controle (ou seja, imagens que não fossem do próprio rosto) não foi fácil. Para obter bons dados com fMRl, esses rostos deveriam ser apresentados diversas vezes no decorrer do experimento. Procuramos uma feição não muito emocional, mas ao mesmo tempo interessante.
Um rosto que despertasse muita emoção nos levaria à “área de sentimentos” do cérebro, em vez da região do “eu”. Outro muito inexpressivo, ao contrário, poderia nos levar ao “centro de monotonia”. Após alguns experimentos-piloto, escolhemos Einstein como rosto de controle. Ele tem fisionomia marcante e, em experimentos prévios, provocou reações que variaram pouco. Além disso, os participantes conseguiam se concentrar por um tempo mais longo em seu rosto.
VER, SIM – MAS E OUVIR?
Ao lado de Glenn Sanders, decidimos não ficar apenas em experimentos de reconhecimento do próprio rosto. Se há de fato uma região onde se forma a autoconsciência, então qualquer estímulo do “eu” deveria ativá-la. Assim confrontamos as pessoas com a própria voz e com a voz de outras pessoas durante a tomografia.
A experiência ocorreu na Universidade Médica da Carolina do Norte, em Charleston, no laboratório de Mark George. Duas pessoas foram confrontadas com a imagem do próprio rosto e do rosto de Einstein, assim como com gravações das vozes. Tudo correu sem problemas, mas a espera pelos resultados esgotou nossos nervos. Ao lado de George e sua equipe, tínhamos acabado de realizar o primeiro estudo sobre auto reconhecimento com a utilização de fMRI.
Constatamos que a visão do próprio rosto ativara regiões do hemisfério direito. Tais resultados coincidiram com as descobertas de outros pesquisadores de que o hemisfério direito reagia de forma bem mais intensa que o esquerdo ao próprio rosto. Constatamos que a região responsável pelo auto reconhecimento se situa possivelmente na parte anterior do córtex frontal direito. Os dados relativos à voz também mostraram atividade no hemisfério direito, no entanto, os resultados não eram tão claros. De qualquer forma, estávamos no melhor caminho para descobrir o significado do hemisfério direito no processamento da autoconsciência, ou melhor para redescobrir seu significado.
Paralelamente aos nossos estudos na Carolina do Sul, McCutcheon, Sander e eu, examinamos o mesmo fenômeno na Escola Médica de Albany, em Nova York. Em vez de Einstein, usamos Bill Clinton como rosto familiar.
Essa decisão – tomada quando ainda não se falava em Mônica Lewisnky -, baseou-se na reação positivados participantes à foto do presidente.
Por sugestão de Glenn para reforçar ainda mais a autoconsciência dos participantes, modificamos o estímulo. Em vez de lhes mostrar apenas o próprio rosto e, como contraste, o de Clinton, escrevemos sobre a imagem do participante frases como “eu penso” ou “eu acredito”. Na foto de Clinton estava escrito “ele pensa” e “ele acredita”. Durante a experiência, eles eram instruídos a se concentrar totalmente nas fotos e frases. Assim, como tinham de se concentrar no próprio rosto e, estimulados pelas frases, e seus próprios pensamentos, atingimos com alguma certeza um alto grau de autoconsciência.
Aqui também concluímos que as regiões da área frontal anterior direita do cérebro apresentavam sinais de ativação reagindo aos auto- estímulos com atividade mais intensa. Esse estudo indicava, assim como exames anteriores, que o hemisfério direito exerce importante papel no reconhecimento do próprio rosto.
Uma questão interessante no ato de reconhecermos o próprio rosto é ilustrada com o que chamo “efeito loja de departamentos”. Nesses locais, espelhos diversos são colocados em ângulos estranhos e, ao nos depararmos inesperadamente com um deles, por um curto espaço de tempo achamos que a imagem refletida é de outra pessoa. Logo percebemos que se tratada nossa própria imagem. Mas essa experiência pode nos deixar confusos.
Passamos muitas horas olhando nosso rosto. Toda manhã nos barbeamos ou maquiamos, examinamos nossa roupa penteamos o cabelo. No decorrer do dia, sempre nos observamos e usamos tal informação para arrumar nossa aparência. Quando uma pessoa se deita em um tomógrafo, ela já tem grande experiência em se ver no espelho. Conseguir reconhecer a si mesmo significa ter a capacidade para a autoconsciência. No entanto, simplesmente olhar para própria imagem não significa ser autoconsciente.
Faça essa pequena experiência, tente se concentrar apenas em si mesmo cada vez que se olhar no espelho. Você provavelmente vai perceber que isso é muito difícil porque quando nos olhamos no espelho, nós nos observamos atentamente no início, mas então nossos pensamentos voam. Vamos para outro mundo, fazemos planos e imaginamos como seria bom dormir mais uma hora, por exemplo. Mark Weeler, da Universidade de Têmple, Filadélfia, descreveu tal experiência e observou que olhar-se no espelho ou reconhecer a si mesmo não implica necessariamente estar em estado de autoconsciência.
Uma coisa estava clara: se queríamos testar a autoconsciência das pessoas em função de seu próprio rosto, seria preciso assegurar que realmente estivessem em estado de “autoconsciência”. No entanto, pode levar até 30 segundos para se obter uma boa representação imagética do cérebro ativo com uma tomografia por ressonância magnética funcional. Sendo assim, os participantes tinham de observar a própria face atentamente durante 30 segundos e repetir até dez vezes tal procedimento.
Em nossas tentativas piloto em Albany, algumas pessoas se distraiam em pensamentos enquanto observavam seu rosto.
O problema foi solucionado quando pedimos que olhassem alternadamente o próprio rosto e lessem as legendas abaixo das imagens.
Algum as dessas possibilidades foram estudadas pelo grupo do neurologista Motoaki Sugiura por meio de tomografias por emissão de pósitrons (PEl). Em busca das regiões que participam do reconhecimento do próprio rosto, os pesquisadores examinaram dois tipos diferentes de auto reconhecimento, que denominaram “passivo” e “ativo”. Depois de fotografarem os participantes do estudo sob ângulos diversos, eles misturaram imagens de rostos desconhecidos, também tiradas de pontos diferentes. Durante o experimento, apresentaram as imagens sob três condições. Na situação controle, em que mostraram desconhecidos, na variante passiva, exibiram a própria face do participante, e pediram que descrevessem o ângulo do rosto mostrado. Como não sabiam que a imagem era do próprio rosto, as pessoas não tentavam encontra-lo expressamente.
Na variante ativa, os participantes foram informados de que seu rosto seria mostrado e que eles deveriam reagir cada vez que o vissem.
Sugiura e seus colegas realizaram diversas análises dos dados. Ao comparar o reconhecimento passivo do próprio rosto e a visão das feições de controle, perceberam que a área ativada no hemisfério direito era 1,26 vez maior. Portanto, apenas a observação passiva do próprio rosto gerava maior participação do lado direito do cérebro.
Na comparação da observação ativa com a situação controle, o grupo não encontrou nenhuma diferença significativa entre os hemisférios cerebrais, mas ao compararem as observações passiva e ativa do próprio rosto, constataram que a área ativa no hemisfério direito era 2,18 vezes maior. Aparentemente, portanto, foram ativadas mais regiões no hemisfério direito.
Como a PET permite que sejam examinadas regiões específicas do cérebro, o grupo definiu com seus experimentos as áreas que participavam das observações ativa e passiva. No hemisfério direito a região frontal direita, o giro do cíngulo e o chamado pulvinar do tálamo, núcleo que processa informações dos sentidos, eram responsáveis pela observação ativa do próprio rosto.
No hemisfério esquerdo foi registrada atividade no giro fusiforme, área que fica no fundo da parte posterior do cérebro e que tem grande participação geral no reconhecimento de rostos. Lesões nessa região podem levar à prosopagnosia, incapacidade de reconhecer rostos familiares. Nos homens, assim como nos primatas, essa espiral do cérebro se torna ativa quando se trata de diferenciar rostos. Não é de espantar que tal região apresente certa atividade durante uma tarefa de reconhecimento de rostos. No entanto, é pouco provável que o giro lusiforme tenha forte participação no reconhecimento do próprio rosto, pois as dificuldades decorrentes de uma lesão nessa área não se limitam à própria face.
O EQUILÍBRIO É TUDO
A partir dos estudos japoneses e dos resultados de nossas pesquisas, constatamos que o hemisfério direito é muito importante para o reconhecimento da própria face. Segundo os exames realizados por Sugiura, algumas regiões da área frontal do cérebro exercem importante função durante o reconhecimento ativo. Porém, diversas áreas do cérebro participaram ativamente também no reconhecimento passivo. Ao que tudo indica, não há uma única região especializada em tal tarefa. Assim, o órgão pensador pode ser comparado a um móbile em que o equilíbrio de uma parte depende das outras. Fenômenos complexos como memória, planejamento ou autoconsciência não podem ser encontrados em uma única área. Pode ser que, aparentemente, diferentes aspectos de cada uma dessas habilidades cognitivas existam isoladamente, mas na verdade eles dependem da função de outras regiões cerebrais.
Os experimentos de Bruno Preilowski, Sugiura e os meus forneceram, sem dúvida, indícios da dominância do hemisfério direito em processos relacionados ao “eu”. Porém, Roger Sperry e Preilowski demonstraram que ambos os hemisférios são capazes do auto reconhecimento, e Sugiura encontrou diferentes regiões que participam do processamento de si, o que também coincide com nossos resultados. Pode ser que o processamento ocorra predominantemente no hemisfério direito, mas é evidente que outras regiões participam desse processo.
Mesmo assim, todos esses resultados foram fascinantes. Aos poucos, os cientistas começam a desvendar os segredos que ocupam pesquisadores há séculos. Estávamos prontos para descobrir as regiões do cérebro em que surge a autoconsciência.
Republicou isso em Nova Visão: Cultura & Cidadania.
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