MISTÉRIOS DO LADO ESQUERDO
Vítimas de preconceito em muitas culturas, canhotos ainda enfrentam dificuldades em um mundo feito para a maioria de destros; cientistas discutem se o uso preferencial de uma mão ou de outra é determinado socialmente ou pelos genes.
Os antigos videntes romanos olhavam para o norte quando realizavam seus rituais mágicos. O Leste representava sorte e bons presságios. O Oeste à esquerda, era o domínio sombrio da morte. A Bíblia diz que no dia do juízo final as boas ovelhas encontrarão abrigo na mão direita do Senhor e os pecadores ficarão do outro lado, condenados à danação eterna.
Associada, respectivamente, ao bem e ao mal, a divisão entre direita e esquerda persiste nas expressões “entrar com o pé esquerdo” é começar mal, mas ser o braço direito significa ser fiel e prestativo. Depreciamos a esquerda, graças a séculos de menosprezo por parte da maioria de destra. Em diferentes culturas há nove destros para cada canhoto. Qual a causa da desproporção? A resposta pode estar nos hemisférios do cérebro.
A probabilidade de que duas pessoas destas tenham um filho canhoto é de apenas 9,5%. As chances aumentam para 19,5% se um dos pais for canhoto e para 26% caso ambos sejam. Mas a característica também pode ser explicada pela tentativa da criança de imitar os pais. Para testar a influência genética, a bióloga Marian Annet, da Universidade de Leicester lançou em 1970 a hipótese de que nenhum gene singular determina a preferência por uma ou outra mão. Em vez disso, durante o desenvolvimento fetal, um outro fator molecular ajuda a fortalecer o hemisfério esquerdo do cérebro, aumentando a probabilidade de que a mão direita seja dominante, já que o lado esquerdo do cérebro controla o direito e vice-versa. Na minoria de pessoas que carece desse fator, a preferência se desenvolve inteiramente ao acaso.
Pesquisas realizadas com gêmeos, porém, complicam essa hipótese. Em cada cinco grupos de gêmeos idênticos um tem um canhoto e outro destro, apesar de ambos terem o mesmo material genético. Os genes não são os únicos responsáveis pela característica.
A hipótese genética também é enfraquecida pelos resultados obtidos por Peter Hepper e sua equipe da Universidade Queens, em Belfast, Irlanda do Norte. Em 2004, os psicólogos usaram o ultrassom para mostrar que na 15ª semana de gravidez os fetos já têm preferência quanto ao dedo a ser chupado. Na maioria dos casos, ela se mantém após o nascimento. Com 15 semanas o cérebro, porém, não controla o movimento dos membros. Hepper especula que os fetos tendem a preferir o lado do corpo que está se desenvolvendo mais rápido e que seus movimentos influenciam o desenvolvimento cerebral. Não se sabe se essa preferência inicial é temporária ou persiste durante o desenvolvimento e a infância.
A determinação genética também é refutada pelo fato de que as crianças não se decidem pela direita ou pela esquerda até os 2 ou 3 anos. Isso nega a desacreditada teoria de que os canhotos tenham alguma lesão cerebral (tese que alguns cientistas ainda sustentavam há apenas duas décadas). Nos anos 20, os pesquisadores apontaram uma alta incidência de canhotos entre crianças que nasceram de parto difícil. Descobriram que muitos canhotos sofriam de transtornos de aprendizado e de epilepsia e que doenças neurológicas comuns predominavam nos gêmeos: ora, estes apresentam incidência mais alta de canhotos.
Em 1982, Norman Ceschwind sugeriu que a preferência por uma das mãos era determinada pelo sistema imunológico. A ideia ocorreu-lhe quando assistia a uma conferência sobre transtornos de leitura e escrita; as pessoas afetadas apresentavam alto índice de problemas imunológicos ou enxaquecas na família. Pesquisando mais, Ceschwind descobriu que os canhotos são 2,5 vezes mais suscetíveis a alergias, problemas na escrita e na leitura, anormalidades na estrutura óssea, gagueira e doenças na tiroide, uma constelação de eleitos chamada síndrome Ceschwind. Outros pesquisadores realizaram estudos similares, mas não detectaram tais vínculos, o que pôs em dúvida a teoria do neurologista.
Mesmo que as correlações sejam verdadeiras, elas não explicam o que toma uma pessoa canhota. Além disso, a especialização de um dos lados do corpo é comum entre animais. Os gatos privilegiam uma das patas quando querem pegar algo atrás do sofá. Alguns caranguejos se movem mais com as garras da esquerda ou da direita. Do ponto de vista evolutivo, enfatizar a força e a habilidade em um dos membros é mais eficiente que treinar igualmente dois, quatro ou oito membros. Entretanto, para a maioria dos animais, a preferência por um dos lados é aparentemente aleatória. O esmagador predomínio do lado direito está associado aos humanos.
Esse fato desloca nossa atenção para os hemisférios do cérebro e a linguagem, que na maioria das pessoas está claramente sediada em um ou outro hemisfério. Talvez haja desequilíbrio entre destros e canhotos porque as funções cerebrais estão divididas de forma assimétrica. Na vida cotidiana, essa distribuição desigual não é percebida, mas cada hemisfério possui forças e fraquezas próprias.
O interesse nos hemisférios data de pelo menos 1836, ano em que o médico francês Marc Dax relatou, em uma conferência em Montpellier, uma estranha característica comum a vários de seus pacientes. Durante anos de profissão, Dax encontrou mais de 40 homens e mulheres que apresentavam dificuldades na fala e todas elas tinham alguma lesão no lado esquerdo do cérebro. Em sua conferência, Dax sustentou que cada hemisfério cerebral é responsável por certas funções e que o lado esquerdo controla a fala. Outros especialistas, no entanto, mostraram pouco interesse pelas ideias do médico.
Cada vez mais, porém, os cientistas foram descobrindo evidências de pessoas com problemas na fala em razão de lesões no hemisfério esquerdo. Pacientes com danos no lado direito tendem a apresentar problemas de percepção ou de concentração. Os principais avanços na compreensão da assimetria cerebral foram feitos nos anos 60, graças à cirurgia de seccionamento do corpo caloso (feixe de nervos que liga os dois hemisférios). Durante a operação, desenvolvida para ajudar pacientes epiléticos, os médicos cortaram o corpo caloso. A separação das partes impediu que a descarga neurológica em um lado do cérebro – o início de uma crise epilética – se transformasse em um distúrbio que causava terríveis ataques. Mas o corte também impossibilitou quase toda comunicação normal entre os hemisférios, dando aos pesquisadores a oportunidade de investigar a atividade de cada um dos lados.
Após vários experimentos com pacientes submetidos à cirurgia, os neurocientistas descobriram que os dois hemisférios percebem, aprendem e recordam de forma independente, embora o tipo de processamento e o nível de desempenho variem. O lado esquerdo é especialmente poderoso nas funções analíticas, como o processamento da linguagem, ao passo que o direito está mais capacitado para realizar tarefas espaciais e musicais. O hemisfério esquerdo processa sensações e pensamentos como se fossem elementos discretos, enquanto o direito interpreta tais dados como um todo.
TRABALHO CONJUNTO
Tornou-se cada vez mais claro que as diferenças entre os hemisférios pouco significam para as pessoas sãs. Cada fragmento de informação que penetra em um lado do cérebro está disponível para o outro por meio do corpo caloso. Para as funções superiores, como o aprendizado, os dois lados funcionam conjuntamente. A principal exceção diz respeito à linguagem.
Em 1949, o neurocirurgião japonês Juhn Wada descobriu uma fórmula de investigar a organização do funcionamento cerebral da linguagem, injetando um anestésico na artéria carótida esquerda ou direita, Wada paralisou temporariamente um dos lados de um cérebro são, o que lhe permitiu estudar de modo preciso as funções do outro lado. Baseados nesse método, Brenda Milner e Teodore Rasmussen, do Instituto Neurológico de Montreal publicaram, em 1975, um estudo que confirmava a teoria que Dax formulara quase 140 anos antes, em 96% dos destros, a linguagem é processada de forma muito mais intensa no hemisfério esquerdo. A correlação, entretanto, não é tão clara para os canhotos. Para dois terços deles, o hemisfério esquerdo é também o mais ativo processador da linguagem. Mas para o terço restante, ou o lado direito é predominante ou ambos os lados funcionam de forma igual, controlando diferentes funções relacionadas à linguagem.
O dado reduziu a aceitação da noção de que o predomínio dos destros se deve à maior importância do hemisfério esquerdo no processamento da linguagem. Não é claro porque o controle da linguagem deve envolver também os movimentos corporais. Alguns especialistas acreditam que o hemisfério esquerdo controla a linguagem porque os órgãos que processam a fala – a laringe e a língua – estão posicionados no eixo de simetria do corpo. Como essas estruturas são centradas, não é óbvio, do ponto de vista evolutivo, qual lado do cérebro deve controlá-las, e parece improvável que a operação conjunta facilite a atividade motora. Detalhes fisiológicos favorecem o hemisfério esquerdo, de tal modo que um impulso advindo daí alcance mais rapidamente a corda vocal; dando ao lado esquerdo uma vantagem na produção da linguagem.
Tanto a preferência por uma das mãos quanto a fala podem ter se desenvolvido por diferentes razões. Alguns pesquisadores, como o psicólogo evolutivo Michel C. Corballis, da Universidade de Auckland, Nova Zelândia, acreditam que os gestos estão na origem da linguagem. Os gestos são anteriores às palavras e ajudaram no seu surgimento. Se o hemisfério esquerdo dominou a fala, deve ter controlado também os gestos e, como ele controla o lado direito do corpo, a mão destra se desenvolveu mais.
CRIATIVIDADE NAS MÃOS
Talvez saibamos mais em breve. Enquanto isso, podemos imaginar implicações que a preferência por uma das mãos acarreta para nossos talentos. A sabedoria popular afirma que os destros, pessoas nas quais o hemisfério cerebral esquerdo predomina, destacam-se no pensamento analítico e lógico. Os canhotos, que usam mais o hemisfério direito são considerados mais criativos e aptos para combinar as características emergentes dos dois hemisférios. Mas alguns neurocientistas sustentam que tudo isso não passa de especulação.
Leonardo da Vinci talvez seja o canhoto mais famoso. Os pesquisadores discutem sobre até que ponto essa característica orientou sua criatividade. Alguns apontam que ele tinha propensão a pintar cenas holísticas e simétricas, agrupando as pessoas em estruturas centradas e piramidais. No famoso afresco A última ceia ele arranjou os apóstolos em torno da mesa de tal forma que o observador percebe o grupo como um todo integrado. A postura dos apóstolos faz os olhos dele convergir para o meio, onde Jesus está sentado. Artistas destros como Rembrandt, ao contrário, parecem preferir estruturas mais assimétricas, agrupando, por exemplo, árvores no canto inferior esquerdo da tela e pintando uma paisagem montanhosa no direito.
Tais observações talvez sejam apenas ousadas especulações. Menciona-se especialmente a história de Alan Turing, matemático considerado o fundador da moderna teoria do computador. Alguns o apontam como o principal exemplo da visão do psicólogo Ceschwind, segundo a qual a qualidade de canhoto e a criatividade matemática associada resultam de uma disfunção do sistema imunológico. Turing era extremamente alérgico ao pólen e costumava usar máscara para se proteger quando ia de bicicleta à Universidade de Cambridge.
Poucos cientistas estão dispostos a afirmar que o fato de ser canhoto significa maior potencial criativo. Mas os canhotos prevalecem entre artistas, compositores e grandes pensadores políticos. Se essas pessoas estão entre os canhotos cujas habilidades linguísticas são uniformemente distribuídas entre os hemisférios, o intenso intercâmbio demandado poderá levar a talentos mentais fora do comum.
Talvez alguns canhotos se tornem altamente criativos apenas porque precisam ser mais inteligentes para se sair bem em nosso mundo de destros. Essa batalha, que começa nos estágios iniciais da infância, pode estabelecer o fundamento para realizações excepcionais. Assim, é provável que os canhotos com processamento bilateral da linguagem representem novo avanço evolutivo para o Homo sapiens, em que constelações criativas entre os hemisférios estão sendo testadas. Os canhotos deveriam mencionar isso da próxima vez que forem menosprezados pelos destros.
SEU FILHO É CANHOTO?
A Natureza talvez decida se seremos canhotos ou destros, mas o meio influencia a disposição genética. A criança pode adotar mão privilegiada pelos pais, mesmo que isso seja contrário a suas inclinações genéticas.
Muitos pais desejam descobri que mão o filho privilegia e acreditam que podem fazê-lo desde cedo observando o modo pelo qual a criança estende o braço para pegar objetos ou segura uma colher. Mas é fácil se equivocar. As crianças às vezes experimentam com uma mão durante um tempo, depois com a outra. Os especialistas dizem que só aos 2 ou 3 anos um dos lados é favorecido de forma consistente. Algumas crianças permanecem ambidestras até os 5 ou 6 anos e só então escolhem um dos dois.
DETLEF B. LINKE – é professor de neurofisiologia clínica e de reabilitação neurocirúrgica da Universidade de Bonn, Alemanha.
SABINE KERSEBAUM – é canhota e editora de Gehim & Geist
Você precisa fazer login para comentar.