INTERPRETANDO SORRISOS
Estudos sobre a capacidade de decifrar as nuances das expressões faciais mostram como o cérebro acessa memórias e decodifica gestos.
As expressões faciais revelam muito sobre nossos interlocutores. Com base em mínimos indícios que às vezes escapam à consciência, somos capazes de avaliar em que medida expressões amigáveis são autênticas ou falsas, detectamos se um sorriso é espontâneo ou de conveniência, se uma risada é sincera ou forçada. Essas nossas competências derivam, pelo menos em grande parte, de duas questões geométricas. Sabemos intuitivamente que: 1. a expressão facial espontânea implica uma resposta simétrica das duas metades do rosto; 2. os diversos músculos faciais são ativados de modo simultâneo e rápido. Algo que fuja disso, portanto, costuma – ou pelo menos deveria – fazer piscar nosso “sinal vermelho interno”, avisando que algo ali não parece exatamente sincero.
No entanto, nem sempre somos capazes de avaliar objetivamente as expressões dos outros, principalmente quando queremos mentir para nós mesmos – por exemplo, quando contamos uma piada com tanta animação que não percebemos que quem está ouvindo demonstra estar se divertindo só por gentileza ou conveniência.
De que depende a capacidade de decifrar as expressões faciais? Hoje sabemos que o hemisfério direito tem papel central nessa forma de decodificação: a prova mais evidente é o fato de que as pessoas que sofreram uma lesão na metade direita do cérebro apresentam déficit relativo à compreensão das expressões faciais.
Quando o problema se refere especificamente às expressões de medo, a lesão é localizada na amígdala direita. Diante de gente de carne e osso ou de fotografias que retratam expressões de medo ou de terror, os pacientes com uma lesão nessa área cerebral demonstram não entender o significado das expressões faciais, como se fossem impermeáveis à mensagem visual, mesmo que possam descrevê-la com detalhes.
Também no que se refere à compreensão da expressão facial das emoções, foi observado o predomínio do córtex motor do hemisfério direito (que controla a metade esquerda do rosto, enquanto o córtex do hemisfério esquerdo controla os músculos faciais do lado oposto). Com um programa de computador capaz de revelar a dinâmica de uma expressão facial, é possível observar que em um sorriso forçado (ou dado após a pessoa receber um comando para que sorria) o hemisfério direito está mais capacitado para governar a “metade sorriso” da esquerda, enquanto o esquerdo se mostra menos capaz. Na prática, isso se traduz em maior artificialidade de expressão na metade direita do rosto.
Mas há uma questão a ser considerada: o fato de que, nas pessoas que sofreram lesão em qualquer lado do córtex motor, o sorriso comandado, controlado pelo córtex, ser obviamente limitado à parte do rosto que corresponde aos comandos do córtex saudável – da direita ou da esquerda – faz com que o sorriso seja, portanto, totalmente assimétrico. Essas mesmas pessoas podem, no entanto, sorrir ou rir de modo pleno, isto é, com as duas metades do rosto se a emoção for espontânea: isso ocorre graças à intervenção dos gânglios da base, núcleos nervosos localizados no interior do cérebro que têm a função de governar gestos automáticos e memórias processuais como caminhar, andar de bicicleta, rir e sorrir.
FOCOS NA ATENÇÃO
Considere um paciente que sofre de diminuição das funções do cérebro após uma alteração da circulação do sangue (ictus), o que pode acarretar uma hemiparesia (interrupção parcial dos movimentos de um ou mais membros superiores, inferiores ou ambos conforme o grau do comprometimento). Se o pesquisador lhe pede que sorria ao seu comando ou por conveniência, para ser gentil, seu movimento será parcial. Mas, se a mesma pessoa encontra um amigo querido, o sorriso surge de forma normal, novamente simétrico, visto que é relacionado aos automatismos governados pelos gânglios da base, não atingidos. Em alguns casos, bastante raros, é possível observar uma lesão de meta- de dos gânglios da base (direita ou esquerda): nessa situação, o sorriso comandado emerge graças ao fato de o córtex motor estar íntegro, enquanto o espontâneo, devido aos gânglios da base, falha. Geralmente, porém, apenas as pessoas próximas percebem isso.
Mesmo para quem não tem nenhum problema em nenhum dos dois hemisférios cerebrais, talvez o mais indecifrável dos sorrisos seja o da Mona Lisa. Afinal, qual é o segredo que torna tão mutável a expressão da Gioconda retratada por Leonardo da Vinci? Em geral, as respostas baseiam-se no pressuposto de que a ambiguidade se deve à técnica do sfumato (“esfumado”, em italiano), que desfoca os cantos dos olhos e da boca dando ao quadro um ar de mistério. Mas a neurobióloga Margaret Livingstone, pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, propôs uma explicação baseada nas diferenças da percepção da chamada “frequência espacial” no interior do nosso olho. Trata-se de uma medida de quanto é detalhada uma imagem: se para cada centímetro quadrado da tela de um computador há mais pixels (isto é, pontinhos que emitem luz), então a representação do objeto é mais nítida. Ou, em outras palavras, a frequência espacial é mais elevada. Quando utilizamos a visão central (mirando diretamente o objeto), apreciamos, sobretudo, as imagens nítidas (frequências elevadas), antes das mal definidas, enquanto a nossa visão periférica é mais apta a perceber os contornos esfumados.
Assim, segundo Livingstone, quando não olhamos diretamente a boca da Mona Lisa, percebemos a parte “alegre” escondida nas baixas frequências, isto é, no esfumaçado dos lábios. Mas, se direcionamos o olhar para os lábios, perdemos uma parte de seu sorriso e temos a impressão de que a expressão muda.
No livro A expressão das emoções no homem e nos animais, de 1872, Charles Darwin buscou uma explicação do significado das expressões no reino animal, perguntando-se por que se apresentam em certas formas particulares. Segundo o pai da teoria da evolução, nos homens numerosas emoções têm uma expressão universal, isto é, são as mesmas independentemente de raça, cultura e nível de instrução. São inatas, e não adquiridas, mero produto do nosso caminho evolutivo. Nós, humanos, temos uma gama de expressões complexas cujo significado, ao longo do tempo, se imprimiu na nossa mente. De forma análoga, os animais possuem expressões que lembram as nossas: os répteis, por exemplo, emitem sinais quando abrem a boca mostrando os dentes.
No início do século 20, os behavioristas puseram em dúvida a universalidade das expressões faciais dos estados emocionais, mas depois dos anos 50 alguns estudos confirmaram, sem margem a dúvidas, a existência de expressões universais.
Em 1969, o anatomista Carl Hjortsjö descreveu em detalhe o efeito dos 23 músculos mímicos da face durante os estados emocionais. Com base nisso, ao fim dos anos 70, os psicólogos Paul Ekman e Vincent Friesen criaram o Facs (Facial Action Coding System, ou Sistema Codificador da Ação Facial), um conjunto de todas as ações musculares associadas à expressão de dada emoção, que inclui a medida da intensidade das contrações e da sua duração. Por exemplo, no caso de um sorriso de alegria, contraem-se o músculo zigomático maior, que ergue os cantos da boca, e o músculo orbicular do olho, que estreita as órbitas oculares.
NÓ DE CONTATO
Ekman e Friesen usaram depois esses dados para medir o grau de concordância das expressões entre os membros da etnia fore, na Nova Guiné, e em americanos. Depois levaram em conta registros em vídeo e fotografias de expressões faciais efetuadas entre japoneses, brasileiros, chilenos e argentinos. Suas pesquisas confirmaram a concepção evolucionista de Darwin e constituíram a prova da universalidade para oito emoções: surpresa, tristeza, cólera, prazer, desprezo, nojo, vergonha e medo. Os estudos conduzidos nos últimos anos no campo das neurociências mostram que a amígdala, área do cérebro que representa um “nó de contato” entre os sinais cerebrais, contribui para o reconhecimento da sensação suscitada por uma face. Uma pessoa com essa estrutura em forma de amêndoa afetada não reage à visão de um rosto aterrorizado e é incapaz de reconhecer expressões em que emoções como felicidade e surpresa estão misturadas.
Ainda assim, a amígdala não seria essencial para identificar as emoções: segundo alguns experimentos efetuados com PET (tomografia por emissão de pósitrons), método de análise que permite visualizar o aluxo de sangue nas diversas estruturas do cérebro durante a execução de operações mentais, as faces alegres ou tristes provocam aumento de atividade do giro do cíngulo. Parece também que a amígdala, ao contrário do córtex, não reage às expressões de nojo. O riso e o sorriso nos revelam ainda algo mais geral sobre o funcionamento do cérebro: muitas vezes uma função não depende apenas de uma única estrutura, como no caso específico do córtex motor, mas do concurso de mais estruturas, o que nos permite compensar uma perda neurológica com o auxílio da reabilitação. Cabe, de qualquer modo, ao córtex frontal a maior parte das decisões conscientes: por exemplo, a interpretação de um sorriso que reclama discernimento – como o da Mona Lisa.
ALBERTO OLIVERIO – é neurobiólogo, professor de psicobiologia da Universidade La Sapienza, em Roma.
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